Capítulo 11
As Características de um Sādhu
Verso 21
titikṣavaḥ kāruṇikāḥ
suhṛdaḥ sarva-dehinām
ajāta-śatravaḥ śāntāḥ
sādhavaḥ sādhu-bhūṣaṇāḥ
As características de um sādhu são que ele é tolerante, misericordioso e amistoso com todas as entidades vivas. Ele não tem inimigos, é pacífico, orienta-se pelas escrituras e todas as suas características são sublimes.
SIGNIFICADO—O sādhu, como se descreve acima, é um devoto do Senhor. Seu interesse, portanto, é de esclarecer as pessoas sobre o serviço devocional ao Senhor. Essa é a sua misericórdia. Ele sabe que, sem o serviço devocional ao Senhor, desperdiça-se a vida humana. Um devoto viaja por todo o país, de porta em porta, pregando: “Seja consciente de Kṛṣṇa. Seja devoto do Senhor Kṛṣṇa. Não desperdice sua vida simplesmente satisfazendo suas propensões animais. A vida humana destina-se à autorrealização, ou à consciência de Kṛṣṇa.” Essas são as pregações de um sādhu. Ele não se contenta com sua própria liberação. Ele sempre pensa nos outros. Ele é a personalidade mais compassiva com todas as almas caídas. Uma de suas qualificações, portanto, é kāruṇika, grande misericórdia para com as almas caídas. Enquanto se dedica ao trabalho de pregação, ele tem que enfrentar muitos elementos opostos, de maneira que o sādhu, ou seja, o devoto do Senhor, precisa ser muito tolerante. Pode ser que alguém o maltrate porque as almas condicionadas não estão preparadas para receber o conhecimento transcendental do serviço devocional. Elas não gostam disso; essa é a doença delas. O sādhu tem a tarefa ingrata de convencê-las da importância do serviço devocional. Às vezes, os devotos são pessoalmente atacados com violência. O senhor Jesus Cristo foi crucificado, Haridāsa Ṭhākura foi arrastado a chicotadas por vinte e dois mercados, e o principal assistente do Senhor Caitanya, Nityānanda, foi violentamente atacado por Jagāi e Mādhāi. Porém, apesar disso, eles foram tolerantes, pois sua missão era liberar as almas caídas. Uma das qualificações do sādhu é que ele é muito tolerante e misericordioso com todas as almas caídas. Ele é misericordioso porque é o benquerente de todas as entidades vivas. Ele é não apenas um benquerente da sociedade humana, mas também um benquerente da sociedade animal. Aqui se diz sarva-dehinām, o que indica todas as entidades vivas que aceitaram corpos materiais. Não só o ser humano tem um corpo material, mas também outras entidades vivas, como cães e gatos, têm corpos materiais. O devoto do Senhor é misericordioso com todos – os cães, os gatos, as árvores etc. Ele trata todas as entidades vivas de maneira que elas possam, por fim, obter a salvação deste enredamento material. Śivānanda Sena, um dos discípulos do Senhor Caitanya, conferiu a liberação a um cão ao tratar o cão transcendentalmente. Há muitos casos de cães que obtiveram a salvação por se associarem com um sādhu, porque o sādhu se dedica às mais elevadas atividades filantrópicas para abençoar todas as entidades vivas. Todavia, embora o sādhu não seja hostil contra ninguém, o mundo é tão ingrato que mesmo um sādhu tem muitos inimigos.
Qual é a diferença entre inimigo e amigo? A diferença está no comportamento. O sādhu lida com todas as almas condicionadas para ajudá-las a aliviar-se finalmente do enredamento material. Portanto, ninguém pode ser mais amistoso do que um sādhu proporcionando a liberação à alma condicionada. O sādhu é calmo e segue tranquila e pacificamente os princípios da escritura. Sādhu quer dizer aquele que segue os princípios da escritura e, ao mesmo tempo, é um devoto do Senhor. Aquele que realmente segue os princípios da escritura é certamente um devoto do Senhor, visto que todos os śāstras nos ensinam a obedecer às ordens da Personalidade de Deus. Sādhu, portanto, significa seguidor dos preceitos escriturais e devoto do Senhor. Todas essas características são preeminentes em um devoto. O devoto desenvolve todas as boas qualidades dos semideuses, ao passo que o não-devoto, muito embora academicamente qualificado, não tem verdadeiras boas qualidades ou boas características, de acordo com o padrão de compreensão transcendental.
