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Capítulo Treze

Serviço Devocional em Apego

Após discutir os pontos anteriores, o Senhor Caitanya disse a Sanātana Gosvāmī: “Até aqui expliquei o serviço devocional de acordo com os princípios reguladores. Agora, vou explicar-lhe o serviço devocional executado com apego transcendental”.

Os vrajavāsīs, habitantes de Vṛndāvana, são exemplos vivos de serviço devocional. Eles representam o ideal serviço devocional com apego, e semelhante devoção só pode ser encontrada em Vrajabhūmi, Vṛndāvana. Quem desenvolve serviço devocional e apego seguindo os passos dos vrajavāsīs, alcança rāga-mārga-bhakti, ou serviço devocional com apego ao Senhor. De acordo com o Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.2.270), “Serviço devocional com apego extático, o qual se torna natural para o devoto, chama-se rāga, ou apego transcendental”. Serviço devocional desempenhado com tal apego chama-se rāgātmikā, e apego profundo com profunda absorção no objeto de amor chama-se rāgātmikā. Exemplos dessas classes de serviço podem ser vistos nas atividades dos residentes de Vrajabhūmi. Quem, ao ouvir sobre tal apego, fica atraído por Kṛṣṇa, decerto é muito afortunado. Quando alguém se sente profundamente comovido pela devoção dos habitantes de Vrajabhūmi, e tenta seguir-lhes os passos, não mais se importa com as restrições e regulações das escrituras reveladas. Esta é a característica de quem executa rāga-bhakti.

Serviço devocional com apego é natural, e quem se sente atraído por ele, não argumenta com aqueles que se lhe opõem, mesmo que eles argumentem apresentando preceitos escriturais. A inclinação natural ao serviço devocional também se fundamenta em preceitos escriturais, e não se requer de alguém que tenha apego por tal serviço devocional, que o abandone apenas por causa de um argumento escritural. Com relação a isso, deve-se notar que uma classe de pseudodevotos (conhecida como prākṛta-sahajiyā) segue suas próprias ideias inventadas e, representando a si mesmos como Kṛṣṇa e Rādhā, entregam-se à devassidão. Semelhante serviço devocional e apego são falsos, e aqueles assim ocupados, estão realmente deslizando num caminho rumo ao inferno. Este não é o padrão de rāgātmikā, ou devoção. A comunidade prākṛta-sahajiyā de fato está enganada e é muito desafortunada.

Pode-se executar o serviço devocional com apego de duas maneiras – externa e internamente. Externamente, o devoto segue à risca os princípios reguladores, que começam com o cantar e o ouvir; ao passo que, internamente, ele pensa no apego que o atrai a servir o Senhor Supremo. Na verdade, ele sempre pensa em seu serviço devocional e apego específicos. Este apego não viola os princípios reguladores do serviço devocional, e o verdadeiro devoto adere à risca a estes princípios; contudo, ele sempre pensa em seu apego específico.

Já que todos os habitantes de Vrajabhūmi, Vṛndāvana, são muito queridos a Kṛṣṇa, o devoto seleciona um deles e lhe segue os passos a fim de ser bem-sucedido em seu próprio serviço devocional. O devoto puro, apegado ao Senhor, sempre segue os passos de uma personalidade de Vrajabhūmi. No Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.2.294), recomenda-se que o devoto puro, apegado ao serviço devocional, deve sempre lembrar as atividades de um habitante específico de Vraja, mesmo que não possa viver em Vrajabhūmi ou Vṛndāvana. Deste modo, ele pode sempre pensar em Vrajabhūmi e Vṛndāvana.

Os devotos confidenciais, apegados ao serviço do Senhor, dividem-se em várias categorias: alguns deles são servos, alguns são amigos, alguns são pais e outros são amantes conjugais. No serviço devocional com apego, deve-se seguir uma classe específica de devoto de Vrajabhūmi. No Śrīmad-Bhāgavatam (3.25.38), o Senhor diz:

na karhicin mat-parāḥ śānta-rūpe
  naṅkṣyanti no me ’nimiṣo leḍhi hetiḥ
yeṣām ahaṁ priya ātmā sutaś ca
  sakhā guruḥ suhṛdo daivam iṣṭam

“A palavra mat-para aplica-se apenas a pessoas que estão satisfeitas com a ideia de se tornar Meus adeptos. Elas consideram que Eu sou-lhes a alma, o amigo, o filho, o senhor, o benquerente, o Deus e a meta suprema. Minha querida mãe, o tempo não age sobre tais devotos.” No Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.2.308), Rūpa Gosvāmī oferece suas respeitosas reverências àqueles que estão sempre pensando em Kṛṣṇa como Ele é, e em Seu relacionamento como filho, benquerente, irmão, pai, amigo, etc. Qualquer um que siga os princípios do serviço devocional com apego e siga um devoto específico de Vrajabhūmi, com certeza alcança a mais elevada perfeição do amor a Deus.

