Capítulo Onze
Serviço ao Senhor
Em seguida, o Senhor Caitanya explicou a Sanātana Gosvāmī o processo pelo qual alguém pode aproximar-se dEle. A esse respeito, Caitanya Mahāprabhu salientou que o serviço devocional a Kṛṣṇa é o único processo pelo qual Ele pode ser alcançado. Este é o veredicto da literatura védica. Como declaram os sábios: “Quem busca a literatura védica a fim de determinar o processo de compreensão transcendental, ou quem consulta os Purāṇas (considerados literaturas irmãs), encontrará em todos eles a mesma conclusão: Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, é o único objeto de adoração”.
Como se descreve na Bhagavad-gītā, Kṛṣṇa é a Verdade Absoluta, a Suprema Personalidade de Deus, e está situado em Sua potência interna, conhecida como svarūpa-śakti ou ātma-śakti. Ele Se expande em diversas formas múltiplas, e algumas são conhecidas como Suas formas pessoais, e outras como Suas formas separadas. Assim, Ele deleita-Se consigo mesmo em todos os planetas espirituais, e também nos universos materiais.
As expansões de Suas formas separadas chamam-se entidades vivas, que são classificadas de acordo com as energias do Senhor. Elas dividem-se em duas classes – eternamente liberadas e eternamente condicionadas. As entidades vivas eternamente liberadas nunca entram em contato com a natureza material, em virtude do que elas não têm qualquer experiência de vida material. Elas estão eternamente ocupadas em consciência de Kṛṣṇa, ou serviço devocional ao Senhor, e estão entre os associados de Kṛṣṇa. O prazer delas, o único desfrute de suas vidas, advém da execução de transcendental serviço amoroso a Kṛṣṇa.
Por outro lado, aquelas que são eternamente condicionadas estão sempre divorciadas do transcendental serviço amoroso a Kṛṣṇa, e assim sujeitam-se às três classes de miséria da existência material. Devido à eterna atitude das almas condicionadas de se manterem separadas de Kṛṣṇa, o encanto da energia material outorga-lhes duas classes de existência corpórea – o corpo grosseiro que consiste em cinco elementos, e o corpo sutil que consiste em mente, inteligência e ego. Envolta por esses dois corpos, a alma condicionada sofre eternamente as dores cruciantes da existência material, conhecidas como as três misérias. Ela também se sujeita a seis inimigos (luxúria, ira, etc.). Esta é a doença crônica da alma condicionada.
Doente e condicionada, a entidade viva transmigra pelo Universo inteiro. Ora está situada no sistema planetário superior, ora está no sistema inferior. Dessa maneira ela leva sua vida doentia. Sua doença só pode ser curada quando ela encontra e segue o médico perito, o mestre espiritual genuíno. Ao seguir à risca as instruções do mestre espiritual genuíno, a alma condicionada promove-se à plataforma liberada, cura-se de sua doença material, alcança novamente o serviço devocional a Kṛṣṇa e retorna ao lar, retorna a Kṛṣṇa.
A entidade viva condicionada deve aperceber-se de sua verdadeira posição e deve orar ao Senhor: “Quanto tempo mais estarei sob o jugo de todas essas funções corpóreas, tais como luxúria e ira?” Como senhores da alma condicionada, a luxúria e a ira nunca são misericordiosas. Na realidade, a alma condicionada nunca deixará de prestar serviço a esses perversos senhores. Contudo, ao restituir sua verdadeira consciência, ou consciência de Kṛṣṇa, ela abandona esses senhores perversos e, com o coração franco e aberto, aproxima-se de Kṛṣṇa para conseguir Seu refúgio. Neste momento, ela ora a Kṛṣṇa para se ocupar em Seu transcendental serviço amoroso.
Na literatura védica, às vezes, louvam-se as atividades fruitivas, o yoga místico e a pesquisa especulativa de conhecimento como diferentes caminhos para se consumar a autorrealização; todavia, apesar desse louvor, toda a literatura védica aceita que o caminho do serviço devocional é o primordial. Em outras palavras, o serviço devocional ao Senhor Kṛṣṇa é o mais elevado caminho de perfeição de autorrealização, e recomenda-se que seja executado diretamente. Atividade fruitiva, meditação mística e especulação filosófica não são métodos diretos de autorrealização. São indiretos, porque, sem serviço devocional, eles não podem conduzir à perfeição máxima da autorrealização. De fato, todos os caminhos de autorrealização, em última análise, dependem do caminho do serviço devocional.
