Capítulo Dezessete
O Senhor Caitanya, a Personalidade de Deus Original
Seguindo os passos de Kavirāja Kṛṣṇadāsa Gosvāmī, oferecemos nossas respeitosas reverências aos pés de lótus do Senhor Caitanya.
O Senhor Caitanya é descrito da seguinte maneira: Ele é o único refúgio dos desamparados, dos mais caídos, e Ele é a única esperança dos que são desprovidos de todo o conhecimento espiritual. Tentaremos discutir Sua grande contribuição ao serviço devocional.
O supremamente poderoso Senhor Kṛṣṇa manifesta-Se sob cinco potências distintas. Ainda que seja inigualável, a fim de servir a cinco propósitos espirituais específicos, Ele manifesta-Se de cinco maneiras. Tal diversidade é eterna e bem-aventurada, ao contrário da concepção da monótona unidade. Através dos textos védicos compreendemos que a Verdade Absoluta, a Suprema Personalidade de Deus, existe eternamente com Suas diversas energias. O Senhor Caitanya apareceu com diversas energias plenárias, que perfazem um número de cinco; logo, o Senhor Caitanya é conhecido como Kṛṣṇa com diversas energias.
Não há diferença entre a energia e o energético com relação ao aparecimento do Senhor como Śrī Caitanya Mahāprabhu e Seus quatro associados – Nityānanda Prabhu, Advaita Prabhu, Gadādhara e Śrīvāsa. Entre estas cinco distintas manifestações do Senhor Supremo (como o próprio Senhor, Sua encarnação, expansão e energias) não há diferença espiritual. Eles são cinco manifestações em uma Verdade Absoluta. Com o objetivo de saborear transcendentais doçuras na Verdade Absoluta, existem cinco diferentes manifestações. Estas são conhecidas como a forma de um devoto, a identidade de um devoto, a encarnação de um devoto, o devoto puro e a energia devocional.
Dentre as cinco variedades da Verdade Absoluta, a forma do Senhor Caitanya é a manifestação da Personalidade de Deus original, Kṛṣṇa. O Senhor Nityānanda é a manifestação da primeira expansão do Senhor Supremo. De igual modo, Advaita Prabhu é uma encarnação do Senhor Supremo. Estes três – Caitanya, Nityānanda e Advaita – pertencem à categoria de viṣṇu-tattva, ou à Suprema Verdade Absoluta. Śrīvāsa representa o devoto puro, e Gadādhara representa a energia interna do Senhor encarregada do progresso da devoção pura. Portanto, Gadādhara e Śrīvāsa, embora incluídos no viṣṇu-tattva, são energias dependentes, pertencentes ao Senhor Supremo. Em outras palavras, eles não são diferentes do energético, mas são manifestos diversamente, com o objetivo de saborear relacionamentos transcendentais. O processo completo do serviço devocional envolve uma reciprocação transcendental no relacionamento entre o adorador e o adorado. Sem uma troca de sabores transcendentais, o serviço devocional não tem significado.
Na literatura védica (Kaṭha Upaniṣad), afirma-se que o Senhor Supremo é a suprema entidade viva entre todas as entidades vivas. Há inumeráveis entidades vivas, porém, há uma entidade viva que é a Suprema Divindade Absoluta. A diferença entre a entidade viva singular e as entidades vivas plurais é que a entidade viva singular é o Senhor de todas. O Senhor Caitanya é esta entidade viva suprema, e Ele descendeu para regenerar as inumeráveis entidades vivas caídas. Em outras palavras, o propósito específico do advento do Senhor Caitanya é estabelecer a verdade védica de que existe uma Suprema Personalidade de Deus predominando e mantendo as inumeráveis personalidades de todas as entidades vivas. Porque os filósofos impersonalistas (māyāvādīs) não conseguem entender isto, o próprio Senhor Caitanya adveio para iluminar as pessoas em geral acerca da verdadeira natureza do relacionamento entre o Supremo e as inúmeras entidades vivas.
