Capítulo Vinte e Nove
Amor Puro por Kṛṣṇa
Encorajado pelo Senhor Caitanya a seguir em frente, Rāmānanda Rāya disse que o relacionamento fraternal com o Senhor Kṛṣṇa está num plano transcendental ainda mais elevado. Deste modo, Rāmānanda Rāya ressaltou que quando o relacionamento com Kṛṣṇa aumenta em afeição, o humor caracterizado pelo medo e a consciência de que o Senhor Supremo é superior diminuem. Neste ponto, a fé aumenta, e esta fé chama-se amizade. No relacionamento fraternal, existe um sentimento de igualdade entre Kṛṣṇa e Seus amigos.
A este respeito, Rāmānanda Rāya citou um verso do Śrīmad-Bhāgavatam (10.12.11), no qual Śukadeva Gosvāmī descreve o almoço do Senhor Kṛṣṇa com Seus amigos na floresta. O Senhor Kṛṣṇa e Seus amigos foram à floresta brincar com as vacas, e afirma-se que os meninos que acompanhavam Kṛṣṇa desfrutavam amizade transcendental com a Suprema Personalidade de Deus. Os grandes sábios consideram que o Senhor Supremo é o Brahman impessoal; os devotos consideram que Ele é a Suprema Personalidade de Deus; e os homens comuns consideram-nO um ser humano ordinário.
O Senhor Caitanya apreciou muitíssimo esta afirmação, contudo, Ele disse: “Podes prosseguir ainda mais”. Sendo assim solicitado, Rāmānanda Rāya afirmou que o relacionamento parental com Kṛṣṇa é uma posição transcendental ainda mais elevada. Quando a afeição do relacionamento fraternal aumenta, desenvolve-se o relacionamento parental. Quanto a isto, Rāmānanda Rāya citou um verso do Śrīmad-Bhāgavatam (10.8.46), onde Mahārāja Parīkṣit perguntou a Śukadeva Gosvāmī sobre a magnitude das atividades piedosas de Yaśodā, a mãe de Kṛṣṇa, que a capacitou a ser chamada de “mãe” e a que seus seios fossem mamados pela Suprema Personalidade de Deus. Ele também citou outro verso do Śrīmad-Bhāgavatam (10.9.20), no qual se afirma que Yaśodā recebeu tão incomparável misericórdia da Suprema Personalidade de Deus, que não pode nem mesmo ser comparada à misericórdia recebida por Brahmā, o primeiro ser vivo criado, ou pelo Senhor Śiva, ou mesmo pela deusa da fortuna, Lakṣmī, que está sempre situada no peito do Senhor Viṣṇu.
O Senhor Caitanya pediu a Rāmānanda Rāya para seguir até chegar ao ponto do amor conjugal. Compreendendo a mente do Senhor Caitanya, Rāmānanda Rāya de pronto respondeu que o amor conjugal com Kṛṣṇa, na verdade, constitui o mais elevado relacionamento. Em outras palavras, relacionamentos íntimos com Kṛṣṇa se desenvolvem a partir de uma concepção usual da Suprema Personalidade de Deus à concepção de amo e servo, e quando se torna confidencial, desenvolve-se em relação amistosa, e quando esta relação evolui ainda mais, torna-se parental e quando esta evolui até a fase máxima de amor e afeição é conhecida como amor conjugal ao Senhor Supremo. Rāmānanda Rāya citou outro verso do Śrīmad-Bhāgavatam (10.47.60), no qual se afirma que o êxtase transcendental exibido durante a dança da rāsa pelas gopīs e Kṛṣṇa nunca foi saboreado nem mesmo pela deusa da fortuna, que está sempre situada ao peito do Senhor no reino espiritual. E o que falar da experiência de mulheres comuns?
