Capítulo Três
Ensinamentos a Sanātana Gosvāmī
Das instruções que o Senhor Caitanya transmitiu a Sanātana Gosvāmī, podemos compreender a ciência de Deus relacionada à Sua forma transcendental, Suas opulências e o serviço devocional a Ele prestado. De fato, o próprio Senhor vai explicando tudo a Sanātana Gosvāmī.
Então, Sanātana cai aos pés do Senhor e com grande humildade pergunta qual é sua verdadeira identidade. “Nasci em família inferior”, disse Sanātana. “Todos os meus companheiros são abomináveis, e eu sou caído, o mais miserável dos seres humanos. Eu estava sofrendo no poço escuro do gozo material, e nunca conheci a verdadeira meta da vida. Na verdade, nem mesmo sei o que é benéfico para mim. Embora aos olhos do mundo eu possa ser tido como um grande erudito, de fato, sou tão tolo que até mesmo me considero erudito. Aceitaste-me como Teu servo, e me salvaste do enredamento da vida material. Portanto, por favor, dize-me como devo proceder neste estado liberado.”
Através desta submissão, podemos compreender que a liberação não é a última etapa da perfeição. Quem é liberado na certa executa atividades. Sanātana disse claramente: “Salvaste-me da existência material. Agora, após a liberação, qual é o meu dever?” Sanātana perguntou ainda: “Quem sou eu? Por que as três classes de misérias estão sempre me perturbando? E, finalmente, dize-me como posso libertar-me deste enredamento material? Não sei como perguntar-Te sobre o progresso na vida espiritual, mas suplico que, por favor, sê misericordioso e informa tudo o que preciso saber”.
É este o processo através do qual se aceita um mestre espiritual. A pessoa deve aproximar-se de um mestre espiritual, humildemente render-se a ele e então indagar dele como é que se deve agir para alcançar progresso espiritual.
O Senhor ficou satisfeito com o comportamento submisso de Sanātana, e respondeu: “Já recebeste a bênção do Senhor Kṛṣṇa, e por isso, sabes de tudo e estás livre de todas as misérias da existência material”. Continuando, o Senhor assinalou que, como Sanātana era consciente de Kṛṣṇa, naturalmente, pela graça de Kṛṣṇa, já estava familiarizado com tudo. “Porque és um devoto humilde”, prosseguiu o Senhor, “estás pedindo-Me que confirme o que já sabes. Isto é muito bom.” Estas são as características de um devoto verdadeiro. No Nārada-bhakti-sūtra, afirma-se que quem se dedica a aperfeiçoar-se em consciência de Kṛṣṇa é favorecido pelo Senhor e muito em breve concretiza o seu desejo de compreender Kṛṣṇa.
“És uma pessoa adequada para proteger o serviço devocional ao Senhor”, Caitanya Mahāprabhu continuou. “Por isso, é Meu dever instruir-te na ciência de Deus, e te explicarei tudo passo a passo.”
É dever de um discípulo que se aproxima de um mestre espiritual perguntar sobre sua posição constitucional. Em conformidade com este processo espiritual, Sanātana já havia perguntado: “Quem sou eu, e por que estou sofrendo as três classes de misérias?” As três classes de misérias chamam-se adhyātmika, adhibhautika e adhidaivika. A palavra adhyātmika refere-se àquelas misérias causadas pela mente e pelo corpo. Às vezes, a entidade viva sofre fisicamente e, às vezes, padece mentalmente. Ambas são misérias adhyātmika. Experimentamos estas misérias mesmo enquanto estamos no ventre de nossa mãe. Afinal, sabemos muito bem que há muitas espécies de misérias que se aproveitam do delicado corpo humano e nos causam dor. As misérias infligidas por outras entidades vivas são chamadas adhibhautika. Estas entidades vivas nem precisam ser grandes, pois existem muitas – tais como os insetos – que nos causam miséria mesmo enquanto dormimos na cama. Há muitas entidades vivas insignificantes, tais como as baratas, que, às vezes, nos causam dor, e também há outras entidades vivas nascidas em diferentes categorias de planetas e que nos trazem misérias. Quanto às misérias adhidaivika, elas são desastres naturais provocados pelos semideuses dos planetas superiores. Às vezes, por exemplo, sofremos frio severo ou calor sufocante, as investidas de um raio, terremotos, ciclones, secas e muitos outros desastres naturais. Em qualquer caso, sempre estamos sujeitos aos efeitos dessas três classes de misérias, manifestas isoladamente ou em combinação.
