Capítulo Vinte e Seis
A Conversão do Bhaṭṭācārya
Para os filósofos impersonalistas e niilistas, o outro mundo é um lugar de eternidade e bem-aventurança inertes. Os filósofos niilistas querem estabelecer que em última instância tudo é sem sentido, e os impersonalistas querem estabelecer que no outro mundo existe apenas conhecimento desprovido de atividades. Deste modo, salvacionistas menos inteligentes tentam transportar o conhecimento imperfeito à esfera das atividades espirituais perfeitas. Porque experimentam que as atividades materiais são miseráveis, os impersonalistas querem estabelecer uma vida espiritual inerte. Eles não compreendem as atividades do serviço devocional. Na verdade, atividades espirituais em serviço devocional são ininteligíveis aos filósofos niilistas e impersonalistas. Os filósofos vaiṣṇavas sabem perfeitamente bem que a Verdade Absoluta, a Suprema Personalidade de Deus, nunca pode ser impessoal ou vazio, pois Ele possui inumeráveis potências. Através de Suas inumeráveis energias, Ele pode Se apresentar sob múltiplas formas e ainda assim permanecer a Absoluta Suprema Personalidade de Deus. Portanto, mesmo expandindo-Se sob múltiplas formas e difundindo Suas inumeráveis energias, Ele pode manter Sua posição transcendental.
Deste modo, o Senhor Caitanya expôs muitos defeitos da filosofia māyāvādī, e, embora Bhaṭṭācārya tentasse basear-se na lógica e malabarismo verbal, o Senhor Caitanya foi capaz de defender-Se de seus ataques. O Senhor Caitanya estabeleceu que a literatura védica tem três objetivos: compreender nosso relacionamento com a Absoluta Suprema Personalidade de Deus, agir de acordo com esta compreensão e alcançar a suprema perfeição da vida – amor a Deus. Qualquer um que tente provar que os textos védicos têm outra meta, decerto é vítima de sua própria imaginação.
O Senhor, em seguida, citou alguns versos dos Purāṇas, mediante os quais provou que Śaṅkarācārya foi incumbido de ensinar essa filosofia por ordem da Suprema Personalidade de Deus. Ele citou um verso do Padma Purāṇa (62.31) no qual se afirma que o Senhor ordenou a Mahādeva, o Senhor Śiva, que apresentasse algumas interpretações imaginárias dos textos védicos com o objetivo de desviar as pessoas do verdadeiro propósito dos Vedas. “Dessa maneira, tentarás torná-los ateístas”, disse o Senhor. “Depois disto a população aumentará.” Também se afirma no Padma Purāṇa (25.9) que o Senhor Śiva explicou a sua esposa, Pārvatī, que, na era de Kali, ele viria sob a forma de um brāhmaṇa para pregar uma interpretação imperfeita dos Vedas, conhecida como māyāvādīsmo, que de fato não passa de uma segunda edição da ateística filosofia budista.
Bhaṭṭācārya foi subjugado pelas explicações do Senhor Caitanya. Após ouvir o Senhor Caitanya explicar a filosofia māyāvādī, ele não conseguiu falar. Permaneceu em silêncio por algum tempo; então, o Senhor Caitanya perguntou-lhe: “Meu querido Bhaṭṭācārya, não fiques confuso com esta explicação. Por favor, aprende de Mim que o serviço devocional ao Senhor Supremo é a suprema plataforma perfectiva do conhecimento humano. De fato, ele é tão atrativo, que mesmo aqueles que já são liberados tornam-se devotos, mediante a inconcebível potência da Suprema Personalidade de Deus”. Existem muitas de tais conversões na literatura védica. Por exemplo, no Śrīmad-Bhāgavatam (1.7.10), o famoso verso ātmārāma destina-se sobretudo àqueles que estão atraídos à autorrealização e liberaram-se de todos os apegos materiais. Semelhantes impersonalistas liberados são atraídos ao serviço devocional em virtude das diversas atividades do Senhor Kṛṣṇa. Estas são as qualidades transcendentais da Suprema Personalidade de Deus.