Há duas características através das quais as sementes do amor a Deus podem desenvolver-se, sendo conhecidas como rati, ou apego, e bhāva, a etapa precedente ao amor a Deus. É mediante este apego e bhāva que os devotos conseguem conquistar Śrī Kṛṣṇa. Estas duas características tornam-se presentes antes de se manifestar qualquer sintoma de amor a Deus. O Senhor Caitanya explicou tudo isso a Sanātana Gosvāmī. Ele disse-lhe que, como não havia fim para as descrições do sistema de serviço devocional com apego, Ele estava apenas tentando oferecer uma amostra.

O Senhor Caitanya descreveu então a meta última do serviço devocional, destinada a quem deseja alcançar a perfeição. Quando o apego por Kṛṣṇa se torna muito profundo, atinge-se a condição chamada amor a Deus. Semelhante estado de existência é considerado uma situação permanente para o devoto. A esse respeito, Kavirāja Gosvāmī ofereceu suas respeitosas reverências ao Senhor Caitanya em virtude de Seus sublimes ensinamentos sobre o amor a Deus. Como se afirma no Caitanya-caritāmṛta (Madhya 23.1): “Ó Suprema Personalidade de Deus, quem a não ser Vós, jamais concedeu semelhante serviço devocional puro? Ó mais magnânima encarnação da Personalidade de Deus, conhecida como Gaura-Kṛṣṇa, ofereço-Vos minhas mais respeitosas reverências”.

No Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.3.1), compara-se a condição de estar apaixonado por Deus ao brilho que emana do Sol; este brilho torna o coração do devoto mais e mais amável. O coração desse devoto está situado em uma posição transcendental até mesmo ao modo da bondade. O processo de tornar o coração ainda mais esterilizado pelo brilho solar do amor chama-se bhāva. Rūpa Gosvāmī dá uma descrição de bhāva. Bhāva é a característica permanente da entidade viva; e o ponto crucial do progresso até bhāva chama-se estado marginal de amor a Deus. Quando a condição bhāva se torna cada vez mais profunda, os devotos eruditos chamam-na de amor a Deus. Como se afirma no Nārada-pañcarātra:

ananya-mamatā viṣṇau
  mamatā prema-saṅgatā
bhaktir ity ucyate bhīṣma-
  prahlādoddhava-nāradaiḥ

“Quando alguém está firmemente convencido de que Viṣṇu é o único objeto de amor e adoração e que não há ninguém mais – nem sequer um semideus – digno de receber serviço devocional, ele sente intimidade em seu relacionamento amoroso com Deus, e isto é aprovado por personalidades tais como Bhīṣma, Prahlāda, Uddhava e Nārada.”

Se, em virtude de algumas atividades virtuosas que estimulem o serviço devocional, alguém é influenciado por uma atitude de serviço e refugia-se na boa associação dos devotos puros, ele desenvolve apego por ouvir e cantar. Desenvolvendo o cantar e o ouvir, ele pode avançar mais e mais no serviço devocional regulado ao Senhor Supremo. À proporção que ele avança, os seus receios sobre o serviço devocional e sua atração pelo mundo material, diminuem. Progredindo no ouvir e cantar, o devoto fica mais fixo em sua fé, e gradualmente sua fé inicial desenvolve-se em um gosto pelo serviço devocional, e este gosto, aos poucos, desenvolve-se em apego. Ao tornar-se puro, o apego exibe duas características: bhāva e rati. Quando rati aumenta, chama-se amor a Deus, e o amor a Deus é a meta última da vida humana.

No Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.4.15-16), Rūpa Gosvāmī apresenta um resumo deste processo: “O primeiro requisito é a fé; devido à fé a pessoa se associa com devotos puros e, através dessa associação, desenvolve serviço devocional. À medida que o serviço devocional se desenvolve, seus receios diminuem. Então, alcança convicção firme, e desta convicção ela desenvolve um gosto pelo serviço devocional e avança à etapa de apego, que o faz seguir os princípios reguladores do serviço devocional. Depois disto, ao fazer progressos ulteriores, ela alcança a fase chamada bhāva, que é permanente. Quando tal amor por Deus aumenta, alcança a mais elevada etapa de amor a Deus”.

Em sânscrito, esta fase elevadíssima chama-se prema. Pode-se definir prema como amor a Deus sem nenhuma expectativa de troca ou retorno. Na realidade, as palavras prema e amor não são sinônimas, todavia, pode-se dizer que prema é a elevadíssima etapa de amor. Alguém que alcançou prema é o mais perfeito dos seres humanos. O Śrīmad-Bhāgavatam (3.25.25) também apoia esta afirmação: apenas através da associação com os devotos puros é que se pode desenvolver o gosto pela consciência de Kṛṣṇa, e, ao tentar aplicar a consciência de Kṛṣṇa na vida pessoal, pode-se alcançar tudo, inclusive as fases bhāva e prema.

O Senhor Caitanya, descrevendo os sintomas de uma pessoa que, a partir da fé, chegou à etapa de bhāva, afirmou que tal pessoa nunca fica agitada, mesmo que existam causas para agitação. Nem por um momento ela perde seu tempo; está sempre ansiosa por fazer alguma coisa para Kṛṣṇa. Mesmo que não tenha ocupação, ela encontrará algum trabalho a fazer para a satisfação de Kṛṣṇa. Tampouco esta pessoa gosta de algo não relacionado com Kṛṣṇa. Embora situada na melhor posição, ela não anseia por honra ou respeito pessoal. Ela é confiante em seu trabalho, e nunca tem a impressão de não estar progredindo rumo à meta máxima da vida – voltar para o Supremo. Porque está completamente convencida de seu progresso, ela está sempre confiante e mantém-se ocupada a fim de alcançar a meta máxima. Ela é muito apegada a satisfazer ao Senhor, a cantar ou ouvir sobre Ele e a descrever Suas qualidades transcendentais. Ela também prefere viver em lugares sagrados como Mathurā, Vṛndāvana ou Dvārakā. Tais características são visíveis naquele que chegou à fase de bhāva.

O rei Parīkṣit dá um bom exemplo de bhāva. Ao sentar-se às margens do Ganges esperando o encontro com a morte, ele disse: “Todos os brāhmaṇas aqui presentes, bem como Mãe Ganges, devem saber que sou uma alma completamente rendida a Kṛṣṇa. Não me importo se a cobra enviada pela maldição do menino brāhmaṇa picar-me agora mesmo. Deixem a cobra picar-me a seu bel-prazer. Ficarei satisfeito se todos vocês aqui presentes continuarem a cantar a mensagem de Kṛṣṇa”. Tal devoto está sempre ansioso de que seu tempo não seja desperdiçado com qualquer coisa não relacionada com Kṛṣṇa. Logo, ele não aprecia os benefícios provenientes da atividade fruitiva, da meditação ióguica ou do cultivo de conhecimento. Ele tem apego às conversas que estejam favoravelmente relacionadas com Kṛṣṇa. Com lágrimas nos olhos, semelhantes devotos puros sempre oram ao Senhor Supremo; suas mentes estão sempre ocupadas em lembrar as atividades do Senhor, e seus corpos estão sempre ocupados em oferecer reverências. Dessa maneira, eles ficam satisfeitos. Qualquer devoto que está ocupado em serviço devocional dedica sua vida e seu corpo aos propósitos do Senhor.

O rei Bharata, em honra de quem a Índia passou a ser chamada Bhārata-varṣa, também era um devoto puro, e em sua juventude ele deixou sua vida familiar, sua devotada e bela esposa, seu filho, amigos e reino exatamente como se eles fossem fezes. Isto é típico de uma pessoa que desenvolveu bhāva em serviço devocional. Ela se considera a pessoa mais desprezível, e sua única satisfação é pensar que algum dia Kṛṣṇa será bondoso o bastante para favorecê-la ocupando-a em serviço devocional. No Padma Purāṇa, encontra-se outro exemplo de devoção pura. Ele menciona a história de um rei que, embora fosse o mais elevado dos seres humanos, mendigava de porta em porta, chegando a ponto de esmolar aos caṇḍālas, a classe mais baixa da sociedade humana.