Na Bhagavad-gītā, as últimas instruções de Kṛṣṇa foram que todos devem abandonar todas as outras ocupações e prestar-Lhe serviço devocional. Todavia, depois do desaparecimento de Kṛṣṇa, pessoas ininteligentes O interpretaram mal. Eles ficaram contaminados pela filosofia māyāvādī, que produziu tantos especuladores mentais, e por isso esqueceram a verdadeira posição da Verdade Absoluta e da entidade viva. Portanto, o próprio Senhor Śrī Kṛṣṇa voltou a aparecer como o Senhor Caitanya, para ensinar às almas caídas deste mundo material a maneira de aproximar-se do Senhor Kṛṣṇa. A Bhagavad-gītā ensina que se deve abandonar tudo e dar cabo deste mundo de apegos materiais. Um devoto puro do Senhor Kṛṣṇa e alguém que siga a filosofia do Senhor Caitanya são idênticos. A filosofia de Caitanya é que se deve abandonar tudo e adorar Kṛṣṇa, Deus. E Kṛṣṇa, a Personalidade de Deus, falou as mesmas palavras, indicando a Si próprio como o Senhor Supremo. Todavia, os filósofos māyāvādīs O compreenderam mal. Portanto, o Senhor Caitanya, para esclarecer a situação, reiterou a mensagem do Senhor Kṛṣṇa: ninguém deve declarar-se igual a Deus, todos devem, ao contrário, adorar Kṛṣṇa como o Senhor Supremo.
Cometemos um grande erro se pensamos que o Senhor Caitanya é uma alma condicionada. Devemos compreender que Ele é a Suprema Verdade Absoluta, a Personalidade de Deus, o próprio Śrī Kṛṣṇa. Por isso, o Caitanya-caritāmṛta afirma: “Kṛṣṇa Se faz presente agora sob Suas cinco manifestações distintas”. A menos que se esteja situado em bondade imaculada, será muito difícil compreender que o Senhor Caitanya é a própria Suprema Personalidade de Deus. Logo, para entender o Senhor Caitanya, devemos seguir Seus discípulos diretos – os seis Gosvāmīs – e sobretudo o caminho traçado por Śrīla Jīva Gosvāmī.
O fato mais espantoso é que o Senhor Caitanya, mesmo sendo a Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa, nunca Se apresentou como Kṛṣṇa. Ao contrário, sempre que devotos inteligentes descobriam que Ele era o Senhor Kṛṣṇa e O tratavam por tal, Ele negava isto. Com efeito, às vezes chegava a tapar os ouvidos, protestando que ninguém deve ser tratado pelo título de Senhor Supremo. Indiretamente, Ele estava ensinando aos filósofos māyāvādīs que ninguém deve se fazer passar por Senhor Supremo e assim desviar as pessoas. Nem devem os seguidores ser tolos a ponto de aceitar qualquer um como a Suprema Personalidade de Deus. Deve-se analisar a pessoa em questão, consultando as escrituras e vendo suas atividades. Não se deve, contudo, confundir o Senhor Caitanya e Suas cinco diferentes manifestações com seres humanos comuns. O Senhor é a Suprema Personalidade de Deus, o próprio Kṛṣṇa. A beleza do Senhor Caitanya é tamanha que, mesmo sendo o Senhor Supremo, Ele veio como um grande devoto, para ensinar todas as almas condicionadas a prestar serviço devocional. As almas condicionadas interessadas no serviço devocional devem seguir os passos exemplares do Senhor Caitanya, para aprender como Kṛṣṇa pode ser alcançado através do serviço devocional. Assim, o próprio Senhor Supremo ensina à alma condicionada como se aproximar dEle mediante o serviço devocional.
Pelo estudo analítico das cinco diferentes manifestações do Senhor Supremo, podemos chegar a entender que o Senhor Śrī Caitanya Mahāprabhu é o Absoluto Supremo e que o Senhor Nityānanda é uma expansão imediata da Suprema Verdade Absoluta. Também podemos concluir que Advaita Prabhu está na mesma categoria que a Suprema Personalidade de Deus, mas é subordinado ao Senhor Caitanya e Nityānanda Prabhu. A Suprema Personalidade de Deus e Suas expansões subordinadas são adoráveis pelos outros dois – a saber, a representação da potência interna e a representação da potência marginal. A representação da potência interna, Gadādhara, representa o devoto confidencial, e a representação da potência marginal é o devoto puro. Ambos são adoradores das outras três categorias, porém todos Eles estão ocupados em transcendental serviço à Suprema Personalidade de Deus, Śrī Caitanya Mahāprabhu.
Existe uma diferença específica entre o devoto puro e o devoto confidencial. Diferentes potências do Senhor Supremo estão ocupadas a Seu serviço em diversos relacionamentos transcendentais. Eles estão situados em amor conjugal, em afeição parental, em amizade e em serviço. Mediante um julgamento imparcial, pode-se descobrir que as potências internas do Senhor Supremo ocupadas em amor conjugal com Ele são os melhores de todos os devotos. Dessa maneira, tanto os devotos internos quanto os confidenciais são atraídos pelo amor conjugal à Suprema Verdade Absoluta. Estes são os devotos mais confidenciais do Senhor Caitanya. Outros devotos puros, que são mais ou menos apegados a Śrī Nityānanda Prabhu e Advaita Prabhu, são atraídos por outros relacionamentos transcendentais, tais como afeição parental, amizade e serviço. Ao ficarem apegados às atividades do Senhor Caitanya, estes logo se tornam devotos confidenciais em amor conjugal ao Senhor Supremo.
