Capítulo Um
Ensinamentos a Rūpa Gosvāmī
Śrīla Rūpa Gosvāmī, o irmão mais novo de Sanātana Gosvāmī, foi a Prayāga, atual Allahabad, com seu irmão mais novo Vallabha. Quando os dois irmãos souberam que o Senhor Śrī Caitanya Mahāprabhu estava lá, ficaram muito contentes e foram ver o Senhor. Naquele momento, o Senhor estava a caminho de visitar o templo de Bindu Mādhava. A caminho do templo, o Senhor estava cantando e dançando, e milhares de pessoas O seguiam. Alguns choravam, outros riam, alguns dançavam e outros cantavam, e alguns caíam no chão, oferecendo reverências ao Senhor. E todos estavam clamando o santo nome: “Kṛṣṇa! Kṛṣṇa!” Afirma-se que, apesar de estar na confluência dos rios Ganges e Yamunā, Prayāga nunca foi inundada até a aparição de Caitanya Mahāprabhu, momento em que a cidade foi inundada pelo amor a Kṛṣṇa.
Os dois irmãos, Rūpa Gosvāmī e Vallabha, ficaram afastados em um lugar pouco frequentado e testemunharam a grande multidão e a cena maravilhosa. Quando o Senhor dançava, Ele levantava os braços e gritava: “Haribol! Haribol!” As pessoas ao Seu redor ficavam maravilhadas ao ver Suas atividades. De fato, é difícil descrever essa cena extraordinária.
Depois de visitar o templo, o Senhor aceitou prasāda (alimento oferecido à Deidade) na casa de um brāhmaṇa de Deccan (sul), com quem Ele tinha familiaridade. Enquanto estava sentado sozinho na casa do brāhmaṇa, o Senhor foi visitado por Rūpa Gosvāmī e Vallabha. De longe, os dois irmãos se prostraram no chão para oferecer reverências e recitaram muitos versos sânscritos das escrituras. Quando o Senhor viu Rūpa Gosvāmī oferecendo reverências diante dEle, ficou muito satisfeito e disse: “Meu querido Rūpa, por favor, levante-se.” O Senhor, então, informou a Rūpa Gosvāmī sobre a misericórdia sem causa de Kṛṣṇa para com ele, pois Kṛṣṇa acabara de libertá-lo da vida materialista, que é baseada simplesmente em dinheiro, dinheiro e dinheiro.
O Senhor aceitou os dois irmãos como Seus devotos e citou um verso das escrituras afirmando que o Senhor não aceitará um brāhmaṇa que tenha estudado os quatro Vedas se ele não for um devoto, mas Ele aceitará alguém de uma família muito humilde se ele for um devoto puro. Então, o Senhor abraçou os dois irmãos e, por Sua misericórdia sem causa, tocou suas cabeças com Seus pés de lótus. Abençoados dessa forma, os irmãos ofereceram orações ao Senhor com suas próprias palavras. As orações indicavam que o Senhor Śrī Kṛṣṇa Caitanya Mahāprabhu era o próprio Kṛṣṇa, que Ele havia assumido uma forma de tez clara (gaurāṅga) e que Ele era a encarnação mais generosa de Kṛṣṇa porque estava distribuindo amor por Kṛṣṇa. Śrīla Rūpa Gosvāmī também recitou um verso posteriormente encontrado no livro Govinda-līlāmṛta (1.2):
yo ’jñāna-mattaṁ bhuvanaṁ dayālur
ullāghayann apy akarot pramattam
sva-prema-sampat-sudhayādbhutehaṁ
śrī-kṛṣṇa-caitanyam amuṁ prapadye
“Que eu me renda aos pés de lótus de Śrī Kṛṣṇa Caitanya Mahāprabhu, que é a maior e mais misericordiosa Personalidade de Deus. Ele salva aqueles que estão imersos na ignorância e lhes oferece o maior presente, o amor por Kṛṣṇa, e assim os faz ficarem loucos pela consciência de Kṛṣṇa.”
Depois desse incidente, Vallabha Bhaṭṭa convidou o Senhor para ir ao outro lado do Ganges, e o Senhor o fez. Nessa viagem, Rūpa Gosvāmī acompanhou o Senhor e, de fato, para onde quer que o Senhor fosse, Rūpa Gosvāmī O seguia e ficava com Ele. Como o Senhor Se sentia incomodado em lugares com muitas pessoas, pediu a Rūpa Gosvāmī que O acompanhasse a um lugar nas margens do Ganges conhecido como Daśāśvamedha-ghāṭa. Durante dez dias, Ele instruiu Rūpa Gosvāmī sobre a verdade de Kṛṣṇa, os princípios do serviço devocional e os sabores transcendentes (relacionamentos com Kṛṣṇa). Tudo isso foi descrito em detalhes completos para que, no futuro, Rūpa Gosvāmī pudesse compartilhar a ciência de Kṛṣṇa em seu livro Bhakti-rasāmṛta-sindhu. Śrīla Rūpa Gosvāmī descreveu esse incidente no primeiro verso do Bhakti-rasāmṛta-sindhu, no qual ele fala sobre a misericórdia sem causa do Senhor para com ele.
O Senhor Supremo é consciente e todo-poderoso, e, por Sua misericórdia sem causa, Ele capacita uma entidade viva a receber Sua misericórdia. As pessoas em geral, estando sob o feitiço da vida condicionada, são avessas a prestar serviço devocional e praticar a consciência de Kṛṣṇa. Elas desconhecem os ensinamentos da consciência de Kṛṣṇa, que revelam a relação eterna da pessoa com a Suprema Personalidade de Deus, o processo pelo qual se pode retornar ao mundo espiritual e o objetivo final da vida, que é voltar ao lar, voltar ao Supremo. Por essas coisas serem desconhecidas pela alma condicionada, o Senhor Caitanya, por Sua misericórdia sem causa, instruiu Rūpa Gosvāmī nos princípios do serviço devocional. Mais tarde, Rūpa Gosvāmī distribuiu essa ciência para as pessoas em geral.
