CAPÍTULO CINQUENTA E QUATRO
O Casamento de Kṛṣṇa e Rukmiṇī
Este capítulo descreve como o Senhor Śrī Kṛṣṇa, depois de raptar Rukmiṇī, derrotou os reis oponentes; desfigurou Rukmī, o irmão de Rukmiṇī; levou Rukmiṇī para Sua capital, e casou-Se com ela.
Enquanto Śrī Kṛṣṇa levava embora a princesa Rukmiṇī, os reis inimigos reuniram seus exércitos e perseguiram-nO. O Senhor Baladeva e os generais do exército Yādava voltaram-se para enfrentar esses adversários, impedindo o avanço deles. Os exércitos inimigos, então, começaram a lançar incessantes chuvas de flechas sobre o exército do Senhor Kṛṣṇa. Ao ver as forças de seu futuro marido sofrer um ataque tão violento, Śrīmatī Rukmiṇī olhou para Śrī Kṛṣṇa cheia de temores. Mas Kṛṣṇa apenas sorriu e disse-lhe que não havia o que recear, pois era certo que Seu exército destruiria o inimigo sem demora.
O Senhor Balarāma e os outros heróis, em seguida, puseram-se a aniquilar o exército adversário com flechas nārāca. Os reis inimigos, liderados por Jarāsandha, retrocederam depois que seus exércitos foram destruídos nas mãos dos Yādavas.
Jarāsandha consolou Śiśupāla: “Felicidade e aflição nunca são permanentes, e estão sob o controle do Senhor Supremo. Por dezessete vezes, Kṛṣṇa me derrotou, mas, no final, eu O venci. Desse modo, vendo que vitória e derrota estão sob o controle do destino e do tempo, aprendi a não sucumbir à lamentação nem ao júbilo. O tempo agora favorece os Yādavas, de modo que eles te derrotaram apenas com um pequeno exército, mas, no futuro, o tempo te favorecerá, e é certo que os vencerás.” Consolado dessa maneira, Śiśupāla voltou a seu reino com seus seguidores.
O irmão de Rukmiṇī, Rukmī, que odiava Kṛṣṇa, ficou furioso pelo fato de Kṛṣṇa ter raptado sua irmã. Assim, depois de prometer diante de todos os reis presentes que não regressaria a Kuṇḍina enquanto Kṛṣṇa não fosse destruído e Rukmiṇī resgatada, Rukmī partiu com seu exército para atacar o Senhor. Desconhecendo as glórias do Senhor Kṛṣṇa, Rukmī saiu ousadamente em uma única quadriga para atacar o Senhor. Ele se aproximou do Senhor, atingiu-O com flechas e exigiu que soltasse Rukmiṇī. Śrī Kṛṣṇa desviou-Se das armas de Rukmī, despedaçando-as. Então, ergueu bem alto Sua espada, mas Rukmiṇī intercedeu quando Ele estava para matar Rukmī e pediu-Lhe com fervor que poupasse a vida de seu irmão. O Senhor Kṛṣṇa não matou Rukmī, senão que, com Sua espada, arrancou tufos do cabelo de Rukmī aqui e ali, deixando-o desfigurado. Bem naquele momento, apareceu em cena o Senhor Baladeva com o exército Yādava. Ao ver Rukmī desfigurado, Ele mansamente censurou Kṛṣṇa: “Desfigurar um parente tão próximo equivale a matá-lo, motivo pelo qual ele não deve ser morto, mas libertado.”
Então, o Senhor Baladeva disse a Rukmiṇī que a deplorável condição de seu irmão era apenas fruto de suas ações passadas, pois cada qual é responsável por sua própria felicidade e sofrimento. Ele ainda a instruiu sobre a posição transcendental da alma jīva e como a ilusão de pensar que existem felicidade e aflição não passa do resultado da ignorância. Aceitando as instruções do Senhor Balarāma, Rukmiṇī abandonou seu pesar.
Rukmī, entretanto, sucumbiu à total frustração, privado como estava de toda a sua força e vontade de lutar. Como prometera solenemente não voltar para casa sem vencer Kṛṣṇa, Rukmī construiu uma cidade naquele mesmo lugar e fixou residência ali, preservando sua raiva.
O Senhor Kṛṣṇa levou Rukmiṇī para Sua capital, Dvārakā, e casou-Se com ela. Todos os cidadãos celebraram a cerimônia em estilo suntuoso, difundindo por toda a cidade relatos de como o Senhor raptara Rukmiṇī. Todos em Dvārakā sentiram grande prazer em ver o Senhor Kṛṣṇa unido a Rukmiṇī.
VERSO 1: Śukadeva Gosvāmī disse: Tendo falado dessa maneira, todos aqueles reis enfurecidos puseram suas armaduras e montaram em seus veículos. Cada rei, de arco na mão, estava rodeado por seu próprio exército enquanto saía em perseguição ao Senhor Kṛṣṇa.