Existe uma bela canção de Śrī Narottama dāsa Ṭhākura, um grande devoto e ācārya na sucessão discipular do Senhor Caitanya, na qual ele canta: “Quando haverá tremores transcendentais em todo o meu corpo só por ouvir o nome de Gaurāṅga? Quando de meus olhos fluirão incessantes lágrimas apenas ao pronunciar os nomes do Senhor? Quando o Senhor Nityānanda terá misericórdia de mim, e quando todos os meus desejos de obter gozo material se tornarão insignificantes? Quando me purificarei abandonando todas as contaminações do desfrute material? E quando poderei ver a morada transcendental, Vṛndāvana? Quando ficarei ávido por aceitar os seis Gosvāmīs como meus guias principais? E quando conseguirei entender o amor conjugal de Kṛṣṇa?” Ninguém deve estar ávido por entender o amor conjugal de Kṛṣṇa sem submeter-se a treinamento disciplinar sob a guia dos seis Gosvāmīs de Vṛndāvana.
O movimento de saṅkīrtana inaugurado pelo Senhor Caitanya é um passatempo transcendental do Senhor. “Por causa dele, Eu vivo para pregar e popularizar este movimento no mundo material.” Neste movimento de saṅkīrtana do Senhor Caitanya, Nityānanda e Advaita são Suas expansões, e Gadādhara e Śrīvāsa são Suas potências interna e marginal. As entidades vivas também são chamadas de potência marginal porque elas possuem duas atitudes inerentes – a saber, a tendência de se render a Kṛṣṇa e a tendência de se tornar independente dEle. Devido à propensão ao desfrute mundano, a entidade viva fica contaminada pelo mundo material. Quando a entidade viva é dominada pelo desejo de gozo dos sentidos e fica enredada na vida material, sujeita-se às três misérias desta existência.
Ela é tal qual uma semente plantada na terra. Se a semente for inundada, não haverá possibilidade de frutificar. De modo semelhante, se um homem é cativado pelo prazer material, e, mesmo que a semente de tal desfrute esteja dentro do coração da alma condicionada, ela pode ser coberta pela inundação das atividades transcendentais executadas com amor a Deus. Deste modo, sua semente potencial não pode frutificar em uma vida condicionada de existência material. As entidades vivas condicionadas no mundo material, sobretudo na atual era de Kali, estão submersas na inundação de amor a Deus inaugurado pelo Senhor Caitanya e Seus associados.
A esse respeito, existe um verso escrito por Sua Santidade Prabodhānanda Sarasvatī, em seu livro Śrī Caitanya-candrāmṛta, que afirma que as pessoas materialistas ficam muito entusiasmadas em manter seus membros familiares, e que os inúmeros especuladores místicos ocupam-se em especular sobre como liberar-se das misérias da vida material, executando assim várias austeridades e penitências. Porém, aqueles que descobriram o supremo sabor transcendental do movimento do Senhor Caitanya Mahāprabhu não mais têm gosto por estas atividades.
Aqueles que têm a impressão de que há alguma contaminação material na forma da Suprema Personalidade de Deus e no Seu serviço devocional chamam-se māyāvādīs. Segundo suas especulações imperfeitas, o Brahman impessoal é considerado a única existência na manifestação cósmica. Tão logo se lhes apresenta a Suprema Personalidade de Deus, eles consideram que Sua personalidade provém de māyā, ou a energia material externa. Tais pessoas consideram que todas as encarnações do Senhor Supremo estão contaminadas pela natureza material. De acordo com eles, o corpo material e as atividades da matéria que identificam as entidades vivas são manifestações materiais. Segundo eles, liberação significa o fim da identificação individual, ou da entidade viva pura. Em outras palavras, os māyāvādīs sustentam que, ao liberar-se, a entidade viva se torna una com o Brahman impessoal supremo. De acordo com tal filosofia māyāvādī, a Personalidade de Deus, Sua morada, Seu serviço devocional e Seus devotos emotivos estão todos sob o domínio de māyā e, por conseguinte, sujeitos às condições materiais. Aqueles que esquecem a natureza transcendental do Senhor Supremo, Sua morada, Seu serviço devocional e Seus devotos, consideram tudo isto como meras manifestações de atividades materiais. Quando alguém pensa que existe a possibilidade de investigar a transcendência, é chamado de agnóstico, e quando pensa que existe a possibilidade de criticar a transcendência, é chamado ateísta. O Senhor Caitanya queria aceitar todas as classes de agnósticos, ateístas, céticos e infiéis e submergi-los na inundação de amor a Deus. Desta forma, Ele aceitou a ordem de vida renunciada para atrair todas estas forças.