Quando Vyāsadeva, mesmo após compilar pilhas de livros de conhecimento védico, permanecia insatisfeito, Nārada Muni, seu mestre espiritual, explicou que nenhum caminho que conduz à autorrealização pode ser bem-sucedido se não estiver vinculado ao serviço devocional. Quando Nārada Muni chegou, Vyāsadeva, sentado às margens do rio Sarasvatī, estava deprimido. Ao vê-lo tão desanimado, Nārada explicou por que os vários livros que ele compilara eram deficientes. “Mesmo o conhecimento puro é insuficiente se desprovido de transcendental serviço devocional”, disse Nārada, “e o que se dizer das atividades fruitivas que estão destituídas de serviço devocional? Como podem elas ser benéficas para seu executante?”
Há muitos sábios que são peritos em executar austeridades; há muitos homens que dão muita caridade; há muitos homens famosos, eruditos e pensadores; e existem aqueles que são muito hábeis em recitar hinos védicos. Embora tudo isso seja auspicioso, a menos que utilizemos nossos recursos e executemos nossas atividades a fim de alcançar o serviço devocional ao Senhor, não podemos atingir os resultados desejados. Portanto, no Śrīmad-Bhāgavatam (2.4.17), Śukadeva Gosvāmī ofereceu suas respeitosas reverências ao Senhor Supremo, pois Ele é o único que pode outorgar sucesso.
Todas as classes de filósofos e transcendentalistas aceitam que quem carece de conhecimento não pode ser liberado do enredamento material. Todavia, conhecimento sem serviço devocional não pode conceder a liberação. Em outras palavras, quando jñāna, ou cultivo de conhecimento, abre-se para o caminho do serviço devocional, pode dar-nos liberação, caso contrário é impossível. Brahmā também afirma isso no Śrīmad-Bhāgavatam (10.14.4):
śreyaḥ-sṛtiṁ bhaktim udasya te vibho
kliśyanti ye kevala-bodha-labdhaye
teṣām asau kleśala eva śiṣyate
nānyad yathā sthūla-tuṣāvaghātinām
“Meu querido Senhor, o serviço devocional a Vós é o melhor caminho para a autorrealização. Se alguém abandona este caminho e ocupa-se no cultivo de conhecimento ou em especulação, apenas enfrentará um processo penoso e não alcançará os resultados desejados por ele. Quem debulha uma casca de trigo vazia não pode obter o grão, e quem se dedica apenas ao conhecimento especulativo não pode alcançar o resultado desejado da autorrealização. A única coisa que se ganha são problemas.”
Na Bhagavad-gītā (7.14), afirma-se que a natureza material é tão forte que não pode ser superada por nenhuma entidade viva comum. Só quem se rende aos pés de lótus de Kṛṣṇa pode cruzar o oceano da existência material. A entidade viva esquece que é eternamente serva de Kṛṣṇa, e tal esquecimento causa seu cativeiro na vida condicional e sua atração pela energia material. Na verdade, esta atração é a algema da energia material. Visto que é muito difícil que alguém se libere enquanto desejar dominar a natureza material, recomenda-se que ele se aproxime de um mestre espiritual que possa treiná-lo no serviço devocional, capacitá-lo a escapar das garras da natureza material e, enfim, alcançar os pés de lótus de Kṛṣṇa.
Existem quatro divisões da sociedade humana criadas para facilitar a execução do dever (os brāhmaṇas, ou intelectuais; os kṣatriyas, ou administradores; os vaiśyas, ou homens de negócio e fazendeiros; e os śūdras, ou trabalhadores – bem como os quatro āśramas: o brahmacārī, ou estudante; o gṛhastha, ou chefe de família; o vānaprastha, ou pessoa retirada; e o sannyāsī, ou a pessoa na vida renunciada), porém, se uma pessoa carece de devoção ou consciência de Kṛṣṇa, ela não pode ser libertada do cativeiro material, mesmo que execute seu dever prescrito. Ao contrário, mesmo executando seu dever prescrito, ela deslizará rumo ao inferno, devido à sua consciência material. Portanto, quem quiser liberar-se das garras materiais, deve se ocupar em seu dever ocupacional e, ao mesmo tempo, cultivar a consciência de Kṛṣṇa mediante o serviço devocional.
