Capítulo Vinte e Quatro
Conversas com Sārvabhauma Bhaṭṭācārya
Quando o Senhor Caitanya Se encontrou com Sārvabhauma Bhaṭṭācārya em Jagannātha Purī, Bhaṭṭācārya, sendo o maior lógico da época, também queria ensinar o Vedānta ao Senhor. Porque Bhaṭṭācārya era mais velho, da idade do pai do Senhor Caitanya, ele compadeceu-se do jovem sannyāsī e pediu-Lhe que aprendesse o Vedānta-sūtra com ele. Senão, disse Bhaṭṭācārya, seria difícil para o Senhor Caitanya continuar como sannyāsī. Quando, enfim, o Senhor concordou, Bhaṭṭācārya começou a ensiná-lO no templo de Jagannātha. Bhaṭṭācārya dissertou sobre o Vedānta-sūtra por sete dias sem parar, e o Senhor o ouviu sem dizer uma palavra. No oitavo dia, Bhaṭṭācārya disse: “Tens ouvido o Vedānta-sūtra de mim há uma semana, mas não perguntaste nada, nem indicaste que o estou explicando bem. Logo, não posso dizer se estás entendendo ou não”.
“Sou um tolo”, respondeu o Senhor. “Não tenho capacidade para estudar o Vedānta-sūtra, porém, como Me pediste para ouvir-te, estou tentando escutar. Estou te ouvindo apenas porque disseste que é dever de todo sannyāsī ouvir o Vedānta-sūtra. Mas, quanto ao sentido que estás transmitindo – não o posso entender.” Dessa maneira, o Senhor indicou que na sampradāya māyāvādī há muitos pretensos sannyāsīs que, embora analfabetos e ininteligentes, ouvem o Vedānta-sūtra de seu mestre espiritual apenas por uma questão de formalidade. Embora escutem, não entendem nada. Quanto ao Senhor Caitanya, Ele disse que não compreendia a explicação de Bhaṭṭācārya, não porque era muito difícil para Sua compreensão, mas porque Ele não aprovava a interpretação māyāvādī.
Quando o Senhor disse que era um tolo ignorante e não podia acompanhar as explicações, Bhaṭṭācārya respondeu: “Se não acompanhas o que digo, por que não perguntas? Por que apenas permaneces em silêncio? Parece que tens algo a dizer sobre minhas explicações”.
“Meu caro senhor”, respondeu Śrī Caitanya. “Quanto ao Vedānta-sūtra ou aos códigos do Vedānta, posso entender-lhes o sentido muito bem. Todavia, não posso entender tuas explicações. Não há nada deveras difícil quanto ao sentido do Vedānta-sūtra original, porém, a maneira como o explicas parece obscurecer o seu significado verdadeiro. Não elucidas o sentido direto, mas imaginas algo e consequentemente obscureces o verdadeiro significado. Penso que tens uma doutrina particular que estás tentando expor através dos códigos do Vedānta-sūtra.”
Segundo o Muktika Upaniṣad, há cento e oito Upaniṣads. Entre estes, estão: 1) Īśa, 2) Kena, 3) Kaṭha, 4) Praśna, 5) Muṇḍaka, 6) Māṇḍūkya, 7) Tittiri, 8) Aitareya, 9) Chāndogya, 10) Bṛhad-āraṇyaka, 11) Brahma, 12) Kaivalya, 13) Jāvāla, 14) Śvetāśva, 15) Haṁsa, 16) Āruṇi, 17) Garbha e 18) Nārāyaṇa. Os cento e oito Upaniṣads contêm todo o conhecimento sobre a Verdade Absoluta. As cento e oito contas de oração cantadas pelos vaiṣṇavas representam os cento e oito Upaniṣads que contêm o conhecimento pleno sobre a Verdade Absoluta. Alguns transcendentalistas vaiṣṇavas consideram que as cento e oito contas representam as cento e oito companheiras do Senhor Kṛṣṇa que participam na Sua dança da rāsa.
O Senhor Caitanya protestou contra as interpretações errôneas dos Upaniṣads, e rejeitou qualquer explicação que não desse o sentido direto dos Upaniṣads. A interpretação direta chama-se abhidhā-vṛtti, enquanto a interpretação indireta chama-se lakṣanā-vṛtti. A interpretação indireta não serve a propósito algum. Há quatro classes de compreensão, a saber: 1) compreensão direta (pratyakṣa), 2) compreensão hipotética (anumāna), 3) compreensão histórica (aitihya) e 4) compreensão através do som (śabda). Destas quatro, a compreensão através das escrituras védicas (que são as representações sonoras da Verdade Absoluta) é o melhor método. Os estudiosos védicos tradicionais aceitam que a compreensão através do som é a melhor.