VERSO 2: Ao verem que os inimigos se precipitavam ao ataque, os comandantes do exército Yādava voltaram-se para enfrentá-los e ficaram firmes, ó rei, retesando a corda de seus arcos.
VERSO 3: Montados nos dorsos de cavalos e elefantes e sentados em quadrigas, os reis inimigos, peritos em armas, lançavam chuvas de flechas sobre os Yadus assim como nuvens que derramam chuva sobre as montanhas.
VERSO 4: A Rukmiṇī de cintura fina, vendo o exército de seu Senhor coberto por torrentes de flechas, olhou timidamente para o rosto dEle com olhos amedrontados.
VERSO 5: Em resposta, o Senhor riu e garantiu-lhe: “Não tenhas medo, ó mulher de belos olhos. Esta força inimiga está prestes a ser destruída por teus soldados.”
VERSO 6: Os heróis do exército do Senhor, liderados por Gada e Saṅkarṣaṇa, não puderam tolerar a agressão dos reis adversários. Assim, com flechas de ferro, começaram a derrubar os cavalos, elefantes e quadrigas do inimigo.
VERSO 7: As cabeças dos soldados que lutavam em quadrigas, cavalos e elefantes caíam ao chão aos milhões; algumas cabeças usavam brincos e elmos, enquanto outras usavam turbantes.
VERSO 8: Por toda a parte, jaziam coxas, pernas e mãos sem dedos, bem como mãos que empunhavam espadas, maças e arcos, e também cabeças de cavalos, burros, elefantes, camelos, asnos selvagens e de seres humanos.
VERSO 9: Vendo seus exércitos serem derrubados pelos Vṛṣṇis, que estavam ávidos pela vitória, os reis liderados por Jarāsandha perderam o ânimo e abandonaram o campo de batalha.
VERSO 10: Os reis se aproximaram de Śiśupāla, que estava perturbado como um homem que perdeu a esposa. Sua tez empalidecera, seu entusiasmo se fora, e seu rosto parecia murcho. Os reis disseram-lhe o seguinte.
VERSO 11: [Jarāsandha disse:] Ouve, Śiśupāla, ó tigre entre os homens. Abandona tua depressão. Afinal, a felicidade e infelicidade dos seres corporificados jamais é vista como permanente, ó rei.
VERSO 12: Assim como uma marionete em forma de mulher dança conforme o desejo do titereiro, da mesma forma este mundo, controlado pelo Senhor Supremo, se debate tanto na felicidade quanto no sofrimento.
VERSO 13: Em batalha contra Kṛṣṇa, eu e meus vinte e três exércitos perdemos por dezessete vezes; eu O derrotei somente por uma vez.
VERSO 14: Ainda assim, no entanto, eu nunca lamento nem me regozijo, por saber que este mundo é conduzido pelo tempo e pelo destino.
VERSO 15: E agora todos nós, eminentes comandantes de líderes militares, fomos derrotados pelos Yadus e seu pequeno séquito, que são protegidos por Kṛṣṇa.
VERSO 16: Agora nossos inimigos venceram porque o tempo lhes é favorável, mas, no futuro, quando o tempo nos for auspicioso, nós venceremos.
VERSO 17: Śukadeva Gosvāmī disse: Persuadido assim por seus amigos, Śiśupāla reuniu seus seguidores e regressou à sua capital. Os guerreiros sobreviventes também voltaram para suas respectivas cidades.
VERSO 18: O poderoso Rukmī, todavia, sentia muita inveja de Kṛṣṇa. Ele não pôde suportar o fato de Kṛṣṇa ter levado embora sua irmã para casar-se com ela no estilo rākṣasa. Por isso, perseguiu o Senhor com uma divisão militar inteira.
VERSOS 19-20: Frustrado e enfurecido, o Rukmī de braços poderosos, trajando armadura e brandindo seu arco, jurou diante de todos os reis: “Não retornarei a Kuṇḍina caso eu não mate Kṛṣṇa em batalha e não traga Rukmiṇī de volta comigo. Juro isto a vós.”
VERSO 21: Depois de dizer isso, ele montou em sua quadriga e disse a seu cocheiro: “Conduze os cavalos bem depressa para onde Kṛṣṇa está. Ele e eu temos de lutar.”
VERSO 22: “Este vaqueirinho de mente perversa, desvairado devido a Sua proeza, raptou violentamente minha irmã. Mas hoje arrancarei Seu orgulho com minhas flechas afiadas.”
VERSO 23: Vangloriando-se dessa maneira, o tolo Rukmī, que desconhecia a verdadeira extensão do poder do Senhor Supremo, aproximou-se com sua quadriga solitária do Senhor Govinda e desafiou-O: “Levanta-Te e luta!”