No prólogo do Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.1.2), Rūpa Gosvāmī descreve o Senhor Caitanya da seguinte forma:
hṛdi yasya preraṇayā
pravartito ’haṁ varāka-rūpo ’pi
tasya hareḥ pada-kamalaṁ
vande caitanya-devasya
“Ofereço minhas respeitosas reverências aos pés de lótus do Senhor Caitanyadeva, a Suprema Personalidade de Deus, porque Ele inspirou em meu coração o desejo de escrever algo sobre o serviço devocional. Por essa razão, estou escrevendo este livro sobre a ciência da devoção conhecido como Bhakti-rasāmṛta-sindhu.”
Começando Seus dez dias de instrução contínua para Rūpa Gosvāmī, o Senhor Śrī Caitanya Mahāprabhu disse: “Meu querido Rūpa, a ciência do serviço devocional é como um grande oceano, de modo que não é possível mostrar-lhe todo o seu comprimento e largura. Mas vou tentar explicar a natureza desse oceano pegando apenas uma gota dele. Desta forma, você poderá prová-lo e entender o que esse oceano de serviço devocional realmente é.”
O Senhor, então, explicou que, dentro deste brahmāṇḍa, ou universo, existem inúmeras entidades vivas que, de acordo com suas próprias atividades fruitivas, estão transmigrando de uma espécie de vida para outra e de um planeta para outro. Dessa forma, seu aprisionamento na existência material segue desde tempos imemoriais. Na realidade, essas entidades vivas são partes atômicas e parcelas do Espírito Supremo. Afirma-se na Śvetāśvatara Upaniṣad que o comprimento e a largura da alma individual é 1/10.000 da ponta de um cabelo. A magnitude atômica da entidade viva é confirmada no Décimo Primeiro Canto do Śrīmad-Bhāgavatam (11.16.11). E no Décimo Canto (10.87.30), Sanandana-kumāra, enquanto realizava um grande sacrifício, cita a seguinte declaração dos Vedas personificados: “Ó Verdade Suprema! Se as entidades vivas não fossem centelhas infinitesimais do Espírito Supremo, cada centelha minúscula seria onipresente e não poderia ser controlada por um poder superior. Mas se a entidade viva é aceita como uma parte minúscula do Senhor Supremo, pode-se entender automaticamente como ela é controlada pelo poder supremo. Esta é sua posição constitucional real, e se ela permanece nessa posição, pode alcançar total liberdade. Se alguém considera erroneamente sua posição constitucional como sendo igual à da Suprema Personalidade de Deus, ele se contamina pela doutrina da não dualidade, e seus esforços na vida transcendental se tornam ineficazes.”
O Senhor Caitanya prosseguiu com Seus ensinamentos apontando que há dois tipos de entidades vivas: as eternamente liberadas e as eternamente condicionadas. As entidades vivas eternamente condicionadas podem ser divididas em dois tipos, as móveis e as imóveis. Aquelas que permanecem em um lugar – como árvores, por exemplo – são classificadas como sthāvara, ou entidades imóveis, e aquelas que se movem – como pássaros e animais – são chamadas jaṅgama, ou entidades móveis. As entidades móveis são ainda divididas em três categorias: aquelas que voam no céu, aquelas que nadam na água e aquelas que caminham na terra. Entre os muitos milhões e trilhões de entidades vivas na terra, os seres humanos são muito poucos. Dentro desse pequeno número de seres humanos, a maioria é totalmente ignorante da ciência espiritual, é impura em seus hábitos e não tem fé na existência da Suprema Personalidade de Deus. Em resumo, a maioria dos seres humanos vive como animais. Portanto, estes podem ser deduzidos do número de seres humanos que constituem a sociedade humana civilizada.
Dificilmente encontramos seres humanos que acreditam nos Vedas e na existência de Deus, ou mesmo em comportamento adequado. Aqueles que acreditam nessas coisas e no avanço na vida espiritual são conhecidos como Āryans. Dos que acreditam nos Vedas e no avanço da civilização humana, existem duas classes – os justos e os injustos. Aqueles que são justos geralmente realizam atividades fruitivas para obter algum resultado bom para a gratificação dos sentidos. Entre muitas pessoas que se engajam em atividades justas para a gratificação dos sentidos, apenas algumas vêm a conhecer a Verdade Absoluta. Estes são chamados de jñānīs, filósofos empíricos em busca da Verdade Absoluta. Entre centenas e milhares desses filósofos empíricos, apenas alguns realmente alcançam a libertação. Quando alguém está liberado, ele entende teoricamente que a entidade viva não é composta de elementos materiais, mas é um alma espiritual, distinta da matéria. Apenas compreendendo esta doutrina, mesmo teoricamente, alguém se qualifica como um mukta, ou alma libertada. Mas o verdadeiro mukta é aquele que entende sua posição constitucional como parte integrante do Senhor e como Seu servo eterno. Tais almas liberadas se ocupam com fé e devoção no serviço do Senhor, e são chamadas de kṛṣṇa-bhaktas, ou pessoas conscientes de Kṛṣṇa.
Kṛṣṇa-bhaktas estão livres de todos os desejos materiais. Embora aqueles que estejam teoricamente liberados ao saberem que a entidade viva não é material possam ser classificados entre as almas liberadas, eles ainda têm desejos. Seu principal desejo é tornar-se um com a Suprema Personalidade de Deus. Tais pessoas são muito apegadas à realização de rituais védicos e atividades justas para desfrutar de prosperidade material. Mesmo quando alguns transcendem o desfrute material, ainda tentam desfrutar no mundo espiritual ao se fundirem na existência do Senhor Supremo. Alguns deles também desejam alcançar poderes místicos através da execução de yoga. Enquanto qualquer um desses desejos estiver no coração de uma pessoa, ela não pode entender a natureza do serviço devocional puro e, por estar constantemente agitada por tais desejos, não está em paz. De fato, enquanto houver qualquer desejo por perfeição material, não se pode estar em paz. Uma vez que os devotos do Senhor Kṛṣṇa não desejam nada material, eles são as únicas pessoas pacíficas dentro deste mundo material. Isso é confirmado no Śrīmad-Bhāgavatam (6.14.5):
muktānām api siddhānāṁ
nārāyaṇa-parāyaṇaḥ
su-durlabhaḥ praśāntātmā
koṭiṣv api mahā-mune
“Ó grande sábio, entre muitos milhões de pessoas liberadas e pessoas que alcançaram sucesso no yoga místico, é muito raro encontrar alguém que seja completamente dedicado à Suprema Personalidade de Deus e, portanto, seja pleno de paz.”