A esse respeito, Sanātana Gosvāmī, mais tarde, compôs este verso:

na premā śravaṇādi-bhaktir api vā yogo ’tha vā vaiṣṇavo
  jñānaṁ vā śubha-karma vā kiyad aho saj-jātir apy asti vā
hīnārthādhika-sādhake tvayi tathāpy acchedya-mūlā satī
  he gopī-jana-vallabha vyathayate hā hā mad-āśaiva mām

“Sou pobre em amor a Deus, e não tenho qualidade para ouvir sobre o serviço devocional. Nem tenho entendimento algum sobre a ciência do serviço devocional, nem cultivo de conhecimento, tampouco alguma atividade virtuosa a meu crédito. Nem mesmo sou de alta estirpe. Não obstante, ó querido das donzelas de Vraja, ainda mantenho a esperança de alcançar-Vos, e esta esperança está sempre me perturbando.” Semelhante devoto, inspirado a fundo por esses fortes desejos, sempre canta Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare Hare/ Hare Rāma, Hare Rāma, Rāma Rāma, Hare Hare.

No Kṛṣṇa-karṇāmṛta (32), Bilvamaṅgala compôs o seguinte verso a esse respeito:

tvac chaiśavaṁ tri-bhuvanādbhutam ity avehi
  mac-cāpalaṁ ca tava vā mama vādhigamyam
tat kiṁ karomi viralaṁ muralī-vilāsi
  mugdhaṁ mukhāmbujam udīkṣitum īkṣaṇābhyām

“Ó Kṛṣṇa! Ó maravilhoso flautista! A beleza das atividades de Vossa infância executadas neste mundo é muito maravilhosa. Conheceis a agitação de minha mente, e eu sei quem sois Vós. Ninguém sabe quão confidencial é o nosso relacionamento. Ainda que meus olhos anseiem por vêr-Vos, isso me é impossível. Por favor, deixai-me saber o que devo fazer.” Passagem semelhante aparece no Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.3.38), onde Rūpa Gosvāmī afirma:

rodana-bindu-maranda-syandi-
dṛg-indīvarādya govinda
tava madhura-svara-kaṇṭhī
gāyati nāmāvalīṁ bālā

“Ó Govinda! Esta mocinha com lágrimas nos olhos está chorando com uma doce voz, cantando Vossas glórias.” Tais devotos puros estão sempre ansiosos por descrever as glórias de Kṛṣṇa e por viver onde Kṛṣṇa exibiu Seus passatempos. Outro verso semelhante aparece no Kṛṣṇa-karṇāmṛta (92): “O corpo de Kṛṣṇa é tão lindo, e Seu rosto é tão belo! Tudo que se refere a Ele é doce e fragrante”. E lemos no Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.2.156): “Ó Vós que tendes olhos de lótus, quando conseguirei cantar sempre Vosso santo nome, e, inspirado por este canto, quando poderei dançar às margens do Yamunā?”

O Senhor Caitanya citou a Sanātana Gosvāmī todas estas descrições da fase do serviço devocional chamada bhāva.

O Senhor Caitanya passou então a descrever os sintomas do verdadeiro amor a Deus. Ele informou a Sanātana Gosvāmī que ninguém pode entender a pessoa que desenvolveu amor por Kṛṣṇa. Ninguém pode entender suas palavras, atividades e sintomas. Mesmo que seja muito erudito, ser-lhe-á dificílimo entender um devoto puro que está amando o Senhor. Isto também é confirmado no Bhakti-rasāmṛta-sindhu.

Quem se ocupa em serviço devocional fica desalentado ao cantar as glórias do Senhor Supremo. Porque o Senhor lhe é muito querido, quando ele glorifica o Seu nome, fama e assim por diante, torna-se quase um insano, e nesta condição ele ora ri, ora chora e ora dança. Ele continua dessa maneira mesmo sem considerar sua situação. Através do desenvolvimento gradual do seu amor a Deus, ele aumenta sua afeição, emoção e êxtase. Semelhante apego, mahābhāva, é a fase mais elevada de amor devocional. Ele pode ser comparado ao açúcar-cande, que é a forma mais concentrada do açúcar. O amor a Deus pode desenvolver-se gradualmente de tal maneira que o prazer transcendental para o devoto verdadeiro aumenta até a fase máxima.

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