Na realidade, a entidade viva em consciência pura compreende que é serva eterna do Senhor Supremo. Sob o encanto da ilusão, a pessoa aceita os corpos sutil e grosseiro como sendo o eu; semelhante concepção é a base da doutrina da transferência. Na realidade, a parte integrante do Supremo não está eternamente sujeita à vida corpórea sutil e grosseira. As coberturas sutil e grosseira não constam da forma eterna da entidade viva; elas podem ser mudadas. Em outras palavras, a entidade viva, que originalmente é espírito puro, pode ser condicionada pelos corpos sutil e grosseiro e, libertando-se destes condicionamentos, volta a alcançar sua posição de espírito puro. Os filósofos māyāvādīs aproveitam a doutrina da transferência para dizer que a entidade viva está sob uma impressão equivocada ao considerar-se parte integrante do Supremo. Eles sustentam que a entidade viva é o próprio Supremo. Não se pode defender semelhante doutrina.
Bhaṭṭācārya pediu, então, que o Senhor Caitanya explicasse o famoso verso ātmārāma, pois desejava ouvi-lo do próprio Senhor. O Senhor Caitanya respondeu que primeiro Bhaṭṭācārya deveria explicar o verso de acordo com sua própria compreensão, e então, o Senhor Caitanya o explicaria. Bhaṭṭācārya, pois, começou a explicar o śloka ātmārāma, usando seus métodos de lógica e gramática. Assim, explicou o śloka ātmārāma de nove maneiras diferentes. O Senhor apreciou sua erudição acadêmica na explicação do verso e disse: “Meu querido Bhaṭṭācārya, sei que és o representante do acadêmico erudito Bṛhaspati, e podes explicar qualquer seção dos śāstras muito bem. Ainda assim, tua explicação é mais ou menos baseada apenas na educação acadêmica. Além desta erudita abordagem acadêmica, existe outra explicação”.
Então, a pedido de Bhaṭṭācārya, o Senhor Caitanya explicou o śloka ātmārāma. As palavras do verso foram analisadas da seguinte maneira: (1) ātmārāmāḥ, (2) ca, (3) munayaḥ, (4) nirgranthāḥ, (5) api, (6) urukrame, (7) kurvanti, (8) ahaitukīm, (9) bhaktim, (10) itthambhūta-guṇaḥ, (11) hariḥ. Este verso já foi explicado nos ensinamentos do Senhor a Sanātana Gosvāmī. O Senhor Caitanya não mencionou as nove diferentes explicações de Bhaṭṭācārya, mas explicou o verso analisando estas onze palavras. Deste modo, Ele expôs sessenta e uma diferentes explicações do verso. Em resumo, Ele disse que a Suprema Personalidade de Deus é plena de inumeráveis potências; ninguém pode estimar quantas qualidades transcendentais Ele possui. Suas qualidades são sempre inconcebíveis, e todos os processos de autorrealização indagam sobre as potências, energias e qualidades da Suprema Personalidade de Deus. Todavia, os devotos do Senhor imediatamente aceitam Sua posição inconcebível. O Senhor Caitanya explicou que mesmo grandes almas liberadas, como os Kumāras e Śukadeva Gosvāmī, também foram atraídos às qualidades transcendentais do Senhor Supremo.
Bhaṭṭācārya apreciou as explicações do Senhor Caitanya, e concluiu que Ele não era outro senão o próprio Kṛṣṇa. Bhaṭṭācārya começou, pois, a reprovar sua própria posição, contando que, primeiro, havia considerado que o Senhor Caitanya era um ser humano comum e, desta forma, cometera uma ofensa. Ele, censurando-se, então, prostrou-se aos pés de lótus do Senhor Caitanya e pediu que o Senhor lhe concedesse Sua misericórdia imotivada. O Senhor Caitanya apreciou a humildade deste grande acadêmico e, por isso, exibiu Sua própria forma, primeiro com quatro braços, e então com seis (ṣaḍbhuja). Em seguida, Sārvabhauma Bhaṭṭācārya prostrou-se repetidas vezes aos pés de lótus do Senhor e compôs várias orações a Ele. Sem dúvida nenhuma, ele era um grande acadêmico, e após ter recebido a misericórdia imotivada do Senhor, foi dotado com o poder de explicar as atividades do Senhor de diferentes maneiras. Na verdade, ele foi capaz de expressar o método de cantar Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare Hare/ Hare Rāma, Hare Rāma, Rāma Rāma, Hare Hare.
