Capítulo Vinte e Sete
O Senhor Caitanya e Rāmānanda Rāya
O autor do Caitanya-caritāmṛta descreveu que o Senhor Caitanya Mahāprabhu é como o oceano do conhecimento transcendental, e que Śrī Rāmānanda Rāya é como as nuvens produzidas deste oceano. Rāmānanda Rāya era um proficientíssimo estudioso do serviço devocional, e, pela graça do Senhor Caitanya, reuniu todas as conclusões transcendentais, assim como as nuvens recolhem água do oceano. As nuvens surgem do oceano, distribuem água por todo o mundo e retornam ao oceano, de igual modo, pela graça do Senhor Caitanya, Rāmānanda Rāya recebeu seu elevado conhecimento sobre serviço devocional e, após afastar-se de seu emprego, voltou a visitar o Senhor Caitanya em Purī.
Ao visitar o Sul da Índia, o Senhor Caitanya primeiro foi ao grande templo conhecido como Jiyaḍa-nṛsiṁha-kṣetra. Este templo fica num lugar chamado Siṁhācalam, a oito quilômetros da estação de trem de Viśākhāpattana. O templo está situado no topo de uma colina. Há muitos templos nessa área, mas o templo de Jiyaḍa-nṛsiṁha-kṣetra é o maior de todos. Este templo é repleto de belas esculturas, de interesse para muitos estudiosos, e devido a sua popularidade é um templo muito rico. Uma inscrição no templo afirma que, outrora, o rei de Vijayanagara havia decorado o templo com ouro, e chegara a cobrir o corpo da Deidade com ouro. Para facilitar a frequência, há no templo aposentos grátis para os visitantes. O templo é dirigido pelos sacerdotes da seita de Rāmānujācārya.
Quando visitou esse templo, o Senhor Caitanya louvou a Deidade e citou um verso do comentário de Śrīdhara Svāmī sobre o Śrīmad-Bhāgavatam (7.9.1):
ugro ’py anugra evāyaṁ
sva-bhaktānāṁ nṛ-keśarī
keśarīva sva-potānām
anyeṣām ugra-vikramaḥ
“Embora seja muito severo com os demônios e não-devotos, o Senhor Nṛsiṁha é muito bondoso para Seus devotos submissos como Prahlāda.” O Senhor Nṛsiṁha apareceu como a encarnação de Kṛṣṇa metade-homem, metade-leão, quando Prahlāda, um devoto do Senhor, foi hostilizado por seu pai demoníaco, Hiraṇyakaśipu. Assim como o leão é muito feroz com os outros animais, e muito bondoso e dócil com seus filhotes, da mesma maneira, o Senhor Nṛsiṁha mostrou-Se feroz a Hiraṇyakaśipu e muito bondoso a Seu devoto Prahlāda.
Após visitar o templo de Jiyaḍa-nṛsiṁha, o Senhor prosseguiu rumo ao Sul da Índia e, enfim, chegou às margens do Godāvarī. Estando às margens deste rio, o Senhor recordou-Se do rio Yamunā em Vṛndāvana, e considerou que as árvores de suas margens era a floresta de Vṛndāvana. Deste modo, Ele ficou em êxtase. Depois de tomar banho à beira do Godāvarī, o Senhor sentou-Se ali perto e começou a cantar Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare Hare/ Hare Rāma, Hare Rāma, Rāma Rāma, Hare Hare. Enquanto estava sentado cantando, o Senhor viu que o governador da província, Śrī Rāmānanda Rāya, chegava às margens do rio acompanhado por seus associados, inclusive muitos brāhmaṇas. Anteriormente, Sārvabhauma Bhaṭṭācārya havia solicitado ao Senhor que visitasse, em Kabur, um grande devoto, Rāmānanda Rāya. O Senhor pôde entender que o homem que se aproximava do rio era Rāmānanda Rāya, e desejou vê-lo imediatamente. Todavia, porque estava na ordem de vida renunciada, Ele Se absteve de ir ver uma personagem política. Sendo um grande devoto, Rāmānanda Rāya sentiu-se atraído pelas características do Senhor Caitanya, que apareceu como um sannyāsī, e foi ver pessoalmente o Senhor. Ao aproximar-se de Caitanya Mahāprabhu, Rāmānanda Rāya prostrou-se e ofereceu-Lhe reverências e respeitos. O Senhor Caitanya recebeu-o vibrando Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare Hare/ Hare Rāma, Hare Rāma, Rāma Rāma, Hare Hare.