A este respeito, o Senhor Caitanya recitou um verso do Śrīmad-Bhāgavatam enunciado por Nārada Muni para indicar o caminho do cultivo bhāgavata. Nārada Muni salientou que as quatro divisões da sociedade humana, bem como as quatro ordens de vida, nascem da gigantesca forma do Senhor. Os brāhmaṇas nascem da boca da forma universal do Senhor, os kṣatriyas nascem dos braços, os vaiśyas nascem da cintura e os śūdras, das pernas. Dessa maneira, eles são qualificados em diferentes modos da natureza material dentro da forma do virāṭa-puruṣa. Quem não está ocupado no serviço devocional ao Senhor, cai de sua posição, a despeito de executar ou não seu dever ocupacional prescrito.
O Senhor Caitanya indica em seguida que aqueles que pertencem à escola māyāvādī ou impersonalista consideram-se unos com Deus, ou liberados, porém, segundo o próprio Caitanya Mahāprabhu e o Śrīmad-Bhāgavatam, na realidade eles não são liberados. A esse respeito, o Senhor Caitanya volta a citar o Śrīmad-Bhāgavatam (10.2.32):
ye ’nye ’ravindākṣa vimukta-māninas
tvayy asta-bhāvād aviśuddha-buddhayaḥ
āruhya kṛcchreṇa paraṁ padaṁ tataḥ
patanty adho ’nādṛta-yuṣmad-aṅghrayaḥ
“Aqueles que, tendo aceitado a filosofia māyāvādī, pensam que são liberados, mas que não adotam o serviço devocional ao Senhor, caem devido à falta de serviço devocional, mesmo após submeterem-se às mais severas classes de penitências e austeridades e, às vezes, mesmo após aproximarem-se da posição suprema.”
Caitanya Mahāprabhu explica que Kṛṣṇa é como o sol, e māyā, a energia material ilusória, é como a escuridão. Quem sempre permanece à luz do sol de Kṛṣṇa não pode ficar iludido pela escuridão da energia material. Os quatro versos principais do Śrīmad-Bhāgavatam explicam isso bem claro e também no Bhāgavatam (2.5.13), declara-se: “A energia ilusória, ou māyā, tem vergonha de postar-se diante do Senhor”. Entretanto, esta mesma energia ilusória está sempre confundindo as entidades vivas. Em seu estado condicionado, a entidade viva descobre muitas formas de malabarismos verbais a fim de obter pretensa liberação das garras de māyā, porém, se ela sinceramente rende-se a Kṛṣṇa, dizendo sequer uma só vez: “Meu querido Senhor Kṛṣṇa, de hoje em diante sou Vosso”, ela escapa de imediato das garras da energia material. Isso também se confirma no Rāmāyaṇa, Laṅkā-kāṇḍa (18.33), onde o Senhor diz:
sakṛd eva prapanno yas
tavāsmīti ca yācate
abhayaṁ sarvadā tasmai
dadāmy etad vrataṁ mama
“É minha promessa e dever dar toda a proteção a quem se rende a Mim sem reservas.” Alguém pode desfrutar atividades fruitivas, liberação, jñāna, ou perfeição do sistema de yoga, porém, quem se torna muito inteligente, abandona todos estes caminhos e ocupa-se no sincero serviço devocional ao Senhor. O Śrīmad-Bhāgavatam (2.3.10) também confirma que, mesmo que uma pessoa deseje gozo material ou liberação, deve ocupar-se em serviço devocional. Aqueles que ambicionam adquirir benefícios mundanos do serviço devocional não são devotos puros, mas, porque se ocupam no serviço devocional, são considerados afortunados. Eles desconhecem que o serviço devocional não visa bênção material, porém, em virtude de seu serviço devocional ao Senhor, chegam enfim a compreender que o gozo mundano não é a meta do serviço devocional. O próprio Kṛṣṇa diz que as pessoas que desejam algum benefício material em troca do serviço devocional decerto são tolas, pois querem algo que lhes é venenoso. A verdadeira meta do serviço devocional é o amor a Deus, e embora alguém possa desejar de Kṛṣṇa benefícios materiais, o Senhor, sendo todo-poderoso, aprecia a sua posição, aos poucos a libera de uma vida cheia de ambição material e a ocupa mais em serviço devocional. Ao ocupar-se realmente em serviço devocional, a pessoa se esquece de suas ambições e desejos materiais. Também confirma isto o Śrīmad-Bhāgavatam (5.19.27):
satyaṁ diśaty arthitam arthito nṛṇāṁ
naivārtha-do yat punar arthitā yataḥ
svayaṁ vidhatte bhajatām anicchatām
icchā-pidhānaṁ nija-pāda-pallavam
“O Senhor Kṛṣṇa decerto satisfaz os desejos dos devotos que se aproximam dEle através do serviço devocional, porém, Ele não satisfaz desejos que voltariam a causar misérias. Apesar de terem ambições materiais, tais devotos, por prestarem serviço transcendental, purificam-se pouco a pouco dos desejos de gozo material, e passam a desejar o prazer do serviço devocional.”