Declara-se que Sārvabhauma Bhaṭṭācārya compôs cem versos em apreciação das atividades do Senhor, e estes versos eram tão esplêndidos, que não podiam ser superados nem mesmo por Bṛhaspati, o ilustríssimo acadêmico erudito dos planetas celestiais. O Senhor ficou muito satisfeito em ouvir estes cem versos, e abraçou Bhaṭṭācārya. Este foi arrebatado pelo êxtase do contato com o Senhor e praticamente perdeu a consciência. Ora chorava, tremia, arrepiava-se e transpirava, e ora dançava, cantava e prostrava-se aos pés de lótus do Senhor Caitanya. Gopīnātha Ācārya, o cunhado de Bhaṭṭācārya e os devotos do Senhor ficaram surpresos ao ver Bhaṭṭācārya tornar-se tão grandioso devoto.
Gopīnātha Ācārya, a seguir, agradeceu ao Senhor: “Apenas por Tua graça, o empedernido Bhaṭṭācārya foi convertido em um grandioso devoto”. O Senhor Caitanya respondeu que era pelo favor do devoto, que um homem rígido como pedra podia ser transformado num devoto meigo como uma flor. De fato, Gopīnātha Ācārya havia desejado sinceramente que seu cunhado, Bhaṭṭācārya, se tornasse um devoto do Senhor. Ele desejara sinceramente que o Senhor favorecesse Bhaṭṭācārya e estava alegre de ver que seu desejo havia sido realizado. Em outras palavras, o devoto do Senhor é mais misericordioso que o próprio Senhor. Quando o devoto deseja mostrar sua misericórdia a alguém, o Senhor age, e por Sua graça, esta pessoa se torna devoto.
O Senhor Caitanya tranquilizou Bhaṭṭācārya e pediu-lhe que fosse para casa. Bhaṭṭācārya louvou outra vez o Senhor e disse: “Desceste pessoalmente para salvar todas as almas caídas deste mundo. Semelhante empreendimento não é muito difícil para Ti, porém, tornaste um homem de coração de pedra como eu em devoto, e isto, de fato, é muito maravilhoso. Embora eu fosse muito perito em argumentos lógicos e explanações gramaticais dos Vedas, também era tão duro quanto um pedaço de ferro. Mas Tua influência e temperatura foram tão grandes que puderam derreter este pedaço de ferro que sou”.
O Senhor Caitanya, em seguida, retornou a Sua residência, e Bhaṭṭācārya enviou Gopīnātha Ācārya a Ele com diversas classes de prasāda do templo de Jagannātha. No dia seguinte, o Senhor foi bem cedo ao templo de Jagannātha participar do maṅgala ārati. Os sacerdotes do templo trouxeram-Lhe uma guirlanda das Deidades e também Lhe ofereceram várias classes de prasāda. O Senhor ficou muitíssimo satisfeito em receber tudo isto, e, de imediato, foi à casa de Bhaṭṭācārya, levando a prasāda e as flores para presenteá-lo. Embora fosse de madrugada, Bhaṭṭācārya compreendeu que o Senhor viera a sua casa e batia à porta. Sem demora, ele levantou-se da cama e disse: “Kṛṣṇa! Kṛṣṇa!” O Senhor Caitanya pôde ouvir isto. Ao abrir a porta, Bhaṭṭācārya viu o Senhor em pé, e ficou tão satisfeito em vê-lO tão cedo que tentou recebê-lO com todo o cuidado. Ofereceu-Lhe um bom assento, e ambos se sentaram. O Senhor Caitanya ofereceu-lhe a prasāda recebida no templo de Jagannātha, e Bhaṭṭācārya ficou muito alegre de receber esta prasāda das mãos do próprio Senhor Caitanya. Mesmo sem ter tomado banho, executado seus deveres matutinos ou escovado os dentes, ele de imediato, passou a tomar a prasāda. Deste modo, livrou-se de todas as contaminações e apegos materiais.
