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Capítulo Vinte e Dois

O Śrīmad-Bhāgavatam

Após a conversão dos sannyāsīs māyāvādīs ao caminho de Caitanya Mahāprabhu, muitos eruditos e curiosos visitaram o Senhor em Benares. Como não era possível que todos vissem Caitanya Mahāprabhu em Sua residência, costumavam ficar em fila para vê-lO passar a caminho do templo de Viśvanātha e Bindumādhava. Certa vez, enquanto visitava o templo com Seus associados – Candraśekhara Ācārya, Paramānanda, Tapanamiśra, Sanātana Gosvāmī e outros –, o Senhor cantava:

haraye namaḥ kṛṣṇa yādavāya namaḥ
gopāla govinda rāma śrī-madhusūdana

Enquanto o Senhor cantava e dançava dessa maneira, milhares de pessoas se juntaram a Seu redor, e quando o Senhor cantava, elas bradavam. A vibração era tão tumultuosa que Prakāśānanda Sarasvatī, que estava sentado ali perto, logo se reuniu à multidão com seus discípulos. Assim que viu o belo corpo do Senhor Caitanya enquanto Ele dançava com Seus associados, Prakāśānanda Sarasvatī também se juntou e passou a cantar: “Hari! Hari!” Todos os habitantes de Benares ficaram maravilhados ao ver a dança extática do Senhor Caitanya. Contudo, o Senhor Caitanya refreou Seu êxtase contínuo e parou de dançar quando viu os sannyāsīs māyāvādīs. Logo que o Senhor parou de cantar e dançar, Prakāśānanda Sarasvatī prostrou-se a Seus pés. Tentando detê-lo, o Senhor Caitanya disse: “Oh! és o mestre espiritual do mundo inteiro, jagad-guru, e Eu nem sequer me igualo a teus discípulos. Portanto, não deves adorar um inferior como Eu. És tal qual o Brahman Supremo, e se Eu te permitir prostrar-se a Meus pés, cometerei uma grandiosíssima ofensa. Embora não tenhas a visão dualística, a fim de ensinar o povo em geral, não deves fazer isso”.

“Antes, eu falei mal de Ti muitas vezes”, respondeu Prakāśānanda Sarasvatī. “Agora, para livrar-me dos resultados de minha ofensa, prostro-me a Teus pés.” Então, citou um verso das escrituras védicas que declara que mesmo uma alma liberada que comete uma ofensa contra o Senhor Supremo, volta a ser vítima da contaminação material. Prakāśānanda Sarasvatī ainda citou outro verso do Śrīmad-Bhāgavatam (10.34.9), sobre o fato de Nanda Mahārāja ser atacado por uma serpente, que outrora fora Vidyādharārcita. Ao ser tocada pelos pés de lótus de Kṛṣṇa, a serpente retomou seu corpo anterior e libertou-se das reações de suas atividades pecaminosas.

Quando o Senhor Caitanya ouviu que estava sendo igualado a Kṛṣṇa, protestou brandamente. Ele queria advertir as pessoas em geral a não comparar o Senhor Supremo com nenhuma entidade viva, e, embora fosse o próprio Senhor Supremo, protestou contra esta comparação a fim de nos ensinar. Assim, Ele disse que a máxima ofensa é comparar qualquer um com o Supremo Senhor Kṛṣṇa. O Senhor Caitanya sempre sustentou que Viṣṇu, a Suprema Personalidade de Deus, é grandioso e que as entidades vivas, por mais grandiosas que sejam, são apenas infinitesimais. Com relação a isto, Ele citou um verso do Padma Purāṇa encontrado no tantra vaiṣṇava (Hari-bhakti-vilāsa 1.73): “Quem compara o Senhor Supremo mesmo com os mais magníficos semideuses, tais como Brahmā e Śiva, deve ser considerado o ateísta número um”.

“Posso entender que és a Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa”, continuou Prakāśānanda Sarasvatī, “e, embora Te apresentes como devoto, ainda assim és adorável, pois sobrepujas a todos nós em erudição e realização. Por isso, blasfemando-Te, cometemos a maior ofensa. Por favor, perdoa-nos.”