Rāmānanda Rāya, a seguir, explicou o processo gradual pelo qual se desenvolve o amor puro por Kṛṣṇa. Ele salientou que a entidade viva está relacionada com a Suprema Personalidade de Deus em uma das relações apropriada a ela. Na verdade, as relações com o Senhor Supremo começam com a relação de amo e servo, que posteriormente se desenvolvem em amizade, amor parental e amor conjugal. Deve-se considerar que quem alcança seu relacionamento específico com a Suprema Personalidade de Deus, está no relacionamento mais condizente para si próprio, porém, quando estas relações transcendentais são analisadas, pode-se ver que a fase de compreensão neutra (brahma-bhūta) é a primeira. Quando alguém aceita o Senhor como amo e a si mesmo como servo, o relacionamento evolui, e evolui mais quando ele se torna um amigo do Senhor Supremo, e evolui ainda mais quando ele se torna o pai. Assim, o relacionamento progride da amizade ao amor parental e, enfim, ao amor conjugal, que é a relação suprema com o Senhor.
Autorrealização no relacionamento como servo decerto é transcendental, e ao se acrescentar um sentimento de fraternidade, o relacionamento evolui. Conforme a afeição aumenta, este relacionamento desenvolve-se em paternidade e amor conjugal. Rāmānanda Rāya citou um verso do Bhakti-rasāmṛta-sindhu (2.5.38), afirmando que a afeição espiritual pelo Senhor Supremo é transcendental em todos os casos, mas cada devoto tem uma aptidão específica para um relacionamento em particular, e este relacionamento lhe é mais agradável do que os outros.
Tais relacionamentos transcendentais com o Senhor Supremo não podem ser forjados através de invenções mentais de pseudodevotos. No Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.2.101), Rūpa Gosvāmī afirma que o serviço devocional que não faz referência às escrituras ou textos védicos e que não segue os princípios neles estabelecidos, nunca pode ser aprovado. Śrī Bhaktisiddhānta Sarasvatī Gosvāmī Mahārāja também observou que os mestres espirituais profissionais, os recitadores profissionais do Bhāgavatam, os executores profissionais de kīrtana e aqueles que estão ocupados em serviço devocional inventado por eles mesmos, não podem ser aceitos. Na Índia existem várias comunidades profissionais, conhecidas como Āula, Vāula, Kartābhajā, Neḍā Daraveśa, Snāi, Atibāḍi, Cūḍādhārī e Gaurāṅganāgarī. Um membro da Sociedade Ventor Gosvāmī, ou da casta chamada gosvāmī, não pode ser aceito como descendente dos seis Gosvāmīs originais. Tampouco podem ser aceitos os pretensos devotos, que inventam canções sobre o Senhor Caitanya, os sacerdotes profissionais e os recitadores pagos. Aqueles que não seguem os princípios do Pañcarātra, ou que são impersonalistas ou viciados em vida sexual, não podem ser comparados àqueles que dedicaram suas vidas ao serviço de Kṛṣṇa. O devoto puro, que está sempre ocupado em consciência de Kṛṣṇa, pode sacrificar tudo pelo serviço ao Senhor. Quem dedicou sua vida ao serviço do Senhor Caitanya, de Kṛṣṇa e do mestre espiritual, ou quem está seguindo os princípios da vida familiar, bem como os que estão seguindo os princípios da vida renunciada sob a ordem de Caitanya Mahāprabhu, são devotos e não podem ser comparados a profissionais.
Quando alguém se libera de todas as contaminações materiais, qualquer um dos relacionamentos com Kṛṣṇa é transcendental e agradável. Infelizmente, aqueles que são inexperientes na ciência transcendental, não conseguem apreciar os diferentes relacionamentos com o Senhor Supremo. Eles pensam que todos esses relacionamentos surgem de māyā. O Caitanya-caritāmṛta afirma que terra, água, fogo, ar e éter (os cinco elementos grosseiros) evoluem das formas sutis para as formas mais grosseiras. Por exemplo, o som é encontrado no éter, mas no ar existe som e tato. Quando se acrescenta o fogo, existe som, tato e forma. Quando a água é adicionada, existe som, tato, forma e sabor, e quando se adiciona terra, existe som, tato, forma, sabor e aroma. Assim como várias características se desenvolvem progressivamente do éter à terra, as cinco características da devoção se desenvolvem e são todas encontradas no relacionamento de amor conjugal. Deste modo, aceita-se que o relacionamento com Kṛṣṇa em amor conjugal é a suprema etapa perfectiva de amor a Deus.