Em geral, a pessoa busca a associação dos devotos para mitigar algumas necessidades materiais, porém a influência de um devoto puro liberta-a de todos os desejos materiais para que enfim ela venha a saborear o gosto do serviço devocional. O serviço devocional é tão bom e puro que redime o devoto, e ele esquece todas as ambições materiais logo que se ocupa plenamente no transcendental serviço amoroso a Kṛṣṇa. Um exemplo prático é Dhruva Mahārāja, que queria de Kṛṣṇa algo material e, portanto, ocupou-se em serviço devocional. Quando o Senhor, sob a forma de Viṣṇu de quatro braços, apareceu diante de Dhruva, este disse ao Senhor: “Meu querido Senhor, porque me ocupei em Vosso serviço devocional com grande austeridade e penitências, agora Vos estou vendo. Mesmo eminentes semideuses e sábios têm dificuldade em ver-Vos. Agora estou satisfeito, e todos os meus desejos estão realizados. Não quero mais nada. Eu estava buscando alguns cacos de vidro, mas, em vez disso, encontrei uma valiosa e magnífica joia”. Assim, Dhruva Mahārāja ficou plenamente satisfeito e recusou-se a pedir qualquer coisa ao Senhor.
Às vezes, compara-se a entidade viva, transmigrando através de 8.400.000 espécies de vida, a um tronco que está deslizando sobre um rio. Às vezes, por acaso, o tronco é lançado à margem e se salva de ser arrastado correnteza abaixo. No Śrīmad-Bhāgavatam (10.38.5), há um verso que encoraja toda alma condicionada com as seguintes palavras: “Ninguém deve ficar deprimido pensando que nunca sairá das garras da matéria, pois existe toda a possibilidade de ele ser resgatado, exatamente como é possível que um tronco, flutuando rio abaixo, venha a repousar na margem”. O Senhor Caitanya também discutiu sobre esta oportunidade afortunada. Esses incidentes afortunados são considerados o início do declínio de nossa vida condicional, e eles ocorrem se existe associação com os devotos puros do Senhor. Associando-se com devotos puros, a pessoa realmente desenvolve atração por Kṛṣṇa. Há diversas classes de rituais e atividades, e alguns se transformam em gozo material e outros, em liberação material, porém, se uma entidade viva, associando-se com devotos puros, adota estas atividades ritualísticas mediante as quais se desenvolve o imaculado serviço devocional ao Senhor, sua mente se atrai pelo serviço devocional. No Śrīmad-Bhāgavatam (10.51.54), Mucukunda afirma:
bhavāpavargo bhramato yadā bhavej
janasya tarhy acyuta sat-samāgamaḥ
sat-saṅgamo yarhi tadaiva sad-gatau
parāvareśe tvayi jāyate matiḥ
“Meu querido Senhor, enquanto viaja neste mundo material através de diferentes espécies de vida, uma entidade viva pode progredir rumo à liberação. Mas se, por acaso, ela entra em contato com um devoto puro, então realmente libera-se das garras da energia material e torna-se Vosso devoto.”
Quando uma alma condicionada se torna um devoto de Kṛṣṇa, o Senhor, por Sua misericórdia imotivada, treina-a de duas maneiras: externamente, Ele a treina através do mestre espiritual, e, internamente, através da Superalma. Como se afirma no Śrīmad-Bhāgavatam (11.29.6): “Meu querido Senhor, mesmo que alguém alcance uma vida tão longa como a de Brahmā, ainda assim será incapaz de expressar sua gratidão pelos benefícios derivados de lembrar-se de Vós. Mediante Vossa misericórdia imotivada afastais todas as condições inauspiciosas, manifestando-Vos externamente como o mestre espiritual e internamente como a Superalma”.