O Senhor Caitanya, então, explicou que, dos muitos milhares e milhões de entidades vivas vagando no mundo material, aquele que, pela graça do Senhor Kṛṣṇa e do mestre espiritual, recebe a semente do serviço devocional é muito raro e afortunado. Um homem piedoso ou religioso geralmente está inclinado a adorar deidades em vários templos, mas se por acaso, mesmo sem o seu conhecimento, ele oferece suas reverências e respeitos de adoração ao Senhor Viṣṇu e recebe o favor de um vaiṣṇava, um devoto do Senhor, nesse momento ele adquire o recurso necessário para se aproximar da Suprema Personalidade de Deus. Isso é facilmente compreendido a partir da história do grande sábio Nārada, que é relatada no Śrīmad-Bhāgavatam. Ao servir vaiṣṇavas em sua vida anterior, Nārada foi favorecido por aqueles devotos do Senhor e tornou-se o grande sábio Nārada Muni.
Os vaiṣṇavas, ou devotos, costumam ter muita compaixão das almas condicionadas. Mesmo sem ser convidado, o devoto vai de porta em porta para iluminar as pessoas e tirá-las da escuridão da ignorância, infundindo-lhes o conhecimento através do qual possam compreender a posição constitucional da entidade viva como serva do Senhor Kṛṣṇa. Tais devotos são capacitados pelo Senhor a distribuir a consciência devocional, ou consciência de Kṛṣṇa, ao povo em geral. Eles são conhecidos como mestres espirituais autorizados, e é por sua misericórdia que a alma condicionada obtém a semente do serviço devocional. A misericórdia imotivada da Suprema Personalidade de Deus é apreciada principalmente quando alguém entra em contato com um mestre espiritual genuíno que pode levar a alma condicionada à posição mais elevada da vida devocional. Por isso, o Senhor Caitanya disse que, pela graça do mestre espiritual, pode-se alcançar a misericórdia imotivada do Senhor, e, pela graça da Suprema Personalidade de Deus, pode-se alcançar a misericórdia do mestre espiritual autêntico.
Logo, pela misericórdia do mestre espiritual e de Kṛṣṇa, alguém recebe a semente do serviço devocional. Ele precisa apenas semeá-la no campo do seu coração, assim como um jardineiro cultiva a semente de uma árvore valiosa. Após plantar esta semente, deve-se regá-la, cantando e ouvindo o santo nome do Senhor Supremo ou participando de conversas sobre a ciência do serviço devocional numa sociedade de devotos puros. Ao brotar da semente da devoção, a planta do serviço devocional começa a crescer livremente. Ao atingir o seu crescimento completo, ela ultrapassa o comprimento e a largura deste universo e entra na atmosfera transcendental, onde tudo está imerso na refulgência do brahmajyoti. Esta planta inclusive penetra este brahmajyoti e pouco a pouco entra no planeta conhecido como Goloka Vṛndāvana, onde se abriga aos pés de lótus de Kṛṣṇa. Esta é a meta última do serviço devocional. Após alcançar esta posição, a planta produz frutos, conhecidos como frutos do amor por Deus. Entretanto, é necessário que o devoto, ou jardineiro transcendental, diariamente regue a planta com o ato de cantar e ouvir. A menos que se utilizem estes dois processos para regar a planta, ela acabará definhando.
O Senhor Caitanya explicou a Rūpa Gosvāmī que se poderiam encontrar certos perigos enquanto se rega a raiz da planta do serviço devocional. Depois que a planta crescesse um pouquinho, poderia aparecer um animal e comê-la ou destruí-la. Quando as folhas verdes de uma planta são comidas por algum animal, geralmente ela morre. O animal considerado mais perigoso é o elefante louco, pois, se entra num jardim, um elefante louco causa um tremendo estrago nas plantas e árvores. Uma ofensa a um devoto puro do Senhor é chamada vaiṣṇavāparādha, a ofensa do elefante louco. No desempenho do serviço devocional, uma ofensa aos pés de um devoto puro pode ser devastadora. Por isso, deve-se proteger a planta de bhakti dando-lhe o devido cuidado e precavendo-se para não cometer ofensas. Se alguém é cauteloso, a planta poderá medrar adequadamente.
São dez as principais ofensas que podem ser cometidas contra o santo nome. A primeira é blasfemar os grandes devotos que tentam propagar as glórias do santo nome mundo afora. O santo nome de Kṛṣṇa não é diferente de Kṛṣṇa, e alguém que tenta propagar os santos nomes mundo afora é muito querido dEle. O próprio Kṛṣṇa não tolera ofensas contra Seus devotos puros. A segunda ofensa é negar que o Senhor Viṣṇu é a Verdade Absoluta. Não existe diferença entre Seu nome, qualidade, forma, passatempos e atividades, e aquele que vê alguma diferença é considerado ofensor. O Senhor é Supremo, e ninguém é igual ou superior a Ele. Logo, se alguém pensa que os nomes do Senhor não são diferentes dos nomes dos semideuses, comete uma ofensa. Jamais deve alguém considerar que o Senhor Supremo e os semideuses estão no mesmo nível.