Ao começar a tomar a prasāda, ele citou um verso do Padma Purāṇa. O Padma Purāṇa afirma que ao se receber prasāda, a pessoa deve comê-la imediatamente, mesmo se a prasāda estiver muito seca ou velha e mesmo se for trazida de um lugar distante ou mesmo se a pessoa não tiver completado seus deveres diários. Já que os śāstras prescrevem que a prasāda deve ser tomada imediatamente, não havendo restrição de tempo ou lugar; deve-se levar a cabo a ordem da Suprema Personalidade de Deus. Existem restrições que devem ser seguidas antes de se aceitarem alimentos de diversas classes de pessoas, porém, estas não existem no que diz respeito a prasāda, mesmo que seja aceita de qualquer espécie de pessoa. Prasāda é sempre transcendental e pode ser aceita sob qualquer condição.
O Senhor Caitanya ficou muito satisfeito ao ver que Bhaṭṭācārya, estrito seguidor das regras e regulações, aceitara prasāda sem obedecer a nenhuma delas. Em virtude de Sua satisfação, o Senhor Caitanya abraçou Bhaṭṭācārya, e ambos começaram a dançar em êxtase transcendental. Nesse êxtase, o Senhor Caitanya exclamou: “Minha missão em Jagannātha Purī agora está cumprida! Converti alguém como Sārvabhauma Bhaṭṭācārya. Agora poderei alcançar Vaikuṇṭha sem falta”.
A meta missionária do devoto é simplesmente converter a pessoa em devoto puro. Dessa maneira, sua admissão no reino espiritual é garantida. O Senhor estava tão satisfeito com Bhaṭṭācārya que o abençoou repetidas vezes. “Querido Bhaṭṭācārya, agora és um devoto completamente puro do Senhor Kṛṣṇa, e Kṛṣṇa está muitíssimo satisfeito contigo. A partir de hoje, estás livre de toda contaminação deste corpo físico e do enredamento da energia material. Estás apto para voltar ao lar, voltar ao Supremo.” O Senhor, então, citou um verso do Śrīmad-Bhāgavatam (2.7.42):
yeṣāṁ sa eṣa bhagavān dayayed anantaḥ
sarvātmanāśrita-pado yadi nirvyalīkam
te dustarām atitaranti ca deva-māyāṁ
naiṣāṁ mamāham iti dhīḥ śva-śṛgāla-bhakṣye
“Quem quer que se refugie sem reservas aos pés de lótus do Senhor Supremo, será favorecido por Ele, que é ilimitado e misericordioso. Semelhante pessoa também receberá permissão de cruzar o oceano da ignorância. Todavia, quem pensa que o eu é este corpo material, não pode receber a misericórdia imotivada da Suprema Personalidade de Deus.”
Depois deste incidente, o Senhor Caitanya retornou a Sua residência, e Bhaṭṭācārya tornou-se um devoto puro e impecável. Já que antes fora um eminente acadêmico erudito, Bhaṭṭācārya só pôde ser convertido em virtude da imotivada misericórdia de Caitanya Mahāprabhu. A partir deste dia ele nunca mais explicou qualquer texto védico sem fazer referência ao serviço devocional. Gopīnātha Ācārya, seu cunhado, ficou tão satisfeito de ver a condição de Bhaṭṭācārya, que começou a dançar em êxtase e vibrar o som transcendental: Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare Hare/ Hare Rāma Hare Rāma, Rāma Rāma Hare Hare.