Segundo o Padma Purāṇa, existem 8.400.000 formas de vida, e o ātmā é o mesmo em todas elas. O sādhu pode compreender isso, como indica a Bhagavad-gītā (5.18):
vidyā-vinaya-sampanne
brāhmaṇe gavi hastini
śuni caiva śva-pāke ca
paṇḍitāḥ sama-darśinaḥ
“Os sábios humildes, em virtude do conhecimento verdadeiro, veem com a mesma visão um brāhmaṇa erudito e cortês, uma vaca, um elefante, um cachorro e um comedor de cachorro [pária].”
Isso não quer dizer que o brāhmaṇa seja igual a um cachorro, mas que o brāhmaṇa é uma alma espiritual, e o cachorro também é uma alma espiritual. Somos condicionados de acordo com nossos diferentes corpos, que nos são dados por forças superiores. Yamarāja oferece à entidade viva um corpo de acordo com seu karma. Karmaṇā daiva-netreṇa. Recebemos corpos de acordo com nossas qualificações. Se obtemos as qualidades de brāhmaṇa e agimos como brāhmaṇas, tornamo-nos brāhmaṇas. Se agimos como cães, tornamo-nos cães. Ninguém deve pensar que, pelo simples fato de nascer como brāhmaṇa, ele se torna um brāhmaṇa automaticamente. A Bhagavad-gītā menciona as características que definem a que casta alguém pertence. Śrīdhara Svāmī também salientou que o nascimento não é tudo. É necessário adquirir as qualidades. Apesar de qualquer corpo que tenhamos, nossa posição é temporária. Não podemos permanecer indefinidamente em posição alguma. Talvez pensemos que agora somos americanos e muito felizes e que está tudo bem. Podemos delinear nossos planos de felicidade eterna, mas a natureza não nos deixará permanecer aqui para sempre. Logo que a natureza nos chama, morremos e abandonamos nossa posição. Então, temos de aceitar a posição de um cão, de um gato, de um semideus, de um ser humano ou do que quer que seja. Agora recebemos a forma de vida mais elevada, a de um ser humano, mas, se não agirmos condignamente, teremos de aceitar um corpo inferior. Isso é karmaṇā daiva-netreṇa.
Devemos, portanto, ser muito cuidadosos nesta forma humana para que nosso objetivo seja o de nos tornarmos devotos do Senhor Kṛṣṇa. Eis o caminho da liberação. Antigamente, grandes personalidades na Índia costumavam ir para a floresta a fim de meditar e, assim, parar a repetição de nascimentos e mortes. Essa é a atividade mais elevada para o homem, e, na verdade, todo homem está destinado a isso. A menos que vençamos a repetição de nascimentos e mortes, desperdiçamos nossa vida como animais – comendo, dormindo, defendendo-nos e procriando. As pessoas, em especial nesta era, não conseguem distinguir entre vida animal e vida humana. Elas pensam que a diferença é que os animais dormem na rua e os seres humanos dormem em ótimos apartamentos. Entretanto, os śāstras não definem civilização dessa maneira. Quer alguém durma na rua, quer em um apartamento, a atividade é a mesma. Um cão pode comer em uma lata de lixo, e um homem pode comer em um prato de ouro, mas isso não significa que estejam ocupados em atividades diferentes. Tanto o cão quanto o homem estão ingerindo alimento. Um cão pode fazer sexo na rua; e um ser humano, em uma cama muito confortável em um local isolado, mas isso não muda a atividade em si. Todos estão pensando que progresso da civilização significa aprimorar o comer, dormir, procriar e defender-se, mas, na verdade, essas atividades não têm nada a ver com civilização. Elas simplesmente agravam nosso aprisionamento na vida material.
Vida humana destina-se a yajña, sacrifício para a satisfação da Pessoa Suprema. Podemos aperfeiçoar nossas atividades, mas o sucesso encontra-se em satisfazer a Kṛṣṇa através de nossos talentos. No momento atual, podemos estar apegados à atividade material, mas devemos transferir esse apego a um sādhu. Nossa vida, então, encontrará êxito. Agora estamos apegados a dinheiro, mulheres, mansões, país, sociedade, amigos, família e assim por diante. Esse apego se chama arjaraṁ pāśam. A palavra pāśu significa “corda”. Enquanto estamos amarrados por uma corda, encontramo-nos desamparados, e agora estamos atados pelos guṇas, ou os três modos da natureza material. A palavra guṇa também quer dizer “corda”. Não podemos nos libertar, pois estamos condicionados. Não podemos nos movimentar à vontade sem a sanção da autoridade suprema. Costuma-se dizer que nem uma folha de grama se move sem a sanção de Deus. Da mesma maneira, não podemos fazer nada sem a supervisão de uma autoridade superior.