A terceira ofensa é considerar o mestre espiritual autêntico como um homem comum. A quarta ofensa é blasfemar a literatura védica e escrituras autorizadas, tais como os Purāṇas. A quinta ofensa é considerar como exageradas as glórias atribuídas aos santos nomes. A sexta ofensa é criar teorias pervertidas referentes ao santo nome. A sétima ofensa é cometer atividades pecaminosas apoiando-se no cantar do santo nome. Compreende-se que, cantando os santos nomes, a pessoa livra-se de todas as reações pecaminosas, mas isto não significa que ela possa agir pecaminosamente apoiando-se no cantar. Esta é a maior ofensa. A oitava ofensa é considerar que os rituais religiosos, austeridades, sacrifícios ou outras formas de renúncia são iguais ao cantar do santo nome. Cantar o santo nome equipara-se a associar-se com a Suprema Personalidade de Deus. As atividades piedosas são apenas meios de aproximar-se da Suprema Personalidade de Deus, e podem inclusive ser executadas visando a algum benefício material. A nona ofensa é pregar as glórias do santo nome de Deus a uma pessoa infiel, que não está interessada em ouvi-las. A décima e última ofensa é manter apegos materiais mesmo após ouvir e cantar os santos nomes de Deus. A ideia é que, cantando o santo nome sem cometer ofensas, a pessoa pode elevar-se à plataforma liberada. Na plataforma liberada, ela livra-se de todos os apegos materiais. Portanto, se alguém canta os santos nomes e continua tendo apegos materiais, é porque deve estar cometendo alguma ofensa.
Existem também outros fatores que perturbam a planta do serviço devocional. Juntamente com esta planta, também crescem as ervas daninhas sob a forma de desejos materiais. Quando alguém avança em bhakti, é natural que muitas pessoas se apresentem a ele, pedindo para serem seus discípulos e lhe ofereçam alguns benefícios materiais. Se alguém se sente atraído a ter um grande número de discípulos e às conveniências materiais oferecidas por esses discípulos e esquece seu dever como mestre espiritual genuíno, o crescimento da planta ficará impedido. Pelo simples fato de querer aproveitar-se das conveniências materiais, a pessoa pode ficar inclinada a desfrutar de confortos materiais.
Também é considerada uma desvantagem desejar a liberação. O único desejo deve ser o desejo de prestar serviço. Negligenciar as restrições e proibições também é desfavorável. As proibições são mencionadas nas escrituras autorizadas: ninguém deve entregar-se à vida sexual ilícita, à intoxicação, ao consumo de carne e à jogatina. Estas coisas são proibidas aos que estão procurando realizar serviço devocional. Se alguém não segue estes princípios estritamente, poderá haver severas perturbações no desempenho do serviço devocional.
Se alguém não toma os devidos cuidados, e além do mais deixa de regar a planta do serviço devocional, ervas inúteis crescerão e cercearão o progresso. A ideia é que, quando alguém rega um jardim, não apenas a planta desejada crescerá mais rápido, mas as plantas indesejáveis também crescerão. Se o jardineiro não vê estes obstáculos e elimina-os, eles dominarão e sufocarão a planta da devoção. Se, todavia, formos cuidadosos em impedir o crescimento das plantas indesejáveis, a planta da devoção crescerá exuberantemente e alcançará a meta última, Goloka Vṛndāvana. Ao saborear o fruto do amor a Deus, a entidade viva ocupada em serviço devocional se esquece de todos os rituais religiosos e melhorias de sua condição econômica. Ela perde o desejo de satisfazer seus sentidos, e não mais deseja tornar-se una com o Senhor Supremo, fundindo-se em Sua refulgência.
Existem muitas fases de conhecimento espiritual e bem-aventurança transcendental. Em uma plataforma, estão os sacrifícios ritualísticos recomendados nos Vedas, a execução de austeridades e deveres piedosos, e a prática do yoga místico. Todos eles propiciam diferentes resultados a quem os pratica. Entretanto, as recompensas destas práticas aparentam ser muito brilhantes para alguém que não se elevou ao transcendental serviço amoroso ao Senhor. O amor por Deus está latente em todos, e através da execução de serviço devocional puro, pode ser despertado de sua posição adormecida, assim como uma pessoa mordida por uma serpente pode ser despertada através do uso da amônia.
Depois de falar estas palavras sobre serviço devocional, o Senhor Caitanya começou a descrever o serviço devocional e seus sintomas a Rūpa Gosvāmī. Ele explicou que, no serviço devocional puro, pode haver única e exclusivamente o desejo de avançar em consciência de Kṛṣṇa. Na consciência de Kṛṣṇa, nem se cogita em adorar qualquer semideus ou qualquer outra forma de Kṛṣṇa. Tampouco alguém se deixa levar pela especulação filosófica empírica ou pelas atividades fruitivas. A pessoa deve estar livre de todas essas contaminações. O devoto deve aceitar apenas aquilo que lhe é favorável para manter-se vivo e deve rejeitar tudo aquilo que aumenta as exigências do corpo. Somente as necessidades mínimas para o sustento do corpo devem ser aceitas. Minimizando as necessidades corpóreas, pode-se primariamente devotar o tempo a cultivar a consciência de Kṛṣṇa mediante o cantar dos santos nomes de Deus. Serviço devocional puro significa ocupar todos os sentidos do corpo a serviço do Senhor. Atualmente, todos os nossos sentidos recebem designações porque o corpo recebe designações. Consequentemente, pensamos que este corpo pertence a uma determinada sociedade ou a um determinado país ou determinada família. Desse modo, o corpo é preso a tantas designações. Da mesma forma, os sentidos pertencem ao corpo, e quando o corpo está sujeito a essas designações, os sentidos também o estão. Assim, os sentidos ocupam-se em benefício da família, sociedade, nação e assim por diante. Quando exercem essas ocupações, não podem cultivar consciência de Kṛṣṇa. Os sentidos devem purificar-se, e isto é possível quando alguém compreende claramente que pertence a Kṛṣṇa e que sua vida pertence a Kṛṣṇa. O devoto deve ver que, em sua identidade, ele é servo eterno de Kṛṣṇa. Desse modo, podem-se ocupar os sentidos a serviço do Senhor. Tal ocupação chama-se serviço devocional puro.