VERSO 24: Rukmī retesou a corda de seu arco com grande força e atingiu o Senhor Kṛṣṇa com três flechas. Então, ele disse: “Fica de pé aqui por um momento, ó profanador da dinastia Yadu!”
VERSO 25: “Aonde quer que fores, levando minha irmã, tal qual um corvo que rouba a manteiga do sacrifício, eu Te seguirei. Hoje mesmo vou livrar-Te de Teu falso orgulho, ó tolo, enganador e lutador trapaceiro!”
VERSO 26: “Solta a moça antes que eu Te aniquile com minhas flechas e Te obrigue a deitar-Te!” Em resposta a isso, o Senhor Kṛṣṇa sorriu e, com seis flechas, atingiu Rukmī e quebrou seu arco.
VERSO 27: O Senhor atingiu os quatro cavalos de Rukmī com oito flechas, seu cocheiro com duas, e a bandeira da quadriga com três. Rukmī empunhou outro arco e atingiu o Senhor Kṛṣṇa com cinco flechas.
VERSO 28: Embora atingido por essas muitas flechas, o Senhor Acyuta quebrou novamente o arco de Rukmī. Mais uma vez, Rukmī se valeu de outro arco, mas o Senhor infalível também quebrou este em pedaços.
VERSO 29: Clava de ferro, arpão de três pontas, lança, espada e escudo, pique, dardo – qualquer arma que Rukmī pegasse, o Senhor Hari a despedaçava.
VERSO 30: Rukmī, então, saltou de sua quadriga e, de espada em punho, precipitou-se furiosamente em direção a Kṛṣṇa a fim de matá-lO, como um pássaro que voa contra o vento.
VERSO 31: Quando Rukmī O atacou, o Senhor disparou flechas que pulverizaram sua espada e escudo. Kṛṣṇa, então, pegou Sua espada afiada e preparou-Se para matar Rukmī.
VERSO 32: Ao ver o Senhor Kṛṣṇa pronto para matar seu irmão, a santa Rukmiṇī encheu-se de apreensão. Caindo aos pés de seu marido, ela lastimosamente disse o seguinte.
VERSO 33: Śrī Rukmiṇī disse: Ó controlador de todo o poder místico, ser imensurável, Senhor dos senhores, mestre do universo! Ó pessoa todo-auspiciosa e de braços poderosos, por favor, não mates meu irmão!
VERSO 34: Śukadeva Gosvāmī disse: O grande temor de Rukmiṇī fez os membros de seu corpo tremer e sua boca secar, e sua garganta ficou embargada de aflição. Em sua agitação, seu colar de ouro desalinhou-se. Ela agarrou os pés de Kṛṣṇa, e o Senhor, sentindo compaixão, desistiu de matá-lo.
VERSO 35: O Senhor Kṛṣṇa amarrou o malfeitor com uma tira de pano. Então, passou a desfigurar Rukmī, rapando apenas partes de seu cabelo e bigode, de tal forma a conferir-lhe uma aparência ridícula. A essa altura, os heróis Yadus tinham esmagado o extraordinário exército de seus adversários, assim como um elefante pisoteia uma flor de lótus.
VERSO 36: Ao se aproximarem do Senhor Kṛṣṇa, os Yadus viram Rukmī nesse lastimável estado, quase morto devido à vergonha. Quando o onipotente Senhor Balarāma viu Rukmī, Ele compassivamente o soltou e disse o seguinte ao Senhor Kṛṣṇa.
VERSO 37: [O Senhor Balarāma disse:] Meu querido Kṛṣṇa, agiste de maneira imprópria! Esta ação trará vergonha para Nós, pois desfigurar um parente próximo cortando seu bigode e cabelo equivale a matá-lo.
VERSO 38: Santa mulher, por favor, não fiques descontente conosco devido à ansiedade causada pelo desfiguramento de teu irmão. Ninguém é responsável pela alegria e pesar de uma pessoa senão ela mesma, pois cada um experimenta o resultado de suas próprias ações.
VERSO 39: [Dirigindo-Se mais uma vez a Kṛṣṇa, Balarāma disse:] Um parente não deve ser morto mesmo que sua má ação justifique a pena capital. Antes, ele deve ser expulso da família. Visto que já foi morto por seu próprio pecado, por que matá-lo outra vez?
VERSO 40: [Voltando-Se para Rukmiṇī, Balarāma continuou:] O código de dever sagrado dos guerreiros estabelecido pelo senhor Brahmā prescreve que alguém pode ser obrigado a matar o próprio irmão. Esta é de fato uma lei muito medonha.