Não é que Deus tenha de supervisionar isso pessoalmente. Parāsya śaktir vividhaiva śrūyate na tasya kāryaṁ karaṇaṁ ca vidyate: na Śvetāśvatara Upaniṣad (6.8) declara-se, portanto, que o Senhor Supremo não precisa agir pessoalmente. Ele tem muitos agentes para realizar tudo para Ele. Somos tão controlados que não temos liberdade nem para piscar os olhos. Podemos mover as mãos à vontade, mas, a qualquer momento, elas podem ficar paralíticas. Agora posso dizer: “Esta é minha mão.” Mas o que isso significa? A mão pode ficar paralítica a qualquer momento. Assim é a vida condicionada, e como podemos melhorá-la? Nosso dever é libertarmo-nos de todo esse condicionamento. Como isso é possível? Sa eva sādhuṣu kṛto mokṣa-dvāram apāvṛtam. (Śrīmad-Bhāgavatam 3.25.20) Devemos transferir para um sādhu nosso apego aos objetos materiais. ‘Sādhu-saṅga’, ‘sādhu-saṅga’ — sarva-śāstre kaya: esse é o conselho de Śrī Caitanya Mahāprabhu. Todos os śāstras nos aconselham a que nos associemos com um sādhu. Até mesmo Cāṇakya Paṇḍita, o grande político, recomendou: tyaja durjana-saṁsargaṁ bhaja sādhu-samāgamam. Um vaiṣṇava chefe de família perguntou a Caitanya Mahāprabhu qual era o dever de um chefe de família, e Caitanya Mahāprabhu de imediato respondeu que asat-saṅga-tyāga — ei vaiṣṇava-ācāra: “Não se associar com não-devotos, mas buscar por um sādhu.” (Caitanya-caritāmṛta, Madhya 22.87)
Hoje em dia, é muito difícil evitar a companhia de asādhus, aqueles que não são sādhus. É muito difícil encontrar um sādhu com quem nos associarmos. Por isso, começamos este movimento da consciência de Kṛṣṇa para criar uma associação de sādhus, onde as pessoas possam se beneficiar e, dessa maneira, alcançar a liberação. Não existe outro propósito para esta sociedade.
Kṛṣṇa declara na Bhagavad-gītā (6.47) que o sādhu de primeira classe é aquele que sempre pensa nEle. Esse processo não é muito difícil. Devemos sempre pensar em Kṛṣṇa, mas como isso é possível? Pensamos em nossos negócios, nosso cachorro, nossa família, nosso objeto de amor e tantas outras coisas. Temos de pensar em algo; não podemos ficar sem pensar. Temos apenas de dirigir nossos pensamentos para Kṛṣṇa. O dever do sādhu é ensinar tal conhecimento, e pode aprender este assunto quem se associa com um sādhu. Na verdade, um sādhu não ensina outra coisa. Ādau śraddhā tataḥ sādhu-saṅgaḥ. (Bhakti-rasāmṛta-sindhu 1.4.15) Essa é a maneira de avançar espiritualmente. É compulsório associar-se com um sādhu. A missão de um sādhu, em geral, é ingrata, mas ele tem de ser tolerante. Apesar de todos os problemas com os quais possa se deparar, o sādhu é muito misericordioso para com as almas caídas e condicionadas. Ele sabe que todos estão sofrendo devido à falta de consciência de Kṛṣṇa, e, porque sempre pensa no bem-estar dos outros, ele é suhṛt. As outras pessoas são sempre invejosas, mas o sādhu vive pensando em como salvar o próximo das garras de māyā. Um sādhu é bondoso não só com os seres humanos, mas também com gatos, cachorros, árvores, plantas e insetos; ele hesita em matar até um mosquito. Ele não pensa: “Devo cuidar unicamente de meu irmão.” Ele vê a todos como irmãos, pois Kṛṣṇa diz que Ele é o pai de todos os seres.