A pergunta de Sanātana foi, portanto, inteligente. “Qual é a posição das entidades vivas?”, perguntou ele. “Por que elas estão sempre se submetendo a estas três classes de misérias?” Sanātana admitiu sua fraqueza. Embora fosse conhecido pelo povo como um homem grandemente erudito (e na verdade ele era um estudioso muito erudito em sânscrito), e embora aceitasse esta designação, ele de fato não sabia qual era realmente sua posição constitucional e não sabia exatamente por que estava sujeito às três classes de misérias.
Aproximar-se de um mestre espiritual não é apenas modismo, mas algo necessário a alguém que conhece perfeitamente as misérias materiais e quer livrar-se delas. Cabe a essa pessoa aproximar-se do mestre espiritual. A este respeito, devemos notar que, na Bhagavad-gītā, há uma circunstância semelhante. Ao ficar perplexo devido à sua indecisão de lutar, Arjuna aceitou o Senhor Kṛṣṇa como seu mestre espiritual. Este foi também um caso em que o mestre espiritual supremo instruiu Arjuna sobre a posição constitucional da entidade viva.
A Bhagavad-gītā informa-nos que, em sua natureza constitucional, a entidade individual é alma espiritual. Ela não é matéria. Como alma espiritual, ela é parte integrante da alma suprema, a Verdade Absoluta, a Personalidade de Deus. Também aprendemos que é dever da alma espiritual render-se, pois somente então ela poderá ser feliz. Em sua instrução final, a Bhagavad-gītā recomenda que a alma espiritual se renda completamente à alma suprema, Kṛṣṇa, para, deste modo, sentir felicidade.
Aqui também, o Senhor Caitanya, respondendo às perguntas de Sanātana, reitera a mesma verdade. Todavia, existe uma diferença. Aqui, a informação que o Senhor Caitanya transmite sobre a alma espiritual não é aquela que já foi descrita na Bhagavad-gītā. Ao invés disso, Ele começa do ponto onde Kṛṣṇa termina Suas instruções. Grandes devotos aceitam que o Senhor Caitanya é o próprio Kṛṣṇa, e por isso, ao instruir Sanātana, Ele começa do ponto em que terminam as instruções por Ele transmitidas a Arjuna na Bhagavad-gītā.
“Em tua posição constitucional és alma viva pura”, o Senhor disse a Sanātana. “Este corpo material não pode ser identificado com o teu verdadeiro eu; tampouco tua mente, tua inteligência ou teu falso ego são tua verdadeira identidade. Conforme tua identidade, és servo eterno do Supremo Senhor Kṛṣṇa. Tua posição é transcendental. A energia superior de Kṛṣṇa possui constituição espiritual, e a energia externa inferior é material. Como estás entre a energia material e a energia espiritual, tua posição é marginal. Pertencendo à potência marginal de Kṛṣṇa, és simultaneamente igual a Kṛṣṇa e diferente dEle. Porque és espírito, não és diferente de Kṛṣṇa, e porque és apenas uma diminuta partícula de Kṛṣṇa, és diferente dEle.”