O Śrīmad-Bhāgavatam (6.14.5) declara como o devoto se torna o maior de todos os transcendentalistas:

muktānām api siddhānāṁ
  nārāyaṇa-parāyaṇaḥ
su-durlabhaḥ praśāntātmā
  koṭiṣv api mahāmune

“Existem muitas almas liberadas e almas aperfeiçoadas, porém, dentre todas elas, quem é devoto da Suprema Personalidade de Deus é o melhor. Os devotos do Senhor Supremo estão sempre calmos e quietos, e raramente se vê perfeição igual a deles, mesmo entre milhões de pessoas.” Prakāśānanda também citou outro verso (Śrīmad-Bhāgavatam 10.4.46) onde se afirma que a duração de vida de uma pessoa, sua prosperidade, fama, religião e bênção de autoridades superiores, tudo fica perdido quando ela ofende um devoto. Prakāśānanda citou mais um verso do Śrīmad-Bhāgavatam (7.5.32) que diz que todos os receios da alma condicionada desaparecem ao toque dos pés de lótus da Suprema Personalidade de Deus. Todavia, não se pode tocar os pés de lótus do Senhor Supremo a menos que se receba a bênção da poeira dos pés de lótus do devoto puro do Senhor. Em outras palavras, ninguém pode tornar-se um devoto puro da Suprema Personalidade de Deus se não for favorecido por outro devoto puro do Senhor.

“Agora estou me refugiando em Teus pés de lótus”, disse Prakāśānanda Sarasvatī, “pois quero ser elevado à posição de devoto do Senhor Supremo.”

Depois de falar assim, Prakāśānanda Sarasvatī e o Senhor Caitanya sentaram-se juntos. “Também somos cientes de tudo o que disseste a respeito das contradições na filosofia māyāvādī”, disse Prakāśānanda. “Na verdade, sabemos que todos os comentários sobre as escrituras védicas feitos por filósofos māyāvādīs são errôneos, sobretudo os de Śaṅkarācārya. Todas as interpretações de Śaṅkarācārya sobre o Vedānta-sūtra são invenções de sua imaginação. Não explicaste os códigos do Vedānta-sūtra e dos Upaniṣads segundo Tua própria imaginação, senão que os apresentaste como eles são. Assim, estamos todos satisfeitos por ter ouvido Tua explicação. Estas explicações dos códigos do Vedānta-sūtra e dos Upaniṣads não podem ser dadas por ninguém senão a Suprema Personalidade de Deus. Como tens todas as potências do Senhor Supremo, por favor, continua explicando o Vedānta-sūtra para que eu possa me beneficiar.”

O Senhor Caitanya protestou pelo fato de ter sido chamado de Senhor Supremo, e disse: “Meu caro Senhor, sou uma entidade viva comum. Não posso conhecer o verdadeiro significado do Vedānta-sūtra, mas Vyāsadeva, que é uma encarnação de Nārāyaṇa, pode conhecê-lo. Nenhuma entidade viva comum pode interpretar o Vedānta-sūtra segundo suas concepções mundanas. Para impedir que pessoas inescrupulosas apresentem comentários sobre o Vedānta-sūtra, o próprio autor, Vyāsadeva, já apresentou seu comentário sobre ele, escrevendo o Śrīmad-Bhāgavatam”. Em outras palavras, a melhor explicação de um livro é aquela escrita pelo próprio autor. Ninguém pode entender a intenção do autor, se ele próprio não revelar o propósito subjacente de seu escrito. Por isso, o Vedānta-sūtra deve ser entendido através do Śrīmad-Bhāgavatam, o comentário escrito pelo autor do Vedānta-sūtra.

O praṇava, ou oṁkāra, é a substância divina de todos os Vedas. Dão-se mais explicações sobre o oṁkāra no mantra gāyatrī, tal como foi explicado no Śrīmad-Bhāgavatam. Há quatro versos escritos a respeito disso, e estes foram explicados a Brahmā pelo próprio Senhor Kṛṣṇa. Por sua vez, Brahmā explicou-os a Nārada, e Nārada a Vyāsadeva. Dessa maneira, o significado dos versos do Śrīmad-Bhāgavatam desce através da sucessão discipular. Não é verdade que cada um pode fazer seus próprios comentários tolos sobre o Vedānta-sūtra e desencaminhar os leitores. Qualquer um que queira entender o Vedānta-sūtra deve ler o Śrīmad-Bhāgavatam atentamente. Sob as instruções de Nārada Muni, Vyāsadeva compilou o Śrīmad-Bhāgavatam com o propósito de explicar o Vedānta-sūtra. Ao escrever o Śrīmad-Bhāgavatam, Vyāsadeva reuniu toda a essência dos Upaniṣads, cujo propósito também foi explicado no Vedānta-sūtra. O Śrīmad-Bhāgavatam é, portanto, a essência de todo o conhecimento védico. O Śrīmad-Bhāgavatam explica muito bem o que é afirmado nos Upaniṣads e reafirmado no Vedānta-sūtra.