Porque vive assim, o sādhu não cria inimigos. Se existem inimigos, isso se deve ao caráter deles, e não há nenhuma provocação da parte do sādhu. Um sādhu apenas ensina: “Meu querido ser humano, meu querido amigo, simplesmente renda-se a Kṛṣṇa.” Os inimigos surgem devido à natureza invejosa do homem. Cāṇakya Paṇḍita diz que existem dois animais invejosos – a serpente e o homem. Apesar de você ser impecável, um deles pode matá-lo. Dentre os dois, Cāṇakya Paṇḍita diz que o homem invejoso é mais perigoso, pois a serpente pode ser controlada através do canto de mantra ou através de alguma erva, mas o homem invejoso não pode ser controlado dessas maneiras. Em Kali-yuga, praticamente todos são invejosos, mas temos de tolerar isso.
Homens invejosos criam muitos obstáculos ao movimento da consciência de Kṛṣṇa, mas temos de tolerá-los. Não há alternativa. Devemos ser pacíficos e depender de Kṛṣṇa em todas as circunstâncias. Esses são os ornamentos de um sādhu. Temos de encontrar um sādhu e nos associar com ele. Nosso caminho para a liberação, então, estará aberto.
No próximo verso, o Senhor Kapila explica ainda mais as atividades de um sādhu.
Verso 22
mayy ananyena bhāvena
bhaktiṁ kurvanti ye dṛḍhām
mat-kṛte tyakta-karmāṇas
tyakta-svajana-bāndhavāḥ
Semelhante sādhu ocupa-se indesviável e solidamente em serviço devocional ao Senhor. Pela causa do Senhor, ele renuncia todas as outras ligações, tais como relações familiares e amistosas no mundo.
SIGNIFICADO—Uma pessoa na ordem de vida renunciada, um sannyāsī, também é chamada de sādhu, pois renuncia tudo – seu lar, seu conforto, seus amigos, seus parentes e seus deveres com amigos e com a família. Ele renuncia tudo pela causa da Suprema Personalidade de Deus. De um modo geral, o sannyāsī pertence à ordem de vida renunciada, mas sua renúncia só será bem-sucedida quando sua energia for empregada a serviço do Senhor, com muita austeridade. Por isso, aqui se diz que bhaktiṁ kurvanti ye dṛḍhām. Aquele que se ocupa seriamente a serviço do Senhor e está na ordem de vida renunciada é um sādhu. Sādhu é aquele que abandonou toda a responsabilidade com sociedade, família e humanitarismo mundano, simplesmente em nome do serviço ao Senhor. Logo que nasce neste mundo, uma pessoa tem muitas responsabilidades e obrigações – com o público, com os semideuses, com os grandes sábios, com os seres vivos em geral, com os pais, com os antepassados da família e com muitos outros. Ao abandonar todas essas obrigações pela causa do serviço ao Senhor Supremo, ela não é punida por tal renúncia à obrigação. Porém, se uma pessoa renunciar todas essas obrigações em nome do gozo dos sentidos, ela será castigada pela lei da natureza.
Kṛṣṇa e todos os śāstras dizem que nossa única obrigação é para com a Suprema Personalidade de Deus. Se prestamos serviço a Ele, não temos mais obrigação para com ninguém. Estamos livres. Como isso é possível? Mediante o poder do Senhor todo-poderoso. Um homem pode ser condenado à morte, mas, se o presidente ou rei o perdoa, ele está salvo. A instrução final que Kṛṣṇa dá na Bhagavad-gītā é que dediquemos tudo a Ele. Podemos sacrificar nossa vida, riqueza e inteligência, e isso se chama yajña. Todos têm alguma inteligência, e todos usam essa inteligência de uma forma ou outra. Em geral, as pessoas utilizam a inteligência tentando desfrutar os sentidos, mas até uma formiga faz isso. Devemos satisfazer não os nossos sentidos, mas os sentidos de Kṛṣṇa. Nós, então, seremos perfeitos.
Temos de aprender este processo purificatório com um sādhu. Quanto mais tentamos satisfazer nossos sentidos, mais nos apegamos ao mundo material. Podemos servir ao sādhu ou a Kṛṣṇa. O sādhu é o representante de Kṛṣṇa. Ele nunca diz: “Sirva-me”, mas sim: “Sirva a Kṛṣṇa.” Logo, temos de nos aproximar de Kṛṣṇa por intermédio do sādhu.