De uma forma ou outra, se alguém entra em contato com o devoto puro e assim desenvolve um desejo de prestar serviço devocional a Kṛṣṇa, pouco a pouco ele se eleva à plataforma de amor por Deus e liberta-se das garras da energia material. No Śrīmad-Bhāgavatam (11.20.8), o próprio Senhor também explica isso da seguinte maneira: “Para quem se atrai espontaneamente por Minhas atividades – não ficando seduzido pelas atividades materiais, nem avesso a elas –, torna-se-lhe possível trilhar o caminho do serviço devocional que leva à perfeição do amor por Deus”. Contudo, é impossível alcançar a plataforma de perfeição sem o favor do devoto puro, ou mahātmā, uma grande alma. Se não podemos sequer ser liberados das garras materiais, sem a misericórdia de uma grande alma, que se dizer, então, de nos elevarmos à plataforma de amor por Deus. Isso também se confirma no Śrīmad-Bhāgavatam (5.12.12) numa conversa entre o rei Rahūgaṇa da província de Sindi, na Sibéria, e o rei Bharata. Quando o rei Rahūgaṇa expressou surpresa ao ver as conquistas espirituais do rei Bharata, este retrucou:
rahūgaṇaitat tapasā na yāti
na cejyayā nirvapaṇād gṛhād vā
na cchandasā naiva jalāgni-sūryair
vinā mahat-pāda-rajo ’bhiṣekam
“Meu querido Rahūgaṇa, ninguém consegue alcançar a etapa de serviço devocional perfeito sem ser favorecido por uma grande alma, ou um devoto puro. Ninguém pode atingir o nível de perfeição apenas seguindo os princípios reguladores das escrituras, ou aceitando a ordem de vida renunciada, ou executando os deveres prescritos da vida familiar, ou tornando-se eminente estudante da ciência espiritual, ou aceitando severas austeridades e penitências para consumar a autorrealização.” Da mesma forma, quando o ateísta Hiraṇyakaśipu perguntou a seu filho Prahlāda Mahārāja como foi que ele se atraíra ao serviço devocional, o menino respondeu: “Enquanto não for favorecida pela poeira dos pés dos devotos puros, a pessoa não pode sequer aproximar-se do caminho do serviço devocional, que é a solução para todos os problemas da vida material”. (Śrīmad-Bhāgavatam 7.5.32)
Dessa maneira, o Senhor Caitanya disse a Sanātana Gosvāmī que todas as escrituras enfatizam a associação com devotos puros do Supremo. A oportunidade de associar-se com um devoto puro do Senhor Supremo é o início da perfeição completa. Isso também é confirmado no Śrīmad-Bhāgavatam (1.18.13), onde se diz que as facilidades e bênçãos alcançadas através da associação com um devoto puro são incomparáveis. Elas não podem ser comparadas a nada – nem à elevação ao reino celestial nem à liberação da energia material. O Senhor Kṛṣṇa também confirma isto em Sua mais confidencial instrução na Bhagavad-gītā (18.65), onde Ele diz a Arjuna:
sarva-guhyatamaṁ bhūyaḥ
śṛṇu me paramaṁ vacaḥ
iṣṭo ’si me dṛḍham iti
tato vakṣyāmi te hitam
man-manā bhava mad-bhakto
mad-yājī māṁ namaskuru
mām evaiṣyasi satyaṁ te
pratijāne priyo ’si me
“Porque você é Meu amigo muito querido, estou lhe falando Minha instrução suprema, o mais confidencial de todos os conhecimentos. Ouça enquanto falo isto, pois é para o seu benefício. Pense sempre em Mim e torne-se Meu devoto. Adore-Me e ofereça-Me homenagens. Agindo assim, você virá a Mim impreterivelmente. Eu lhe prometo isto porque você é Meu amigo muito querido.”
Esta instrução direta de Kṛṣṇa é mais importante que qualquer instrução védica ou mesmo qualquer serviço regulado. Decerto existem muitos preceitos védicos, práticas ritualísticas e sacrificiais, deveres reguladores, técnicas meditativas e processos especulativos para obter conhecimento, mas a ordem direta de Kṛṣṇa – “Pensa sempre em Mim e converte-te em Meu devoto” – deve ser aceita e seguida como a ordem final do Senhor. Quem simplesmente se convence desta ordem e aproxima-se do Seu serviço devocional, abandonando todas as outras ocupações, sem dúvida alcança o sucesso. Para confirmar esta afirmação, o Śrīmad-Bhāgavatam (11.20.9) diz que se deve seguir outros caminhos conducentes à autorrealização apenas enquanto não se está convencido da ordem direta do Senhor Śrī Kṛṣṇa. A conclusão do Śrīmad-Bhāgavatam e da Bhagavad-gītā é que a ordem direta do Senhor é abandonar tudo e ocupar-se em serviço devocional.
