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Capítulo Vinte e Oito

Relacionamento com o Supremo

O Senhor Caitanya rejeitou a afirmação de Rāmānanda Rāya fundamentada no Viṣṇu Purāṇa, pois Ele desejava repudiar uma classe de filósofos conhecidos como karma-mīmāṁsa. Os seguidores do karma-mīmāṁsa aceitam que Deus está sujeito ao trabalho da pessoa. A conclusão deles é que se a pessoa trabalha bem, o Senhor é obrigado a dar bons resultados. Logo, pode-se deduzir dessa afirmação do Viṣṇu Purāṇa que Viṣṇu, o Senhor Supremo, não tem independência, senão que é obrigado a conceder um determinado resultado ao trabalhador. Tal meta dependente torna-se sujeita ao adorador, que aceita que o Senhor Supremo é impessoal e pessoal, conforme ele desejar. Na verdade, esta filosofia enfatiza a característica impessoal da Suprema Verdade Absoluta. Como não gostava de tal impersonalismo, o Senhor Caitanya o rejeitou.

“Dize-me se sabes algo superior a esta concepção da Suprema Verdade Absoluta”, disse, afinal, o Senhor Caitanya.

Rāmānanda Rāya compreendeu o propósito do Senhor Caitanya, então, afirmando que é melhor abandonar os resultados das atividades fruitivas, citou um verso da Bhagavad-gītā (9.27):

yat karoṣi yad aśnāsi
  yaj juhoṣi dadāsi yat
yat tapasyasi kaunteya
  tat kuruṣva mad-arpaṇam

“Ó filho de Kuntī! Tudo que fizeres, tudo que comeres, tudo que ofereceres e presenteares, bem como todas as austeridades que acaso realizares, tudo deve ser feito como uma oferenda a Mim.” Existe também um trecho semelhante no Śrīmad-Bhāgavatam (11.2.36), onde se afirma que devemos oferecer tudo – as atividades fruitivas, o corpo, a fala, a mente, os sentidos, a inteligência, a alma e os modos da natureza – à Suprema Personalidade de Deus, Nārāyaṇa.

O Senhor Caitanya, todavia, também rejeitou esta segunda afirmação, dizendo: “Se sabes algo mais elevado, dize”.

Oferecer tudo à Suprema Personalidade de Deus, como prescreve a Bhagavad-gītā e o Śrīmad-Bhāgavatam, é melhor que transformar o Senhor Supremo em subordinado impessoal do nosso trabalho, porém, ainda está longe da rendição das atividades ao Senhor Supremo. Um trabalhador não pode deixar de identificar-se com a existência material caso não tenha uma orientação apropriada. Tais atividades fruitivas manterão a pessoa na existência material. Aqui, o trabalhador é instruído apenas a oferecer os resultados de seu trabalho ao Senhor Supremo, porém, não existe informação que o capacite a sair do emaranhamento material. Portanto, o Senhor Caitanya rejeitou sua proposta.

Depois que suas sugestões foram rejeitadas duas vezes, Rāmānanda Rāya propôs que se devem abandonar por completo as atividades ocupacionais e, através do desapego, elevar-se ao plano transcendental. Em outras palavras, ele recomendou a completa renúncia à vida mundana, e para apoiar esta opinião, citou uma evidência do Śrīmad-Bhāgavatam (11.11.32) onde o Senhor diz: “Nas escrituras, descrevi os princípios ritualísticos e a maneira através da qual alguém pode situar-se em serviço devocional. Esta é a perfeição suprema da religião”. Rāmānanda Rāya também citou o preceito do Senhor Kṛṣṇa na Bhagavad-gītā (18.66):

sarva-dharmān parityajya
  mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja
ahaṁ tvāṁ sarva-pāpebhyo
  mokṣayiṣyāmi mā śucaḥ

“Abandona todas as variedades de religião e simplesmente rende-te a Mim. Eu te libertarei de toda reação pecaminosa. Não temas.”

O Senhor Caitanya também rejeitou esta terceira proposição, pois queria demonstrar que a renúncia em si não era suficiente. Deveria haver uma ocupação positiva. Sem uma ocupação positiva, não se pode alcançar o nível de perfeição supremo. Em geral, existem duas classes de filósofos na ordem de vida renunciada. A meta de uma é o nirvāṇa, e a meta da outra é a impessoal refulgência Brahman. Esses filósofos não imaginam que podem alcançar os planetas Vaikuṇṭhas no céu espiritual, que estão além do nirvāṇa e da refulgência Brahman. Como na simples renúncia não existe a concepção dos planetas espirituais e das atividades espirituais, o Senhor Caitanya rejeitou esta terceira proposta.