O Senhor Caitanya permaneceu como chefe de família até os vinte e quatro anos, e aos vinte e cinco, aceitou a ordem renunciada. Depois de aceitar a ordem renunciada (sannyāsa), Ele atraiu muitos outros sannyāsīs. Quando estava propagando o movimento de saṅkīrtana como chefe de família, muitos sannyāsīs māyāvādīs não levaram Seu movimento muito a sério. Porém, depois que aceitou a ordem de sannyāsa, o Senhor salvou estudiosos especuladores, ateístas e os que estavam apegados às atividades fruitivas e às críticas desnecessárias. O Senhor foi tão bondoso que aceitou todas estas pessoas, e entregou-lhes o fator mais importante da vida: amor a Deus.
Para cumprir Sua missão de conceder às almas condicionadas amor por Deus, o Senhor Caitanya elaborou muitos métodos para atrair as pessoas desinteressadas desse amor. Após ter aceitado a ordem renunciada, todos os agnósticos, críticos, ateístas e especuladores mentais tornaram-se Seus alunos e seguidores. Até mesmo muitos que não eram hindus e que não seguiam os princípios védicos aceitaram o Senhor Caitanya como o mestre supremo. Os únicos que evitaram a misericórdia de Śrī Caitanya Mahāprabhu foram os sannyāsīs māyāvādīs de Benares. Śrī Bhaktisiddhānta Sarasvatī Gosvāmī descreve a situação destes filósofos māyāvādīs: “Os filósofos māyāvādīs de Benares eram menos inteligentes porque queriam mensurar tudo por meio da percepção direta. Porém, tudo o que se percebe é calculado em base da percepção material. A Verdade Absoluta é transcendência, mas de acordo com eles, não existe variedade na transcendência, pois dizem que tudo o que é pleno de variedade é māyā”.
Na época de Caitanya Mahāprabhu, havia também outros filósofos impersonalistas: os filósofos māyāvādīs de Saranātha. Saranātha é um lugar perto de Benares onde os filósofos budistas costumavam residir, e ainda hoje podem-se ver muitas stūpas de māyāvādīs budistas. Os filósofos māyāvādīs de Saranātha eram diferentes dos impersonalistas que acreditavam na manifestação impessoal de Brahman. Segundo os filósofos de Saranātha, não há, em absoluto, existência espiritual. O fato é que tanto os filósofos māyāvādīs de Benares quanto os filósofos de Saranātha estavam presos pela natureza material. Nenhum deles de fato conhecia a natureza da Transcendência Absoluta. Ainda que superficialmente aceitassem os princípios védicos e se considerassem transcendentalistas, os filósofos de Benares não aceitavam a variedade espiritual. Como não tinham informação sobre o serviço devocional, eram chamados não-devotos, ou aqueles que são contra o serviço devocional ao Senhor Kṛṣṇa.
Os impersonalistas especulam sobre a Suprema Personalidade de Deus e Seus devotos e os sujeitam aos testes da percepção direta. Todavia, o Senhor, Seus devotos e Seu serviço devocional não estão sujeitos à percepção direta. Em outras palavras, a variedade espiritual é desconhecida aos filósofos māyāvādīs; portanto, todos os filósofos māyāvādīs e sannyāsīs criticavam o Senhor Caitanya quando Ele estava liderando o Seu movimento de saṅkīrtana. Eles ficaram surpresos ao ver o Senhor Caitanya depois que Ele aceitou de Keśava Bhāratī a ordem de sannyāsa, pois Keśava Bhāratī pertencia à escola māyāvādī. Portanto, já que o Senhor Caitanya pertencia à seita de sannyāsīs māyāvādīs, estes ficaram surpresos ao vê-lO cantar e dançar, em vez de ouvir e ler o Vedānta, como é de costume. Os filósofos māyāvādīs apreciavam muito o Vedānta, e o interpretavam a sua própria maneira. Em lugar de entenderem sua própria posição, eles tachavam o Senhor Caitanya de sannyāsī desautorizado, argumentando que, por Ele ser um sentimentalista, não era um sannyāsī autêntico.
Todas estas críticas foram levadas ao Senhor Caitanya quando Ele estava em Benares, e Ele, de modo nenhum, ficou surpreso com elas, chegando a sorrir ao saber disso. Ele não Se associou com os sannyāsīs māyāvādīs, pelo contrário, permaneceu sozinho e executou Sua própria missão. Depois de alguns dias em Benares, Ele partiu para Mathurā.