Quando Rāmānanda Rāya apresentou suas credenciais, o Senhor Caitanya o abraçou, e ambos ficaram dominados pelo êxtase. Os brāhmaṇas que acompanhavam Rāmānanda Rāya ficaram surpresos ao vê-los abraçando-se em êxtase transcendental. Os brāhmaṇas eram todos resolutos seguidores dos rituais, e não podiam entender o significado de tais sintomas devocionais. Ao contrário, ficaram surpresos de ver tão eminente sannyāsī tocando um śūdra, e também surpresos de ver Rāmānanda Rāya, que era um ilustre governador e praticamente o rei daquela província, chorando apenas por tocar um sannyāsī. O Senhor Caitanya compreendeu o pensamento dos brāhmaṇas e, considerando desfavorável a situação, acalmou-Se.
Depois disto, o Senhor Caitanya e Rāmānanda Rāya sentaram-se juntos. “Sārvabhauma Bhaṭṭācārya falou muito bem de ti”, o Senhor Caitanya o informou. “Por isso, vim ver-te.”
“Sārvabhauma Bhaṭṭācārya me considera como um de seus devotos”, respondeu Rāmānanda Rāya. “Portanto, bondosamente recomendou que me visitasses.”
Rāmānanda Rāya apreciou muitíssimo que o Senhor tocasse num homem abastado. Um rei, um governante ou qualquer político estão sempre absortos em negócios políticos e dinheiro; por isso, os sannyāsīs evitam tais pessoas. O Senhor Caitanya, contudo, sabia que Rāmānanda Rāya era um grande devoto, e portanto, não hesitou em tocá-lo e abraçá-lo. Rāmānanda Rāya ficou surpreso com o comportamento do Senhor Caitanya, e citou um verso do Śrīmad-Bhāgavatam (10.8.4): “As grandes personalidades e sábios aparecem nas casas das pessoas mundanas apenas para mostrar-lhes misericórdia”.
O tratamento especial que o Senhor Caitanya deu a Rāmānanda Rāya indica que, embora não tivesse nascido numa família bramânica, Rāmānanda Rāya era muitíssimo proficiente em conhecimento e atividade espirituais. Sendo assim, era mais respeitável que alguém que só por acaso nasceu numa família bramânica. Embora Rāmānanda, devido a sua atitude humilde e gentil, se considerasse nascido de uma baixa família śūdra, o Senhor Caitanya considerava-o situado no mais elevado nível transcendental da devoção. Os devotos nunca proclamam que são grandiosos, mas o Senhor fica muito ansioso de proclamar as glórias de Seus devotos. Depois de se encontrarem pela primeira vez, naquela manhã, às margens do Godāvarī, Rāmānanda Rāya e o Senhor Caitanya se separaram, porém, combinaram que, ao anoitecer, Rāmānanda Rāya iria ver o Senhor.
Naquele fim de tarde, depois que o Senhor tomara Seu banho e sentara-Se, Rāmānanda Rāya veio vê-lO, acompanhado de um servo. Ofereceu seus respeitos e sentou-se diante do Senhor. Antes mesmo que Rāmānanda Rāya pudesse fazer alguma pergunta sobre o progresso no conhecimento espiritual, o próprio Senhor disse: “Por favor, cita alguns versos das escrituras sobre a meta última da vida humana”.
Śrī Rāmānanda Rāya logo respondeu: “Quem é sincero em seu dever ocupacional, pouco a pouco desenvolve consciência de Deus”. Também citou um verso do Viṣṇu Purāṇa (3.8.9) onde se afirma que o Senhor Supremo é adorado mediante a execução do dever ocupacional da pessoa, e que não há alternativa para satisfazê-lO. O significado é que a vida humana se destina a entender nosso relacionamento com o Senhor Supremo, e, agindo deste modo, qualquer ser humano pode encaixar-se no serviço ao Senhor através do desempenho de seus deveres prescritos. Com este propósito, divide-se a sociedade humana em quatro classes: os intelectuais (brāhmaṇas), os administradores (kṣatriyas), os mercadores (vaiśyas) e os trabalhadores (śūdras). Para cada classe existem regras e regulações prescritas, bem como funções ocupacionais. Os deveres prescritos e as qualidades das quatro classes são descritos na Bhagavad-gītā (18.41-44). Uma sociedade civilizada e organizada deve seguir as regras e regulações prescritas para cada classe. Ao mesmo tempo, para o avanço espiritual, também se devem seguir os quatro āśramas: vida estudantil (brahmacarya), vida de chefe de família (gṛhastha), vida de retirado (vānaprastha) e a vida renunciada (sannyāsa).