Rāmānanda Rāya, em seguida, citou mais uma evidência da Bhagavad-gītā (18.54):

brahma-bhūtaḥ prasannātmā
  na śocati na kāṅkṣati
samaḥ sarveṣu bhūteṣu
  mad-bhaktiṁ labhate parām

“Aquele que está transcendentalmente situado entende de imediato o Brahman Supremo. Jamais se lamenta nem deseja ter nada; ele é equânime com todas as entidades vivas. Neste estado, ele passa a Me prestar serviço devocional puro.” Rāmānanda Rāya primeiro sugeriu a prestação de serviço devocional com renúncia às atividades fruitivas, porém, aqui ele sugere que o serviço devocional acrescido de completo conhecimento e compreensão espiritual, é superior.

O Senhor Caitanya, todavia, também repudiou esta proposição, pois a mera renúncia aos resultados materiais, a qual se alcança na compreensão de Brahman, não revela o conhecimento do mundo espiritual e das atividades espirituais. Embora não existam contaminações materiais quando se atinge a plataforma de compreensão de Brahman, esta plataforma não é perfeita porque não existe uma ocupação positiva em atividades espirituais. Porque ainda está no plano mental, é externa. A entidade viva pura não se libera a menos que esteja completamente ocupada em atividades espirituais. Enquanto alguém está absorto em pensamentos impessoais ou niilistas, sua entrada numa eterna vida bem-aventurada de conhecimento não se completa. Quando o conhecimento espiritual não é completo, a pessoa não é bem-sucedida em sua tentativa de limpar a mente de toda variedade material. Assim, os impersonalistas são frustrados em suas tentativas de esvaziarem a mente através da meditação artificial. É dificílimo esvaziar a mente de todas as concepções materiais. Como se afirma na Bhagavad-gītā (12.5): “Para aqueles cujas mentes estão atraídas ao aspecto imanifesto e impessoal do Supremo, o avanço é muito penoso. Progredir nesta disciplina é sempre difícil àqueles que estão corporificados.” A liberação alcançada através dessa meditação impessoal não é completa; portanto, o Senhor Caitanya a rejeitou.

Depois que esta quarta proposta foi rejeitada, Rāmānanda Rāya disse que o serviço devocional prestado sem nenhuma tentativa de cultivar conhecimento ou especulação mental é a etapa suprema da perfeição. Para apoiar esta opinião, ele apresentou uma evidência do Śrīmad-Bhāgavatam (10.14.3), onde o Senhor Brahmā disse à Suprema Personalidade de Deus:

jñāne prayāsam udapāsya namanta eva
  jīvanti san-mukharitāṁ bhavadīya-vārtām
sthāne sthitāḥ śruti-gatāṁ tanu-vāṅ-manobhir
  ye prāyaśo ’jita jito ’py asi tais tri-lokyām

“Meu querido Senhor, deve-se abandonar por completo a especulação monista e o cultivo do conhecimento. Deve-se começar a vida espiritual em serviço devocional recebendo de um devoto realizado a informação sobre as atividades do Senhor. Se alguém cultiva sua vida espiritual seguindo estes princípios e mantendo-se no caminho da vida honesta, então, embora Vossa Onipotência nunca seja conquistado, ele O conquista através desse processo.”

Quando Rāmānanda Rāya apresentou esta proposição, o Senhor Caitanya, imediatamente, disse: “Sim, isto está certo”. Nesta era, não existe possibilidade de adquirir conhecimento espiritual através da renúncia, através do serviço devocional misto, através da atividade fruitiva no serviço devocional misto ou através do cultivo de conhecimento. Porque a maioria das pessoas são caídas e porque não há tempo para elevá-las mediante um processo gradual, o melhor procedimento, de acordo com o Senhor Caitanya, é deixá-las permanecer em qualquer condição que estejam, mas ocupá-las em ouvir sobre as atividades do Senhor Supremo como são explicadas na Bhagavad-gītā e Śrīmad-Bhāgavatam. As mensagens transcendentais das escrituras devem ser recebidas dos lábios de almas realizadas. Deste modo, a pessoa pode continuar vivendo em qualquer condição que esteja e ainda assim progredir espiritualmente. Então, decerto pode-se avançar e compreender por completo a Suprema Personalidade de Deus.