As fezes e os ossos de qualquer entidade viva são considerados impuros segundo os textos védicos, contudo, estes textos afirmam que excremento de vaca e búzios são puros. Aparentemente estas afirmações são contraditórias, mas, porque os Vedas consideram que excremento de vaca e búzios são puros, os seguidores dos Vedas os aceitam como puros. Se quisermos entender as afirmações mediante a interpretação indireta, teremos de desafiar as afirmações védicas. Em outras palavras, as afirmações védicas não podem ser aceitas mediante nossas interpretações imperfeitas; elas devem ser aceitas como elas são. Se não forem aceitas desta maneira, não haverá autoridade nas afirmações védicas.
Segundo o Senhor Caitanya, aqueles que tentam dar interpretações pessoais às afirmações védicas não são inteligentes em absoluto. Desencaminham seus seguidores inventando suas próprias interpretações. Na Índia, há uma classe de homens conhecidos como ārya-samāja que dizem aceitar apenas os Vedas originais e rejeitar todos os outros textos védicos. O motivo deles, porém, é dar sua própria interpretação. Segundo o Senhor Caitanya, estas interpretações não devem ser aceitas. Elas simplesmente não são védicas. O Senhor Caitanya disse que as afirmações védicas dos Upaniṣads são como a luz do sol. Tudo é claro e muito distinto quando visto à luz do sol; da mesma maneira, as afirmações dos Vedas são claras e distintas. Os filósofos māyāvādīs simplesmente cobrem a luz do sol com a nuvem da interpretação falsa.
O Senhor Caitanya, então, disse que todas as afirmações védicas dos Upaniṣads visam à verdade última conhecida como Brahman. A palavra Brahman significa “o maior”, e ao falarmos do maior, de imediato nos referimos à Suprema Personalidade de Deus, a fonte de todas as emanações. A não ser que o maior possua seis opulências em plenitude, não pode ser chamado o maior. O maior, que é pleno de seis opulências, é a Suprema Personalidade de Deus. Em outras palavras, o Brahman Supremo é também a Suprema Personalidade de Deus. Na Bhagavad-gītā (10.12), Kṛṣṇa é aceito por Arjuna como o Brahman Supremo (paraṁ brahma). As concepções do Brahman impessoal e da Superalma localizada estão contidas na compreensão da Suprema Personalidade de Deus.
Sempre que falamos da Suprema Personalidade de Deus, acrescentamos a palavra śrī, indicando que Ele é pleno de seis opulências. Em outras palavras, Ele é eternamente uma pessoa; se Ele não fosse uma pessoa, as seis opulências não poderiam estar presentes em plenitude. Se dizemos que a Suprema Verdade Absoluta é impessoal, queremos dizer que Sua personalidade não é material. Assim, para distinguir Seu corpo transcendental de corpos materiais ordinários, alguns filósofos explicam que, do ponto de vista mundano, Ele é impessoal. Em outras palavras, nega-se a personalidade material, e estabelece-se a personalidade espiritual. No Śvetāśvatara Upaniṣad (3.19), explica-se isso claramente:
apāṇi-pādo javano grahītā
paśyaty acakṣuḥ sa śṛṇoty akarṇaḥ
sa vetti vedyaṁ na ca tasyāsti vettā
tam āhur agryaṁ puruṣaṁ mahāntam
“A Verdade Absoluta não tem pernas nem mãos materiais, porém, indica-se nesta escritura que Ele tem mãos espirituais com as quais aceita tudo o que Lhe é oferecido. De igual maneira, Ele não tem olhos materiais, mas, sim, olhos espirituais com os quais pode ver toda e qualquer coisa. Embora não tenha ouvidos materiais, Ele pode ouvir tudo. Tendo sentidos perfeitos, Ele conhece o passado, o presente e o futuro. De fato, Ele sabe tudo, mas ninguém pode compreendê-lO, pois Ele não pode ser compreendido através dos sentidos materiais. Sendo a origem de todas as emanações, Ele é o Supremo, o maior, a Personalidade de Deus.”
Há muitos hinos védicos semelhantes que estabelecem definitivamente que a Suprema Verdade Absoluta é uma pessoa que não pertence a este mundo material. Por exemplo, no Hayaśīrṣa-pañcarātra, explica-se que embora em cada Upaniṣad o Brahman Supremo primeiro é visto como impessoal, no final Ele é aceito em Sua forma pessoal. Há um verso semelhante no Śrī Īśopaniṣad (15):
hiraṇmayena pātreṇa
satyasyāpihitaṁ mukham
tat tvaṁ pūṣann apāvṛṇu
satya-dharmāya dṛṣṭaye
“Ó meu Senhor, sustentador de tudo que vive, Vosso rosto verdadeiro está coberto por Vossa ofuscante refulgência. Por favor, retirai esta cobertura e revelai-Vos a Vosso devoto puro.” Este verso indica que todos devem ocupar-se no serviço devocional ao Senhor Supremo, que é o mantenedor de todo este universo. Todos são sustentados por Sua misericórdia; portanto, o serviço devocional a Ele constitui a verdadeira religião. A Suprema Personalidade de Deus é a eterna forma de sac-cid-ānanda, e Sua refulgência se estende por toda a criação, do mesmo modo que a luz do sol se estende por todo o sistema solar. E assim como o disco solar está coberto pela refulgência deslumbrante do brilho do sol, a forma transcendental do Senhor está coberta pela refulgência deslumbrante chamada brahmajyoti.