Como se afirma no Śrīmad-Bhāgavatam (10.82.44): “O serviço devocional à Suprema Personalidade de Deus é a essência de toda entidade viva”. Na realidade, o Senhor informou às donzelas de Vraja que somente devido a seu amor é que elas conseguiram associar-se com Ele. Declara-se que o Senhor Kṛṣṇa, na relação com Seus devotos, aceita todas as classes de serviço devocional segundo a aptidão do devoto. Deste modo, Kṛṣṇa reciproca de acordo com os anseios do devoto. Se alguém quer se relacionar com Kṛṣṇa como amo e servo, Kṛṣṇa age como o perfeito amo. Para quem quer ter Kṛṣṇa como filho num relacionamento parental, Kṛṣṇa age como o perfeito filho. Da mesma forma, se o devoto quer adorar Kṛṣṇa em amor conjugal, Kṛṣṇa age como o marido ou amante perfeito. Porém, o próprio Kṛṣṇa admitiu que o Seu relacionamento amoroso com as donzelas de Vraja em amor conjugal é o nível de perfeição supremo. No Śrīmad-Bhāgavatam (10.32.22), Kṛṣṇa disse às gopīs:
na pāraye ’haṁ niravadya-saṁyujāṁ
sva-sādhu-kṛtyaṁ vibudhāyuṣāpi vaḥ
yā mābhajan durjaya-geha-śṛṅkhalāḥ
saṁvṛścya tad vaḥ pratiyātu sādhunā
“Vosso relacionamento coMigo é completamente transcendental, e não Me é possível oferecer algo em troca deste amor, mesmo depois de muitos nascimentos. Fostes capazes de abandonar todo o apego ao desfrute material, e viestes a Minha procura. Como sou incapaz de retribuir vosso amor, tendes de ficar satisfeitas com vossas próprias atividades.”
Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Gosvāmī Mahārāja advertiu-nos da existência de uma classe de homens ordinários que sustenta que qualquer um pode adorar o Senhor Supremo de acordo com seu próprio e inventado processo de adoração e, ainda assim, alcançar a Suprema Personalidade de Deus. Eles alegam que alguém pode aproximar-se do Senhor Supremo através de atividades fruitivas, conhecimento especulativo, meditação ou austeridade, e que qualquer método será bem-sucedido. Eles afirmam que se podem aceitar muitos caminhos diferentes e ainda assim chegar ao mesmo lugar, e mantêm que a Suprema Verdade Absoluta pode ser adorada ou sob a forma da deusa Kālī, ou da deusa Durgā, ou do Senhor Śiva, Gaṇeśa, Rāma, Hari ou Brahmā. Em suma, eles sustentam que não importa como nos dirigimos à Verdade Absoluta, pois todos os nomes são a mesma coisa. Eles dão o exemplo de um homem que tem muitos nomes; se ele for chamado por qualquer um destes nomes, responderá.
Tais opiniões podem ser muito agradáveis a uma pessoa comum, porém, estão repletas de concepções errôneas. Quem adora os semideuses, motivado por luxúria material, não pode alcançar a Suprema Personalidade de Deus. Se alguém adora os semideuses, pode receber da energia externa do Senhor alguns resultados, mas isso não quer dizer que ele pode alcançar o Senhor Supremo mediante semelhante adoração. Na verdade, a Bhagavad-gītā (7.23) desencoraja essa classe de adoração:
antavat tu phalaṁ teṣāṁ
tad bhavaty alpa-medhasām
devān deva-yajo yānti
mad-bhaktā yānti mām api
“Homens de pouca inteligência adoram os semideuses, e seus frutos são limitados e temporários. Aqueles que adoram os semideuses vão para os planetas dos semideuses, porém, Meus devotos por fim alcançam Meu planeta supremo.” Dessa maneira, o Senhor Supremo concede a bênção de Sua companhia somente àqueles que O adoram, e não aos que adoram os semideuses. Não é um fato que toda e qualquer pessoa pode alcançar a Suprema Personalidade de Deus adorando semideuses materiais. Portanto, é surpreendente que alguém possa imaginar que se tornará perfeito através da adoração aos semideuses. Os resultados do serviço devocional prestado em completa consciência de Kṛṣṇa não podem ser comparados aos resultados da adoração de semideuses, atividades fruitivas ou especulação mental. Mediante os resultados das atividades fruitivas, pode-se ir ou aos planetas celestiais ou aos infernais.