A firme convicção de que se deve executar a ordem do Senhor é conhecida como fé. Quem tem fé, está firmemente convencido de que, pelo simples fato de prestar serviço devocional ao Senhor Kṛṣṇa, todas as outras atividades são automaticamente executadas – incluindo os deveres ritualísticos, sacrifícios, yoga e a busca especulativa de conhecimento. Se alguém se convence de que o serviço devocional ao Senhor inclui tudo, nenhuma outra atividade é necessária. Como se afirma no Śrīmad-Bhāgavatam (4.31.14):
yathā taror mūla-niṣecanena
tṛpyanti tat-skandha-bhujopaśākhāḥ
prāṇopahārāc ca yathendriyāṇāṁ
tathaiva sarvārhaṇam acyutejyā
“Regando a raiz de uma árvore, automaticamente nutrem-se os galhos, brotos e frutos, e, fornecendo comida ao estômago, todos os sentidos são satisfeitos. Da mesma forma, prestando serviço devocional a Kṛṣṇa, a pessoa automaticamente satisfaz os requisitos de todos os outros processos de adoração.” A pessoa que é fiel e está firmemente convencida disto é qualificada para se elevar ao nível de devoto puro.
Segundo o grau de convicção, existem três classes de devotos. O devoto de primeira classe é versado em toda a literatura védica e ao mesmo tempo tem a firme convicção supracitada. Ele consegue libertar todas as pessoas das dores cruciantes das misérias materiais. O devoto de segunda classe tem convicção e fé fortes, mas não tem o poder de citar evidências das escrituras reveladas. O devoto de terceira classe é aquele cuja fé não é muito forte, porém, através do gradual cultivo de serviço devocional, acabará se qualificando como candidato à posição de segunda ou primeira classe. No Śrīmad-Bhāgavatam (11.2.45-47), afirma-se que o devoto de primeira classe sempre vê o Senhor Supremo como a alma de todas as entidades vivas. Assim, ao ver todas as entidades vivas, ele vê Kṛṣṇa e nada além de Kṛṣṇa. O devoto de segunda classe coloca toda a sua fé na Suprema Personalidade de Deus, faz amizade com os devotos puros, favorece as pessoas inocentes e evita os ateístas e os adversários do serviço devocional. O devoto de terceira classe ocupa-se em serviço devocional segundo a orientação do mestre espiritual, ou por uma questão de tradição familiar, e adora a Deidade do Senhor, porém não é culto no conhecimento do serviço devocional, e não distingue o devoto do não-devoto. Este devoto de terceira classe, na verdade, não pode ser considerado um devoto puro; ele está quase na linha devocional, mas sua posição não é muito segura.
Pode-se concluir assim que, quando alguém demonstra amor por Deus, amizade pelos devotos, misericórdia para com os inocentes e relutância em associar-se com não-devotos, ele pode ser considerado um devoto puro. Desenvolvendo serviço devocional, esta pessoa consegue perceber que todo ser vivo é parte integrante do Supremo. Em todo ser vivo, ela pode ver a Pessoa Suprema, razão pela qual se desenvolve muitíssimo em consciência de Kṛṣṇa. Nessa etapa, ela não distingue entre o devoto e o não-devoto, pois vê todos como servos do Senhor. Enquanto se ocupa em consciência de Kṛṣṇa e serviço devocional, ela continua desenvolvendo todas as grandes qualidades. Como se afirma no Śrīmad-Bhāgavatam (5.18.12):
yasyāsti bhaktir bhagavaty akiñcanā
sarvair guṇais tatra samāsate surāḥ
harāv abhaktasya kuto mahad-guṇā
mano-rathenāsati dhāvato bahiḥ
“Quem alcança o serviço devocional puro e imaculado ao Senhor Supremo desenvolve todas as boas qualidades dos semideuses, ao passo que uma pessoa que não desenvolve tal serviço, apesar de todas as qualificações materiais, com certeza se desencaminhará, pois paira na plataforma mental.” Portanto, destituídas de serviço devocional as qualificações materiais não têm valor.