Na verdade, afirma-se claramente neste verso que a forma eterna, bem-aventurada e consciente do Senhor Supremo se encontra dentro da deslumbrante refulgência do brahmajyoti, que emana do corpo do Senhor Supremo. Logo, o corpo pessoal do Senhor é a fonte do brahmajyoti, como se confirma na Bhagavad-gītā (14.27). No Hayaśīrṣa-pañcarātra e em todos os outros Upaniṣads e escrituras védicas, declara-se que o Brahman impessoal é dependente da Personalidade Suprema. De fato, sempre que, no início, fala-se do Brahman impessoal, no final, se estabelece a Personalidade Suprema. Como indica o Īśopaniṣad, a Suprema Verdade Absoluta é eternamente impessoal e pessoal, mas Seu aspecto pessoal é mais importante que o impessoal.
Segundo um mantra do Taittirīya Upaniṣad (yato vā imāni bhūtāni jāyante), esta manifestação cósmica é apenas uma manifestação da Suprema Verdade Absoluta e repousa na Suprema Verdade Absoluta. A Verdade Absoluta foi chamada o realizador ablativo, causativo e locativo. Dessa maneira, como realizador, Ele é a Suprema Personalidade de Deus, pois estes são sintomas de personalidade. Como realizador ablativo desta manifestação cósmica, todo pensamento, sentimento e vontade vêm dEle. Sem pensar, sentir e querer, não há possibilidade de fazerem-se arranjos e projetos na manifestação cósmica. Ele também é causativo, porque é o projetista original do cosmos. E é locativo, ou seja, tudo repousa em Sua energia. Todos estes atributos são claramente atributos de personalidade.
No Chāndogya Upaniṣad (5.2.3), afirma-se que, ao desejar se tornar muitos, a Suprema Personalidade de Deus volta-Se para a natureza material. Como também se confirma no Aitareya Upaniṣad (1.1), sa aikṣata: “O Senhor lançou Seu olhar à natureza material”. A manifestação cósmica não existia antes de Seu olhar; portanto, Seu olhar está destituído de contaminação material. Seu poder de visão existia antes da criação material; logo, Seu corpo não é material. Seu pensar, sentir e agir são todos transcendentais. Em outras palavras, deve-se concluir que a mente com a qual o Senhor pensa, sente e deseja é transcendental, e os olhos com que vislumbra a natureza material também são transcendentais. Visto que Seu corpo transcendental e todos os Seus sentidos existiam antes da criação material, o Senhor também possui mente, pensamentos, sentimentos e desejos transcendentais. Esta é a conclusão de toda a literatura védica.
A palavra Brahman encontra-se em toda parte dos Upaniṣads. No Śrīmad-Bhāgavatam, Brahman, Paramātmā e Bhagavān, a Suprema Personalidade de Deus, são todos considerados ao mesmo tempo como a Verdade Absoluta. As compreensões de Brahman e do Paramātmā são consideradas etapas rumo a compreensão última, que é a compreensão da Suprema Personalidade de Deus. Esta é a verdadeira conclusão de todos os textos védicos.
Dessa maneira, segundo as evidências fornecidas por várias escrituras védicas, o Supremo Senhor Kṛṣṇa é aceito como a meta última da compreensão de Brahman. A Bhagavad-gītā (7.7) também confirma que não há nada superior a Kṛṣṇa. Madhvācārya, um dos maiores ācāryas na sucessão discipular de Brahmā, declarou em sua explicação ao Vedānta-sūtra que tudo pode ser visto através da autoridade das escrituras. Ele citou um verso do Skanda-Purāṇa no qual se afirma que o Ṛg Veda, Sāma Veda, Atharva Veda, Mahābhārata, Pañcarātra e o Rāmāyaṇa original são de fato evidência védica. Os Purāṇas, que são aceitos pelos vaiṣṇavas, também são considerados evidência védica. Na verdade, tudo o que se encontra nesta literatura deve, sem contestação, ser aceito como a conclusão última, e todos estes textos proclamam que Kṛṣṇa é a Suprema Personalidade de Deus.