O devoto puro aceita o transcendental serviço amoroso ao Senhor, mas rejeita todo tipo de liberação através da qual consiga o seu próprio gozo sensorial. No Śrīmad-Bhāgavatam, (3.29.11-13) o Senhor Kapila explica que, tão logo um devoto puro ouve as glórias e as qualidades transcendentais da Suprema Personalidade de Deus, que está situado nos corações de todos, sua mente corre em direção ao Senhor, assim como as águas do Ganges correm para o oceano. Tal atração espontânea ao serviço à Suprema Personalidade de Deus é muito importante para o serviço devocional puro.
O serviço devocional é puro quando alguém se ocupa a serviço do Senhor Supremo sem nenhum interesse pessoal e sem se deixar intimidar por impedimentos materiais. O devoto puro não deseja viver no mesmo planeta do Senhor Supremo, nem deseja a mesma opulência do Senhor, nem deseja ter a mesma forma do Senhor, nem viver ao lado dEle, nem se fundir em Sua existência, etc. Mesmo que o Senhor oferecesse estas recompensas ao devoto, ele as rejeitaria. O fato é que o devoto está tão absorto no transcendental serviço amoroso ao Senhor que não tem tempo para pensar em algum benefício além de sua atual ocupação. Assim como um habitual homem de negócios materialista não pensa em nada mais quando está absorto em seus negócios, um devoto puro, quando ocupado no serviço ao Senhor, não pensa em nada além dessa ocupação.
Se alguém está tão absorto em prestar serviço, pode ser tido como estando elevado à posição máxima de bhakti. Apenas mediante esse transcendental serviço amoroso é possível alguém ultrapassar a influência de māyā e saborear amor puro por Deus. Enquanto alguém desejar benefícios ou liberação materiais, que são chamados as duas bruxas da sedução, não poderá sentir o sabor do transcendental serviço amoroso ao Senhor Supremo.
Existem três fases de serviço devocional: a primeira é a etapa inicial de cultivo; a segunda é a realização de serviço; e a terceira, a etapa suprema, é a obtenção de amor por Deus. Existem nove diferentes métodos de cultivo de serviço devocional – tais como ouvir, cantar, lembrar, etc. –, e todos estes processos são utilizados na primeira etapa. Se alguém está ocupado em cantar e ouvir com fé e devoção, seus receios materiais aos poucos são eliminados. À medida que sua fé no serviço devocional vai aumentando, ele torna-se ciente de uma posição perfectiva mais elevada. Desse modo, ele pode tornar-se firmemente fixo na devoção, aumentar o gosto por ela, tornar-se apegado e sentir êxtase. Este êxtase surge na fase preliminar de amor por Deus. A obtenção do êxtase é produzida pela execução de serviço devocional. Quando alguém continua o processo de ouvir e cantar, o apego cresce e assume o nome de amor por Deus.
Quando alguém alcança a terceira etapa de transcendental amor por Deus, continuam surgindo sintomas conhecidos como afeição transcendental, emoção, êxtase, e apego extremo e intenso, que são tecnicamente conhecidos pelos termos rāga, anurāga, bhāva e mahābhāva. O progresso de uma fase a outra pode ser comparado ao espessamento do caldo de açúcar-cande. Na primeira etapa, o caldo de açúcar-cande é como um líquido fino. Quando, por evaporação, este se torna cada vez mais grosso, transforma-se em melado. Finalmente, torna-se granulado, surgindo açúcar, açúcar em pedra e assim por diante. Assim como o caldo de açúcar progride de uma etapa a outra, do mesmo modo, o amor transcendental pelo Senhor Supremo desenvolve-se por etapas.
Quando alguém realmente se situa na plataforma transcendental, ele torna-se fixo. A menos que atinja essa situação, sua posição talvez não seja firme, e ele poderá cair. Quando alguém está de fato situado transcendentalmente, não há perigo de ele cair. Esta etapa de compreensão é tecnicamente chamada sthāyi-bhāva. Existem etapas ainda além desta posição, e são conhecidas como vibhāva, anubhāva, sāttvika e vyabhicārī. Depois de as alcançar, existe um verdadeiro intercâmbio de rāsa, ou atividade transcendental, com o Senhor Supremo. Esta troca de reciprocações amorosas entre o amante e o amado é geralmente chamada kṛṣṇa-bhakti-rasa. Deve-se notar que os intercâmbios amorosos transcendentais se situam na posição fixa de sthāyi-bhāva, como explicado antes. O princípio básico de vibhāva é sthāyi-bhāva, e todas as outras atividades são coadjuvantes no desenvolvimento do amor transcendental.
O êxtase de amor transcendental tem dois componentes – o contexto e a causa de enlevo. O contexto também se divide em duas partes – o sujeito e o objeto. A troca de serviço devocional é o sujeito, e Kṛṣṇa, o objeto. As qualidades transcendentais são a causa do enlevo. Isto significa que as qualidades transcendentais de Kṛṣṇa estimulam o devoto a servi-lO. Os filósofos impersonalistas (māyāvādīs) dizem que a Verdade Absoluta não tem qualidades específicas, mas os filósofos vaiṣṇavas afirmam que a Verdade Absoluta é descrita como nirguṇa (sem qualidades) porque Ele não tem qualidades materiais. Com isto, não se deve deduzir que Ele não tem qualidades espirituais. Com efeito, as qualidades espirituais do Senhor são tão grandes e encantadoras que podem atrair até mesmo a pessoa liberada. Isto é explicado no verso ātmārāma do Śrīmad-Bhāgavatam, onde se diz que aqueles já situados na plataforma da autorrealização sentem-se atraídos às qualidades transcendentais de Kṛṣṇa. Isto significa que as qualidades de Kṛṣṇa não são materiais, mas puras e transcendentais.
A fase superior de êxtase pode ser caracterizada pelas treze seguintes atividades transcendentais: (1) dançar; (2) rolar no chão; (3) cantar; (4) bater palmas; (5) arrepio dos pelos do corpo; (6) vociferar; (7) bocejar; (8) respiração laboriosa; (9) esquecimento de convenções sociais; (10) salivar; (11) rir; (12) sentir dor; e (13) tossir. Estes sintomas não são todos despertados simultaneamente; eles ocorrem de acordo com a troca de relações transcendentais. Algumas vezes, um sintoma é proeminente, e outras vezes, outro sintoma sobressai.