Na madrugada do dia seguinte, após visitar o templo de Jagannātha, Bhaṭṭācārya visitou o Senhor Caitanya e ofereceu suas reverências prostrando-se diante do Senhor. Então, explicou seu indesejável comportamento anterior. Quando pediu ao Senhor que falasse algo sobre serviço devocional, o Senhor explicou claramente os versos do Bṛhan-nāradīya Purāṇa, nos quais se afirma: harer nāma harer nāma. Ao ouvir esta explicação, Bhaṭṭācārya ficou muitíssimo extático. Vendo o estado de seu cunhado, Gopīnātha Ācārya disse: “Meu caro Bhaṭṭācārya, outrora disse que, quando alguém é favorecido pelo Senhor Supremo, ele entende as técnicas do serviço devocional. Hoje estou vendo a realização disto”.
Bhaṭṭācārya ofereceu-lhe o devido respeito e respondeu: “Meu caro Gopīnātha Ācārya, graças a tua misericórdia pude receber a misericórdia do Senhor Supremo”. A misericórdia da Suprema Personalidade de Deus pode ser obtida através da misericórdia do devoto puro. O Senhor Caitanya concedeu misericórdia a Bhaṭṭācārya por causa do esforço de Gopīnātha Ācārya. “És um eminente devoto do Senhor”, continuou Bhaṭṭācārya, “e eu estava simplesmente cego devido a minha educação acadêmica. Obtive a misericórdia do Senhor apenas por teu intermédio.” O próprio Senhor Caitanya apreciou muito ouvir Bhaṭṭācārya dizer que alguém pode obter a misericórdia do Senhor por intermédio do devoto. Ele apreciou suas palavras e abraçou Bhaṭṭācārya, confirmando sua declaração.
O Senhor, pois, pediu que Bhaṭṭācārya fosse outra vez ao templo de Jagannātha, e Bhaṭṭācārya foi para o templo acompanhado de Jagadānanda e Dāmodara, dois dos principais associados do Senhor Caitanya. Após ver o templo de Jagannātha, Bhaṭṭācārya voltou para casa e trouxe consigo muita prasāda comprada no templo. Ele mandou toda aquela prasāda ao Senhor Caitanya por seu servo brāhmaṇa.
Ele também enviou dois versos escritos em folhas de palmeira e pediu a Jagadānanda o favor de entregá-los. Assim, o Senhor Caitanya recebeu a prasāda e os versos escritos nas folhas de palmeira. Todavia, antes de chegar ao Senhor, Mukunda Datta, que também fora incumbido de entregar os versos, copiara-os em seu livro. Ao ler os versos na folha de palmeira, o Senhor Caitanya rasgou-os, pois jamais gostava de ser louvado por quem quer que fosse. Os versos só existem porque foram copiados por Mukunda Datta.
Esses versos louvavam o Senhor, a Original Suprema Personalidade de Deus que descendera como o Senhor Caitanya para pregar desapego, conhecimento transcendental e serviço devocional à massa da população. O Senhor Caitanya foi glorificado como a original Personalidade de Deus e comparado a um oceano de misericórdia. “Que eu me renda ao Senhor Caitanya Mahāprabhu”, diziam os versos. “O Senhor, vendo a ausência de serviço devocional, desceu pessoalmente sob a forma de Caitanya Mahāprabhu para pregar o serviço devocional. Rendamo-nos todos a Seus pés de lótus e aprendamos dEle o que é verdadeiro serviço devocional.” Os devotos do Senhor na sucessão discipular consideram que estes versos são as joias mais preciosas, e, em virtude destes famosos versos, Sārvabhauma Bhaṭṭācārya ficou conhecido como o mais elevado dos devotos.
Deste modo, Sārvabhauma Bhaṭṭācārya foi convertido num dos mais importantes devotos do Senhor, e não tinha nenhum outro interesse senão servir o Senhor. Ele pensava no Senhor Caitanya constantemente, e a meditação e o canto tornaram-se os principais propósitos de sua vida.
Certa vez, Sārvabhauma Bhaṭṭācārya veio diante do Senhor, ofereceu seus respeitos e começou a ler um verso do Śrīmad-Bhāgavatam (10.14.8). Este verso trata da oração de Brahmā ao Senhor. O verso é o seguinte:
tat te ’nukampāṁ su-samīkṣamāṇo
bhuñjāna evātma-kṛtaṁ vipākam
hṛd-vāg-vapurbhir vidadhan namas te
jīveta yo bhakti-pade sa dāya-bhāk
“A pessoa que devotou sua mente, corpo e fala a serviço do Senhor, mesmo que esteja em meio a uma vida miserável, repleta de ações condenáveis cometidas no passado, tem garantida a liberação.” Bhaṭṭācārya trocou a palavra mukti (liberação) por bhakti (serviço devocional).