Há uma passagem no Īśopaniṣad semelhante a um verso do Śrīmad-Bhāgavatam (8.1.10) que afirma que tudo o que se vê na manifestação cósmica não é senão a energia do Senhor Supremo e não é diferente dEle. Portanto, Ele é o controlador, amigo e mantenedor de todas as entidades vivas. Devemos viver da misericórdia de Deus e apossarmo-nos apenas das coisas que nos são destinadas. Deste modo, sem invadir a propriedade alheia, pode-se desfrutar a vida.

Em outras palavras, o propósito dos Upaniṣads, Vedānta-sūtra e Śrīmad-Bhāgavatam é idêntico. Se alguém estudar o Śrīmad-Bhāgavatam com atenção, descobrirá que todos os Upaniṣads e o Vedānta-sūtra são bem explicados nele. O Śrīmad-Bhāgavatam nos ensina como restabelecer nossa relação eterna com o Senhor Supremo, como agir neste relacionamento, e, por fim, como conseguir o benefício máximo dele.

Os quatro versos que começam com aham eva são a essência de todo o Bhāgavatam. São estes: “Sou o centro supremo das relações de todas as entidades vivas, e o conhecimento a Meu respeito é o supremo. Este processo, mediante o qual a entidade viva pode alcançar-Me, chama-se abhidheya. Através dele, pode-se alcançar a perfeição máxima da vida, amor a Deus. Quando a pessoa alcança o amor a Deus, sua vida torna-se perfeita”. A explicação destes quatro versos é dada no Śrīmad-Bhāgavatam, e o Senhor Caitanya apresentou uma breve descrição dos fundamentos destes versos. Ele disse que ninguém pode entender a posição constitucional do Senhor Supremo – Sua situação, Suas qualidades transcendentais, Suas atividades transcendentais e Suas seis opulências. Ninguém pode compreendê-las através da especulação mental ou da educação acadêmica; elas só podem ser compreendidas através da misericórdia do Senhor. Como se afirma na Bhagavad-gītā, quem é bastante afortunado de receber o favor do Senhor pode compreender todas estas explicações mediante Sua misericórdia.

O Senhor existia antes da criação material; portanto, os ingredientes materiais, a natureza e as entidades vivas, emanaram todos dEle, e após a dissolução repousam nEle. Quando a criação se manifesta, ela é mantida por Ele; de fato, qualquer manifestação que vemos é apenas a transformação de Sua energia externa. Quando o Senhor Supremo retira Sua energia externa, tudo entra nEle. No primeiro dos quatro versos, a palavra aham aparece três vezes para enfatizar que a Suprema Personalidade de Deus é plena de todas as opulências. Aham é afirmado três vezes só para castigar quem não pode entender ou acreditar na natureza e forma transcendentais do Senhor Supremo.

O Senhor é o possuidor da energia interna, das energias externa, marginal e relativa, da manifestação cósmica e das entidades vivas. A energia externa manifesta-se através dos modos qualitativos (guṇas) da natureza material. Quem consegue entender a natureza da entidade viva no mundo espiritual pode de fato compreender vedyam, ou conhecimento perfeito. Ninguém pode entender o Senhor Supremo pelo simples fato de ver a energia material e a alma condicionada, porém, quando a pessoa tem conhecimento perfeito, ela se livra da influência da energia externa. A Lua reflete a luz do Sol, e, sem o Sol, a Lua não pode iluminar nada. Do mesmo modo, esta manifestação cósmica material não é senão o reflexo do mundo espiritual. Quando alguém realmente se liberta do encanto da energia externa, pode compreender a natureza constitucional do Senhor Supremo. O serviço devocional é o único meio pelo qual se pode alcançar o Senhor, e qualquer pessoa em qualquer país e sob qualquer circunstância pode aceitá-lo. O serviço devocional está acima dos quatro princípios da religião e da compreensão derivada da liberação. Mesmo os preâmbulos do serviço devocional são transcendentais à compreensão máxima derivada da liberação e da religião vulgar.

Portanto, a pessoa deve aproximar-se de um mestre espiritual genuíno – sem considerar sua casta, credo, cor, país, etc. – e ouvir dele tudo sobre o serviço devocional. A verdadeira finalidade da vida é reviver nosso latente amor por Deus. De fato, esta é nossa necessidade fundamental. O Śrīmad-Bhāgavatam explica como se pode alcançar este amor por Deus. Existe conhecimento teórico e conhecimento específico ou realizado, e obtém conhecimento realizado perfeito quem compreende os ensinamentos recebidos do mestre espiritual.

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