As rāsas, ou relacionamentos transcendentais, podem ser divididas em cinco. Na fase inicial, chamada śānta-rati, a pessoa que está liberada da contaminação material aprecia a grandeza da Suprema Personalidade de Deus. Aquele que alcança esta etapa, na verdade, não se ocupa no transcendental serviço amoroso ao Senhor, pois existe apenas neutralidade.
Na segunda etapa, que é chamada dāsya-rati, a pessoa aprecia a sua posição de eterno subordinado do Senhor Supremo, e compreende que é eternamente dependente da misericórdia imotivada da Pessoa Suprema. Ao mesmo tempo, surge uma afeição natural, tal como acontece a um filho que cresce e começa a apreciar as bênçãos de seu pai. Nesta etapa, a entidade viva quer servir o Senhor Supremo ao invés de servir māyā, ilusão.
Na terceira etapa, chamada sakhya-rati, desenvolve-se amor transcendental, e a pessoa associa-se com o Supremo reciprocando o mesmo amor e respeito. À medida que esta etapa continua se desenvolvendo, existem gracejos e intercâmbios descontraídos, tais como risos e assim por diante. Neste nível, existe uma troca fraternal com a Pessoa Suprema, e fica-se livre de todo o cativeiro. Nesta etapa, a pessoa praticamente se esquece de sua posição inferior como entidade viva, mas ao mesmo tempo tem o maior respeito pela Pessoa Suprema.
Na quarta etapa, chamada vātsalya-rati, a afeição fraterna evidenciada na fase precedente desenvolve-se em afeição parental. É então que a entidade viva tenta ser o pai de Deus. Ao invés de adorar o Senhor, a entidade viva, como pai ou mãe do Supremo, torna-se objeto de adoração para a Pessoa Suprema. Nesta etapa, o Senhor depende da misericórdia de Seu devoto puro e, colocando-Se aos cuidados deste, fica sob o seu controle. O devoto que alcança esta etapa assume a posição em que pode abraçar o Senhor Supremo e mesmo beijar-Lhe a cabeça.
Na quinta etapa, chamada madhura-rati, existe um verdadeiro intercâmbio transcendental de amor conjugal entre a amante e o amado. É nesta etapa que Kṛṣṇa e as donzelas de Vraja olham-se mutuamente, pois, nesta plataforma, existe uma troca de olhares amorosos, movimentos dos olhos, palavras agradáveis, sorrisos atraentes, etc.
Além destas cinco rāsas (relações) primárias, há sete rāsas secundárias, que consistem em rir, ter visões maravilhosas, praticar relações cavalheirescas, sentir compaixão, ter ira, experimentar horror e devastação. Por exemplo, Bhīṣma relacionou-se com Kṛṣṇa como um guerreiro que convive numa rāsa cavalheiresca. Hiraṇyakaśipu, todavia, experimentou o sentimento vivido na rāsa de horror e devastação. As cinco rāsas primárias permanecem constantemente no coração do devoto puro, e as sete rāsas secundárias, às vezes, aparecem e desaparecem para enriquecer os sabores e doçuras das rāsas primárias. Após enriquecerem as rāsas primárias, elas desaparecem.
Como exemplos de śānta-bhaktas, ou devotos na fase neutra, podemos citar os nove yogīs chamados Kavi, Havi, Antarīkṣa, Prabuddha, Pippalāyana, Āvirhotra, Draviḍa ou Drumila, Camasa e Karabhājana. Os quatro Kumāras (Sanaka, Sanandana, Sanatkumāra e Sanātana) também são exemplos de pessoas que estão situadas nesta etapa. Exemplos de devotos da segunda fase, a fase dāsya, na qual há servidão, são Raktaka, Citraka e Patraka na rāsa de Gokula. Todos eles agiam como servos de Kṛṣṇa. Em Dvārakā, existe Dāruka, e nos planetas Vaikuṇṭhas, existem Hanumān e outros. Devotos na terceira fase, a fase de amizade, são Śrīdāmā em Vṛndāvana e Bhīma e Arjuna em Dvārakā e no campo de batalha de Kurukṣetra. Existem muitos outros também. Quanto àqueles que se relacionam com Kṛṣṇa em amor parental, incluem-se aí Yaśodā e Mahārāja Nanda – isto é, a mãe, o pai, o tio e esses tipos de parentes de Kṛṣṇa. Em amor conjugal, existem as donzelas de Vraja, Vṛndāvana, e as rainhas e deusas da fortuna em Dvārakā. Ninguém pode contar o imenso número de devotos que participam desta rāsa.
O apego a Kṛṣṇa também pode ser dividido em duas categorias. Em uma plataforma, existe apego com respeito e veneração. Esta classe de apego pode caracterizar-se por certa ausência de liberdade, e é exibida em Mathurā e nos planetas Vaikuṇṭhas. Nessas moradas do Senhor, o espírito de transcendental serviço amoroso fica restrito. Todavia, em Gokula Vṛndāvana, o amor é vivido livremente, e embora saibam que Kṛṣṇa é a Suprema Personalidade de Deus, os vaqueirinhos e as donzelas de Vṛndāvana não agem com reverência e veneração devido à grande intimidade do seu relacionamento com Ele. Nos cinco relacionamentos transcendentais principais, o respeito e a veneração são, às vezes, impedimentos que obscurecem a verdadeira grandeza do Senhor e, às vezes, chegam inclusive a impedir a prestação de serviço ao Senhor. Entretanto, quando existe amizade, afeição parental e amor conjugal, esse respeito e veneração ficam reduzidos. Por exemplo, quando Kṛṣṇa apareceu como filho de Vasudeva e Devakī, Seus pais oraram ao Senhor com respeito e veneração porque compreenderam que o Supremo Senhor Kṛṣṇa ou Viṣṇu havia aparecido diante deles como seu filhinho. Confirma isto o Śrīmad-Bhāgavatam (10.44.51). Embora o Senhor Supremo estivesse presente como filho deles, Devakī e Vasudeva começaram a oferecer-Lhe orações. De modo semelhante, ao ver a forma universal do Senhor, Arjuna ficou tão amedrontado que pediu que Kṛṣṇa lhe perdoasse por ele ter se comportado como Seu amigo íntimo. Como amigo, Arjuna frequentemente dirigia-se ao Senhor sem nenhuma cerimônia e, ao ver a aterrorizante forma universal, Arjuna disse:
sakheti matvā prasabhaṁ yad uktaṁ
he kṛṣṇa he yādava he sakheti
ajānatā mahimānaṁ tavedaṁ
mayā pramādāt praṇayena vāpi
“Meu querido Kṛṣṇa, às vezes eu te insultei chamando-te de ‘meu querido amigo Krishna’ sem conhecer a grandeza do Teu poder inconcebível. Por favor, me perdoa. Eu estava destituído de lucidez para me dirigir a Ti como um amigo comum ou um homem comum.” (Bhagavad-gītā 11.41)
Do mesmo modo, quando Kṛṣṇa estava pregando peças em Rukmiṇī, ela temeu que Kṛṣṇa talvez a deixasse e ficou tão perturbada que derrubou o leque com que O estava abanando e desfaleceu, caindo inconsciente no chão.