Esta igualdade e diferença simultâneas sempre existe na relação entre as entidades vivas e o Senhor Supremo. Analisando a posição marginal das entidades vivas, pode-se compreender este conceito de “igualdade e diferença simultâneas”. A entidade viva é exatamente como uma partícula molecular do brilho do Sol, ao passo que Kṛṣṇa pode ser comparado ao próprio Sol resplandecente e brilhante. O Senhor Caitanya comparou as entidades vivas a centelhas resplandecentes de um fogo, e o Senhor Supremo ao resplandecente fogo do Sol. A esse respeito, o Senhor citou um verso do Viṣṇu Purāṇa (1.22.52):
eka-deśa-sthitasyāgner
jyotsnā vistāriṇī yathā
parasya brahmaṇaḥ śaktis
tathedam akhilaṁ jagat
“Tudo o que se manifesta neste cosmo não é senão a energia do Senhor Supremo. Assim como o fogo que emana de um lugar difunde iluminação e calor por toda parte, o Senhor, embora Se situe em um lugar no mundo espiritual, manifesta Suas diferentes energias em toda parte. De fato, toda a criação cósmica é composta de diferentes manifestações de Sua energia.”
A energia do Senhor Supremo é transcendental e espiritual, e as entidades vivas são partes integrantes desta energia. Existe outra energia, entretanto, chamada energia material, que é coberta pela nuvem da ignorância. Esta energia, a natureza material, divide-se em três modos, ou guṇas (bondade, paixão e ignorância). O Senhor Caitanya citou o Viṣṇu Purāṇa (1.3.2) segundo o qual todas as energias inconcebíveis residem na Suprema Personalidade do Senhor e que a manifestação cósmica inteira age devido à energia inconcebível do Senhor.
O Senhor disse também que as entidades vivas se chamam kṣetrajña, ou “conhecedoras do campo de atividades”. No Décimo Terceiro Capítulo da Bhagavad-gītā, o corpo é descrito como o campo de atividades, e a entidade viva, como o kṣetrajña, o conhecedor deste campo. Embora, em sua posição constitucional, conheça a energia espiritual, ou tenha a potência de compreender a energia espiritual, a entidade viva está coberta pela energia material e, por conseguinte, identifica o corpo com o eu. Esta falsa identificação chama-se “falso ego”. Iludida por este falso ego, a entidade viva, desnorteada na existência material, troca seus diferentes corpos, e sofre várias espécies de misérias. Diferentes classes de entidade vivas possuem conhecimento, em diferentes graus, sobre a posição verdadeira da entidade viva.
Em outras palavras, deve-se compreender que a entidade viva é parte integrante da energia espiritual do Senhor Supremo. Porque a energia material é inferior, o homem tem a capacidade de remover esta energia material que o encobre e utilizar a energia espiritual. Afirma-se na Bhagavad-gītā que a energia superior fica coberta pela energia inferior. Devido a esta cobertura, a entidade viva fica sujeita às misérias do mundo material, e, em proporção aos diferentes graus de paixão e ignorância em que se encontre, ela sofre as misérias materiais. Aqueles que são um pouco iluminados sofrem menos, mas em geral, todos estão sujeitos às misérias materiais devido a estarem cobertos pela energia material.
Caitanya Mahāprabhu citou também o Sétimo Capítulo da Bhagavad-gītā, onde se afirma que terra, água, fogo, ar, éter, mente, inteligência e ego, todos se combinam para formar a energia inferior do Senhor Supremo. A energia superior, contudo, é a identidade verdadeira do ser vivo, e é por causa dessa energia que todo o mundo material funciona. A manifestação cósmica, constituída de elementos materiais, não tem poder de agir a menos que seja movida pela energia superior, a entidade viva. De fato, pode-se dizer que a vida condicionada da entidade viva se deve ao esquecimento de sua relação com o Senhor Supremo na energia superior. Quando este relacionamento é esquecido, o resultado é a vida condicionada. Apenas ao reviver sua verdadeira identidade, a de servo eterno do Senhor, é que o homem se libera.