“Por que mudaste o verso original?”, perguntou o Senhor a Bhaṭṭācārya. “A palavra é mukti e a trocaste por bhakti.” Bhaṭṭācārya respondeu que mukti não é tão valioso quanto bhakti e que mukti, na verdade, é uma espécie de punição para o devoto puro. Por essa razão, ele trocou a palavra mukti por bhakti. Bhaṭṭācārya passou a explicar sua compreensão a respeito de bhakti. “Qualquer um que não aceite a transcendental Personalidade de Deus e Sua forma transcendental, não pode conhecer a Verdade Absoluta”, disse ele. Quem não compreende a natureza transcendental do corpo de Kṛṣṇa, torna-se inimigo de Kṛṣṇa e desafia-O ou luta com Ele. Esses inimigos, por fim, fundem-se na refulgência Brahman do Senhor. Os devotos do Senhor jamais desejam alcançar semelhante mukti ou liberação na refulgência Brahman. Existem cinco classes de liberação: (1) alcançar o planeta onde o Senhor reside, (2) associar-se com o Senhor, (3) obter um corpo transcendental como o do Senhor, (4) alcançar opulência igual à do Senhor e (5) fundir-se na existência do Senhor. O devoto não tem interesse específico em nenhuma destas classes de liberação. Ele fica satisfeito com o simples fato de estar ocupado no transcendental serviço amoroso ao Senhor. O devoto tem verdadeira aversão a fundir-se na existência do Senhor e perder assim sua identidade individual. De fato, o devoto considera infernal tornar-se uno com o Senhor. Ele só aceitará uma das quatro classes de liberação se houver oportunidade de ele se ocupar no serviço ao Senhor. Dentre as duas possibilidades de fundir-se na transcendência – a saber, tornar-se uno com a refulgência Brahman impessoal e tornar-se uno com a Personalidade de Deus – a segunda é mais abominável ao devoto. O devoto não tem nenhuma outra aspiração, senão ocupar-se no transcendental serviço amoroso ao Senhor.
Ao ouvir isto, o Senhor Caitanya informou a Bhaṭṭācārya que existe outro significado para a palavra mukti. A palavra mukti-pade diretamente indica a Personalidade de Deus. A Personalidade de Deus tem inumeráveis almas liberadas ocupadas em Seu transcendental serviço amoroso, e Ele é o refúgio último da liberação. Em qualquer caso, Kṛṣṇa é o abrigo derradeiro.
“Apesar desta explicação”, respondeu Sārvabhauma Bhaṭṭācārya, “prefiro bhakti a mukti. Embora, de acordo conTigo, existam dois significados da palavra mukti, ainda assim, porque esta palavra é ambígua, prefiro bhakti a mukti, pois, ao ouvir a palavra mukti, a pessoa logo pensa em tornar-se una com o Supremo. Por isso, até mesmo odeio pronunciar a palavra mukti. Contudo, fico muito entusiasmado por falar de bhakti.”
O Senhor Caitanya riu muito disto e abraçou Bhaṭṭācārya com grande amor.
Dessa maneira, Bhaṭṭācārya, que sentira prazer em explicar a filosofia māyāvādī, tornou-se um devoto tão resoluto que detestava até mesmo pronunciar a palavra mukti. Isto só foi possível pela misericórdia imotivada do Senhor Śrī Caitanya. O Senhor é como a pedra filosofal, pois, por Sua graça, Ele pode transformar ferro em ouro. Depois desta conversão, todos perceberam uma grande mudança em Bhaṭṭācārya, e concluíram que esta mudança ocorrera apenas devido ao inconcebível poder do Senhor Caitanya. Assim, aceitaram que o Senhor Caitanya não era outro senão o próprio Senhor Kṛṣṇa.