Com relação a Yaśodā, a mãe de Kṛṣṇa em Vṛndāvana, afirma-se no Śrīmad-Bhāgavatam (10.8.45):
trayyā copaniṣadbhiś ca
sāṅkhya-yogaiś ca sātvataiḥ
upagīyamāna-māhātmyaṁ
hariṁ sāmanyatātmajam
A Personalidade de Deus, que é adorado através de todos os Vedas e Upaniṣads, bem como através do sistema de filosofia sāṅkhya e através de todas as escrituras autorizadas, foi considerado como tendo nascido em seu ventre. Afirma-se também (Śrīmad-Bhāgavatam 10.9.12) que mãe Yaśodā amarrou o menino Kṛṣṇa com uma corda, como se Ele fosse um filho comum que havia nascido de seu corpo. Do mesmo modo, existem outras passagens que descrevem Kṛṣṇa como se Ele fosse uma pessoa comum (Śrīmad-Bhāgavatam 10.18.24). De fato, quando Seus amigos, os vaqueirinhos, derrotavam-nO nos jogos, Kṛṣṇa carregava-os, – notadamente a Śrīdāmā – em Seus ombros.
A respeito das relações que as gopīs mantinham com Śrī Kṛṣṇa em Vṛndāvana, descreve-se (Śrīmad-Bhāgavatam 10.30.36-40) que quando Śrī Kṛṣṇa pegou Śrīmatī Rādhikā para ficarem sozinhos na dança da rāsa, Ela pensou que Kṛṣṇa havia deixado todas as outras gopīs. Embora elas possuíssem a mesma beleza, Ele Lhe causou essa satisfação, e Ela começou a pensar orgulhosamente: “Meu querido Senhor Kṛṣṇa abandonou as belas gopīs, e está satisfeito apenas comigo”. Na floresta, Ela disse a Kṛṣṇa: “Meu querido Kṛṣṇa, não consigo Me movimentar. Portanto, se preferires, leva-Me para onde desejares”. Kṛṣṇa respondeu: “Vem apoiar-Te em Meus ombros”, e tão logo disse isto, Ele desapareceu, deixando Śrīmatī Rādhikā muito aflita.
Quando Kṛṣṇa desapareceu da cena da dança da rāsa, todas as gopīs começaram a mortificar-se, dizendo: “Querido Kṛṣṇa, vimos aqui após termos largado nossos maridos, filhos, parentes, irmãos e amigos! Negligenciando seus conselhos, vimos a Ti, e mais do que qualquer outra pessoa sabes a razão pela qual vimos. Sabes que vimos porque fomos cativadas pelo doce som de Tua flauta. Mas és tão tratante que, na calada da noite, abandonaste moças e mulheres como nós! Isto não fica muito bem para Ti”.
A palavra śama significa controlar a mente e evitar que ela se desvie de várias maneiras, fixando-a na Suprema Personalidade de Deus. Quando alguém fixa Sua mente no Senhor Supremo, sabe-se que ele está situado na plataforma śama. Nesta plataforma, o devoto compreende que Kṛṣṇa é o princípio básico por trás de tudo o que está ao alcance de nossa experiência. Isto também é explicado na Bhagavad-gītā (7.19). Tal pessoa pode compreender que Kṛṣṇa está presente em tudo e distribui-Se por toda a manifestação cósmica. Embora tudo esteja sob o controle do Senhor Supremo e se situe em Sua energia, não obstante, tudo é diferente de Kṛṣṇa em Sua forma pessoal. Afirma-se também no Bhakti-rasāmṛta-sindhu que alguém que entende isto, alguém cuja inteligência está fixa em Kṛṣṇa, alcançou a plataforma de śama. Ademais, a Suprema Personalidade de Deus diz que śamo manniṣṭhatā buddheḥ: quem não se elevou à plataforma de śānta-rati, não poderá fixar-se no conhecimento que o capacite a entender a grandeza de Kṛṣṇa ou a expansão de Suas diferentes energias, que são a causa de todas as manifestações. Este mesmo ponto é explicado no Śrīmad-Bhāgavatam (11.19.36):
śamo man-niṣṭhatā buddher
dama indriya-saṁyamaḥ
titikṣā duḥkha-sammarṣo
jihvopastha-jayo dhṛtiḥ
A estabilidade mental pode ser alcançada por quem concluiu que a Suprema Personalidade de Deus é a fonte que origina tudo. E quando alguém pode controlar seus sentidos, isto é denominado śama. Quando alguém está disposto a tolerar todas as espécies de sofrimento a fim de controlar os sentidos e manter a mente fixa, isso se chama titikṣā, ou tolerância. E quando alguém pode controlar os impulsos da língua e dos órgãos genitais, isto é chamado dhṛtiḥ. A partir de dhṛtiḥ, a pessoa torna-se dhīra, pacífica. A pessoa pacífica nunca se deixa perturbar pelos impulsos da língua e dos órgãos genitais.