Embora aceitasse estes princípios, o Senhor Caitanya pediu a Rāmānanda Rāya que continuasse explicando o serviço devocional avançado. Dessa maneira, o Senhor Caitanya deu a Rāmānanda Rāya a oportunidade de discutir o avanço gradual dos princípios do varṇāśrama-dharma (as quatro castas e as quatro ordens da vida espiritual). O Senhor Caitanya rejeitou o varṇāśrama-dharma e o oferecimento de atividades fruitivas, pois no campo da execução do serviço devocional puro, existe pouquíssima utilidade para tais princípios. Sem autorrealização, os métodos artificiais de serviço devocional não podem ser aceitos como serviço devocional puro. O serviço devocional puro e autorrealizado é totalmente distinto de todas as outras classes de atividades transcendentais. A plataforma suprema de atividades transcendentais é sempre livre de todos os desejos materiais, esforços fruitivos e tentativas de adquirir conhecimento especulativo. A fase mais elevada concentra-se na simples execução favorável de serviço devocional puro.

Rāmānanda Rāya pôde entender o intento do Senhor Caitanya; por isso, afirmou que a consecução de amor puro por Deus é a plataforma perfectiva suprema. Existe um verso muito bonito no Padyāvalī que dizem ter sido composto pelo próprio Rāmānanda Rāya. O significado do verso é o seguinte: “Enquanto houver fome e vontade de comer e beber, a pessoa pode ficar feliz por ter qualquer coisa comestível. De igual maneira, pode haver muita parafernália para a adoração do Senhor Supremo, porém, quando esta é misturada com amor puro por Deus, ela se torna uma verdadeira fonte de felicidade transcendental”. Rāmānanda Rāya também compôs outro verso onde afirma que, mesmo depois de milhões e milhões de nascimentos, a pessoa não pode alcançar sequer um vestígio do serviço devocional, mas se, de uma maneira ou outra, ela deseja alcançar o serviço devocional, a associação com um devoto puro tornará isto possível. Assim, deve-se ter um desejo intenso de executar serviço devocional. Nestes dois versos, Rāmānanda Rāya descreveu os princípios reguladores e o amor maduro por Deus. O Senhor Caitanya queria trazê-lo ao nível de amor maduro por Deus, e queria que ele falasse desta plataforma. Deste modo, a conversa entre Rāmānanda Rāya e o Senhor Caitanya prosseguiu tendo como base o amor por Deus.

Se o amor por Deus é elevado à plataforma pessoal chama-se prema-bhakti. No começo de prema-bhakti, não se estabelece relacionamento específico entre o Senhor Supremo e o devoto, mas quando prema-bhakti se desenvolve, o relacionamento com o Senhor Supremo manifesta-se em diferentes sabores transcendentais. A primeira etapa é a de serviço, onde o Senhor Supremo é aceito como o amo e o devoto como servo eterno. Quando o Senhor Caitanya aceitou este processo, Rāmānanda Rāya descreveu o relacionamento entre o servo e o amo. Como é descrito no Śrīmad-Bhāgavatam (9.5.16), Durvāsā Muni, um grande yogī místico que se considerava muito elevado, invejou Mahārāja Ambarīṣa, conhecido como o maior devoto de seu tempo. Na tentativa de perturbar Mahārāja Ambarīṣa, Durvāsā Muni, deparou-se com uma grande catástrofe e foi derrotado pela sudarśana-cakra do Senhor. Durvāsā Muni admitiu sua falta e disse: “Para os devotos puros, que estão sempre ocupados no transcendental serviço amoroso ao Senhor, nada é considerado impossível, pois eles estão ocupados no serviço ao Senhor Supremo, de quem até mesmo o nome é suficiente para outorgar a liberação”.

No Stotraratna (46), Yāmunācārya escreve: “Meu Senhor, aqueles que se mantêm independentes de Vosso serviço estão desamparados. Eles trabalham por sua própria conta, e não recebem apoio de nenhuma autoridade superior. Portanto, anseio pelo tempo em que estarei completamente ocupado em Vosso transcendental serviço amoroso, sem nenhum desejo de satisfação material, e sem estar confinado ao plano mental. Só quando estiver ocupado em tal serviço devocional imaculado, desfrutarei a verdadeira vida espiritual”.

Após ouvir esta afirmação, o Senhor Caitanya pediu a Rāmānanda Rāya que continuasse explicando esse tema.

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