VERSO 41: [Balarāma dirigiu-Se mais uma vez a Kṛṣṇa:] Cegos pela vaidade decorrente de possuir opulências pessoais, homens orgulhosos ofendem os outros por causa de coisas tais como reino, terra, riqueza, mulheres, honra e poder.
VERSO 42: [A Rukmiṇī, Balarāma disse:] Tua atitude é injusta, pois, como uma pessoa ignorante, desejas o bem aos que são inimigos de todos os seres vivos e que fizeram mal a teus verdadeiros benquerentes.
VERSO 43: A māyā do Senhor Supremo faz os homens se esquecerem do seu verdadeiro eu, e assim, confundindo o corpo com o eu, eles consideram os outros como amigos, inimigos ou pessoas neutras.
VERSO 44: Aqueles que estão confusos percebem a Alma Suprema única, que reside em todos os seres corporificados, como se fosse muitos, assim como se pode perceber a luz no céu, ou o próprio céu, como se fosse muitos.
VERSO 45: Este corpo material, que tem começo e fim, é composto dos elementos físicos, dos sentidos e dos modos da natureza. O corpo, imposto ao eu em virtude da ignorância material, faz com que a pessoa experimente o ciclo de nascimentos e mortes.
VERSO 46: Ó dama inteligente, a alma nunca experimenta contato com os objetos materiais insubstanciais nem se separa deles, visto que a alma é a origem deles e quem os ilumina. Assim, a alma se assemelha ao Sol, que não entra em contato nem se separa do sentido da visão e do que é visto.
VERSO 47: Nascimento e outras transformações são experimentados pelo corpo, mas nunca pelo eu; assim como modificações acontecem nas fases da lua, mas nunca na Lua, embora o dia da lua nova possa chamar-se a “morte” da Lua.
VERSO 48: Assim como alguém adormecido percebe a si mesmo, aos objetos do gozo dos sentidos e aos frutos de seus atos dentro da ilusão de um sonho; da mesma forma, quem não é inteligente tem de sujeitar-se à existência material.
VERSO 49: Portanto, com conhecimento transcendental, dissipa o pesar que está confundindo e enfraquecendo tua mente. Por favor, retoma tua disposição natural, ó princesa de sorriso puro.
VERSO 50: Śukadeva Gosvāmī disse: Iluminada assim pelo Senhor Balarāma, a esbelta Rukmiṇī esqueceu sua depressão e estabilizou sua mente através da inteligência espiritual.
VERSO 51: Deixado apenas com seu ar vital, rejeitado por seus inimigos e privado de sua força e brilho corpóreo, Rukmī não conseguia esquecer como fora desfigurado. Em total frustração, ele construiu para sua residência uma grande cidade, que chamou de Bhojakaṭa.
VERSO 52: Porque havia prometido: “Não entrarei de novo em Kuṇḍina enquanto não matar o perverso Kṛṣṇa e não trouxer de volta minha irmã mais nova”, em um estado de frustração e ira, Rukmī fixou residência naquele mesmo lugar.
VERSO 53: Dessa maneira, derrotando todos os reis adversários, a Suprema Personalidade de Deus levou a filha de Bhīṣmaka para Sua capital e casou-Se com ela segundo os preceitos védicos, ó protetor dos Kurus.
VERSO 54: Naquela ocasião, ó rei, houve grande júbilo em todos os lares de Yadupurī, cujos cidadãos amavam apenas a Kṛṣṇa, o chefe dos Yadus.
VERSO 55: Todos os homens e mulheres, cheios de júbilo e adornados com joias e brincos esplendorosos, reverentemente ofereceram presentes de casamento ao noivo e à noiva, que estavam vestidos com muito requinte.
VERSO 56: A cidade dos Vṛṣṇis parecia belíssima: havia altas colunas festivas e também arcadas decoradas com guirlandas de flores, flâmulas de tecido e joias preciosas. Arranjos auspiciosos de potes cheios d’água, incenso com perfume de aguru e lamparinas enfeitavam cada porta.
VERSO 57: As ruas da cidade foram limpas pelos elefantes embriagados pertencentes aos amados reis que eram convidados do matrimônio, e esses elefantes aumentaram ainda mais a beleza da cidade colocando troncos de bananeira e pés de noz de bétel em todas as portas.
VERSO 58: Os membros das famílias reais dos clãs de Kuru, Sṛñjaya, Kaikeya, Vidarbha, Yadu e Kunti encontravam-se alegremente entre as multidões de pessoas empolgadas que corriam de um lado para outro.
VERSO 59: Os reis e suas filhas ficaram totalmente maravilhados ao ouvirem a história do rapto de Rukmiṇī, a qual estava sendo glorificada em canções por toda parte.
VERSO 60: Os cidadãos de Dvārakā ficaram radiantes de alegria ao verem Kṛṣṇa, o Senhor de toda opulência, unido a Rukmiṇī, a deusa da fortuna.