Se alguém consegue fixar a mente em Kṛṣṇa sem se desviar, poderá alcançar uma posição firme na consciência de Kṛṣṇa – śānta-rasa. Ao alcançar śānta-rasa, ele adquire fé inabalável em Kṛṣṇa, e todos os desejos materiais cessam. Estas características específicas de śānta-rasa – inabalável fé em Kṛṣṇa e cessação de todos os desejos que não têm ligação com Kṛṣṇa – são comuns a todas as outras rāsas também, assim como de um modo geral o som está presente em todos os outros elementos (ar, fogo, água e terra) porque ele é produzido do céu. De maneira semelhante, estas duas características de śānta-rasa estão presentes em outras relações transcendentais, tais como dāsya (servidão), sakhya (fraternidade), vātsalya (afeição parental), e madhura-rasa (amor conjugal).
Quando mencionamos algo que não é Kṛṣṇa, ou o desejo que não tem conexão com Kṛṣṇa, isto não significa que alguma coisa exista sem Kṛṣṇa. Realmente, não pode haver nada que não seja Kṛṣṇa porque tudo é produto da energia de Kṛṣṇa. Como Kṛṣṇa e Suas energias são idênticos, tudo é indiretamente Kṛṣṇa. Por exemplo, a consciência é comum a toda entidade viva, porém, quando a consciência é corretamente centralizada em Kṛṣṇa (consciência de Kṛṣṇa), ela é pura, e quando a consciência é centralizada em qualquer outra coisa que não seja Kṛṣṇa, ou quando é dirigida ao gozo dos sentidos, não poderá ser chamada consciência de Kṛṣṇa. Logo, é no estado contaminado que surge o conceito referente a algo diferente de Kṛṣṇa. No estado puro, todavia, só existe consciência de Kṛṣṇa.
Forte interesse em Kṛṣṇa – a compreensão de que Kṛṣṇa é meu ou que eu sou de Kṛṣṇa, e que, portanto, é meu dever satisfazer os sentidos de Kṛṣṇa – é típico de uma etapa superior à neutralidade de śānta-rasa. Pelo simples fato de compreender a grandeza de Kṛṣṇa, pode-se alcançar a fase de śānta-rasa, na qual o objeto adorável pode ser o Brahman impessoal ou o Paramātmā. A adoração ao Brahman impessoal e ao Paramātmā é conduzida por aqueles ocupados em especulação filosófica empírica e yoga místico. Todavia, quando alguém continua avançando em consciência de Kṛṣṇa, ou em compreensão espiritual, pode apreciar que Paramātmā, ou a Superalma, é o eterno objeto adorável, e rende-se a Ele. Bahūnāṁ janmanām ante jñānavān māṁ prapadyate (Bhagavad-gītā 7.19): “Depois de muitas e muitas vidas em que presta adoração ao Brahman e ao Paramātmā, quando alguém aceita Vāsudeva como o supremo mestre e se coloca como servo eterno de Vāsudeva, torna-se uma grande alma transcendentalmente realizada”. Nesta hora, devido a seu ininterrupto relacionamento com a Suprema Verdade Absoluta, ele começa a prestar algum tipo de transcendental serviço amoroso à Suprema Personalidade de Deus. Desse modo, a relação neutra conhecida como śānta-rasa transforma-se em dāsya-rasa, servidão.
Na plataforma de dāsya-rasa, torna-se manifesta uma imensa quantidade de respeito e veneração ao Senhor Supremo. Isto é, na dāsya-rasa, aprecia-se a grandeza do Senhor Supremo. Neste ponto, é bom notar que, na plataforma de śānta-rasa, não existe atividade espiritual, mas na plataforma de dāsya-rasa, começa-se a prestar serviço. Logo, na dāsya-rasa está presente a qualidade inerente à śānta-rasa, e, além disso, presta-se serviço transcendental.
As qualidades transcendentais decerto estão presentes na śānta-rasa e dāsya-rasa, mas além destas, existe outra qualidade, apego íntimo, que é amor transcendental puro. Esta confiança amorosa na Suprema Personalidade de Deus é tecnicamente conhecida como viśrambha. Na plataforma de viśrambha, fraternidade, não existe um sentido de temor ou veneração à Suprema Personalidade de Deus. Desse modo, na relação fraterna transcendental conhecida como sakhya-rasa, existem três características transcendentais: a sensação de grandeza; a sensação de prestar serviço; e a sensação de intimidade sem temor ou veneração. Logo, na sakhya-rasa, a relação de fraternidade, as qualidades transcendentais continuam a aumentar.
Da mesma maneira, na plataforma de afeição parental (vātsalya-rasa), há quatro qualidades. Além das três qualidades já mencionadas, tem-se a impressão de que o Senhor Supremo é dependente da misericórdia do devoto. Como um dos pais da Suprema Personalidade de Deus, o devoto algumas vezes castiga o Senhor e considera-se como sustentador do Senhor. Este comportamento transcendental em que alguém sente que é o sustentador do mantenedor supremo é muito agradável ao devoto e ao Senhor Supremo.
O Senhor instruiu Śrīla Rūpa Gosvāmī a escrever a literatura transcendental chamada Bhakti-rasāmṛta-sindhu, a ciência do serviço devocional, e nela deixar bem claro o conteúdo destas cinco relações transcendentais. Explica-se nesta grande literatura como o relacionamento transcendental de śānta-rasa, assumindo a forma de fé inabalável em Kṛṣṇa, desenvolve-se até transformar-se em dāsya-rasa, onde há o espírito de serviço, e então em sakhya-rasa, ou fraternidade indômita, e prolonga-se até a plataforma do amor parental, onde alguém fica com a impressão de que mantém o Senhor. Todos estes relacionamentos culminam na plataforma mais elevada, o amor conjugal (madhura-rasa), onde todos estes relacionamentos transcendentais existem simultaneamente.