O ācārya vaiṣṇava Narottama Dāsa Ṭhākura confirma isso em sua canção: chāḍiyā vaiṣṇava-sevā nistāra peyeche kebā. Não podemos nos aproximar diretamente de Kṛṣṇa; temos de ir através do meio transparente, o representante de Kṛṣṇa. Aqueles que buscam vantagens materiais vão a diferentes semideuses. Eles aceitam favores de Śiva, Durgā, Kālī, Gaṇeśa, Sūrya e outros. Entretanto, foi a deusa Pārvatī quem perguntou ao senhor Śiva: “Qual a melhor forma de adoração?” O senhor Śiva aconselhou que ārādhanānāṁ sarveṣāṁ viṣṇor ārādhanaṁ param: “Minha querida Pārvatī, dentre todas as formas de adoração, a adoração a Viṣṇu é a melhor.” Então, ele disse ainda que tasmāt parataraṁ devi tadīyānāṁ samarcanam: “E melhor que adoração a Viṣṇu é a adoração ao vaiṣṇava, o devoto.” (Padma Purāṇa)
Vida espiritual começa quando nos associamos com um devoto, um sādhu. Ninguém pode progredir nem um centímetro sem a misericórdia de um sādhu. Prahlāda Mahārāja também confirma este ponto:
naiṣāṁ matis tāvad urukramāṅghriṁ
spṛśaty anarthāpagamo yad-arthaḥ
mahīyasāṁ pāda-rajo-’bhiṣekaṁ
niṣkiñcanānāṁ na vṛṇīta yāvat
“Enquanto não untarem seus corpos com a poeira dos pés de lótus de um vaiṣṇava inteiramente livre da contaminação material, as pessoas muito propensas à vida materialista não podem se apegar aos pés de lótus do Senhor, cujas atividades incomuns justificam o fato de Ele ser glorificado. Apenas quem se torna consciente de Kṛṣṇa e, nesse estado de espírito, refugia-se nos pés de lótus do Senhor pode livrar-se da contaminação material.” (Śrīmad-Bhāgavatam 7.5.32) Hiraṇyakaśipu perguntou a Prahlāda Mahārāja: “Meu querido filho Prahlāda, como você progrediu tanto em consciência de Kṛṣṇa?” Embora fosse um demônio, Hiraṇyakaśipu era indagador. Prahlāda Mahārāja respondeu: “Meu querido pai, ó melhor dentre os asuras, só se pode desenvolver consciência de Kṛṣṇa através das instruções do guru. Ninguém pode obtê-la através de mera especulação. Os homens comuns não sabem que a meta última de todos é retornar a Viṣṇu.” No mundo material, as pessoas vivem com a esperança de que algo aconteça. Elas têm esperanças e mais esperanças, mas essas nunca se realizam. Todos estão tentando ser felizes através de ajustes externos, mas não sabem que ninguém pode lograr a felicidade sem se aproximar de Deus. Eles pensam: “Primeiro preciso me preocupar com meu próprio interesse.” Tudo bem quanto a isso, mas qual é esse interesse? Isso eles não sabem. Todos pensam que, através de ajustes materiais, serão felizes e, em virtude disso, vivem tentando concretizá-los individual, coletiva ou nacionalmente. De qualquer modo, isso não é possível. Eles se frustrarão no final. Por que tentar um processo que malogrará no final? Por isso se diz que adānta-gobhir viśatāṁ tamisraṁ punaḥ punaś carvita-carvaṇānām. (Śrīmad-Bhāgavatam 7.5.30) As pessoas estão se frustrando de muitas maneiras porque não conseguem controlar os sentidos. A única possibilidade de salvação para elas é Kṛṣṇa. Portanto, é dito neste verso que mayy ananyena bhāvena bhaktiṁ kurvanti ye dṛḍhām.
Prahlāda Mahārāja simplesmente pensava em Kṛṣṇa. Por causa dessa atitude, ele teve de se submeter a muitos problemas criados por seu pai. A natureza material não nos dará liberdade tão facilmente. Se nos fortalecemos o bastante para tentar agarrar os pés de lótus de Kṛṣṇa, māyā tentará nos manter em suas garras. Contudo, se alguém abandona tudo por Kṛṣṇa, māyā não pode fazer mais nada. O exemplo mais perfeito disso são as gopīs. Elas abandonaram tudo – família, prestígio e honra – apenas para seguir Kṛṣṇa. Essa é a perfeição mais elevada, mas isso não é possível para entidades vivas comuns. Devemos, entretanto, seguir os Gosvāmīs em sua determinação de adorar Kṛṣṇa.