Rāmānanda Rāya afirmou que aqueles que seguem à risca as regras e regulações destas oito divisões sociais realmente podem satisfazer ao Senhor Supremo, e quem não as segue, com certeza desperdiça sua forma de vida humana, e desliza rumo ao inferno. Pode cumprir pacificamente a meta da vida humana quem simplesmente segue as regras e regulações aplicáveis a si mesmo. O caráter de determinada pessoa desenvolve-se por ela seguir os princípios reguladores de acordo com seu nascimento, associação e educação. As divisões da sociedade são planejadas de tal forma que pessoas com diferentes índoles possam se regular através delas, a fim de estabelecer uma administração pacífica da sociedade e conduzi-la ao avanço espiritual. As classes sociais podem ainda ser caracterizadas da seguinte maneira: (1) Aquele cuja meta é entender o Senhor Supremo, a Personalidade de Deus, e devotar-se ao estudo dos Vedas e textos semelhantes, chama-se brāhmaṇa. (2) Quem gosta de exibir força e envolver-se na administração governamental chama-se kṣatriya. (3) Quem se ocupa em agricultura, criação de gado e desempenho de um ofício ou negócios, chama-se vaiśya. (4) Quem não possui algum conhecimento específico e fica satisfeito em servir as outras três classes chama-se śūdra. Se a pessoa executa fielmente seus deveres prescritos, decerto avançará rumo à perfeição. Logo, a vida regulada é a fonte de perfeição para todos. Alcança-se a perfeição quando a vida regulada culmina em serviço devocional ao Senhor. De outro modo, estas regulações são mero e inútil desperdício de tempo.
Depois de ouvir Rāmānanda Rāya explicar a apropriada execução de uma vida regulada, o Senhor Caitanya disse que tais regulações eram apenas externas. Indiretamente, Ele pediu a Rāmānanda Rāya que expusesse algo superior a tais exibições externas. A execução formal de rituais e religião é inútil, a menos que culmine na perfeição do serviço devocional. O Senhor Viṣṇu não Se satisfaz com a mera adesão ritualística às instruções védicas; Ele fica deveras satisfeito quando alguém alcança a plataforma de serviço devocional.
Segundo o verso citado por Rāmānanda Rāya, alguém pode elevar-se até o ponto de serviço devocional mediante a execução ritualística. Na Bhagavad-gītā, Śrī Kṛṣṇa, que apareceu para salvar todas as classes de pessoas, afirma que, adorando o Senhor Supremo, de quem tudo emana, através de seu dever ocupacional, os seres humanos podem alcançar o mais elevado nível de perfeição da vida.
sve sve karmaṇy abhirataḥ
saṁsiddhiṁ labhate naraḥ
sva-karma-nirataḥ siddhiṁ
yathā vindati tac chṛṇu
yataḥ pravṛttir bhūtānāṁ
yena sarvam idaṁ tatam
sva-karmaṇā tam abhyarcya
siddhiṁ vindati mānavaḥ
“Seguindo suas qualidades de trabalho, todo homem pode se tornar perfeito. Agora, por favor, escuta como isto pode ser feito. Mediante a adoração do Senhor, que é a fonte de todos os seres e é todo-penetrante, o homem pode, no cumprimento de seu próprio dever, alcançar a perfeição” (Bhagavad-gītā 18.45-46). Este processo de perfeição é seguido por grandes devotos como Bodhāyana, Ṭaṅka, Dramiḍa, Guhadeva, Kapardi e Bhāruci. Todas estas ilustres personalidades seguiram este caminho específico de perfeição. Os preceitos védicos também apontam para esta direção. Rāmānanda Rāya queria apresentar estes fatos diante do Senhor, porém, aparentemente a execução de deveres ritualísticos não era suficiente, pois o Senhor Caitanya disse que isto era externo. O Senhor Caitanya salientou que se um homem tem uma concepção materialista da vida, não pode alcançar a perfeição suprema mesmo cumprindo com todas as regulações ritualísticas.