Sanātana Gosvāmī era um importante ministro no governo de Hussain Shah, mas abandonou tudo para seguir Śrī Caitanya Mahāprabhu. Ele aceitou a vida de mendicante e dormia cada noite debaixo de uma árvore. Talvez alguém pergunte: “Depois de abandonar o desfrute material, como se pode viver?” Os Gosvāmīs viviam imersos no oceano dos transcendentais casos amorosos entre Kṛṣṇa e as gopīs. Já que esses eram seus únicos bens, eles podiam viver em completa paz. Não podemos simplesmente abandonar tudo. Ficaremos loucos se tentarmos abandonar tudo sem ter fé inabalável em Kṛṣṇa. Ainda assim, se conseguimos a associação de Kṛṣṇa, podemos abandonar facilmente nossas posições opulentas – nossa família, negócios e tudo mais. Entretanto, para isso é necessário sādhu-saṅga, associação com um sādhu, um devoto. Se nos associamos com um devoto, enfim chegará o dia em que conseguiremos abandonar tudo e nos tornar pessoas liberadas, aptas a voltar ao lar, a voltar ao Supremo.
No momento, estamos apegados ao desfrute material, e Kṛṣṇa chega até mesmo a nos dar oportunidade de satisfazermos os sentidos. Ele nos deixa desfrutar ao máximo, visto que, afinal, viemos para este mundo material de maneira a desfrutar o gozo dos sentidos. Todavia, isso se chama māyā, ilusão. Não é desfrute verdadeiro, mas mera luta. Quando alguém compreende que está simplesmente lutando vida após vida e que não existe verdadeiro desfrute no mundo material, ele se torna devoto de Kṛṣṇa. Essa realização requer conhecimento, e tal conhecimento é obtido através da associação com um sādhu, um devoto.
O Senhor Kapila explica melhor no próximo verso como libertar-se dessa luta contra a existência material.
Verso 23
mad-āśrayāḥ kathā mṛṣṭāḥ
śṛṇvanti kathayanti ca
tapanti vividhās tāpā
naitān mad-gata-cetasaḥ
Ocupados constantemente em cantar e ouvir sobre Mim, a Suprema Personalidade de Deus, os sādhus não padecem de sofrimentos materiais porque estão sempre saturados de pensamentos relativos a Meus passatempos e atividades.
SIGNIFICADO—Há um sem-fim de sofrimentos na existência material – aqueles pertinentes ao corpo e à mente, aqueles impostos por outras entidades vivas e aqueles impostos por distúrbios naturais. Mas o sādhu não se deixa perturbar por tais condições de sofrimento porque sua mente está sempre saturada de consciência de Kṛṣṇa e, assim, ele não gosta de falar sobre nada além das atividades do Senhor. Mahārāja Ambarīṣa não falava de nada além dos passatempos do Senhor. Vacāṁsi vaikuṇṭha-guṇānuvarṇane. (Śrīmad-Bhāgavatam 9.4.18) Ele utilizava suas palavras apenas para glorificar a Suprema Personalidade de Deus. Os sādhus estão sempre interessados em ouvir sobre as atividades do Senhor ou de Seus devotos. Uma vez que estão saturados de consciência de Kṛṣṇa, eles se esquecem dos sofrimentos materiais. As almas condicionadas comuns, estando esquecidas das atividades do Senhor, vivem cheias de ansiedades e tribulações materiais. Por outro lado, uma vez que os devotos sempre se ocupam com os tópicos do Senhor, eles esquecem os sofrimentos da existência material.
Não há ninguém no mundo ocupado em afazeres mundanos que possa dizer francamente: “Eu não estou sofrendo.” Eu desafio qualquer um a dizer isso. Todos no mundo material estão sofrendo de uma maneira ou outra. Se não estão, por que há tanta propaganda de drogas? Na televisão, há sempre o anúncio de tranquilizantes e analgésicos, e, nos Estados Unidos e outros países ocidentais, eles são tão avançados que existem dezenas de comprimidos para todo tipo de dor. Logo, deve haver algum sofrimento. Na verdade, qualquer um que tenha um corpo material tem de sofrer. Existem três tipos de sofrimentos no mundo material: ādhyātmika, ādhibhautika e ādhidaivika. Ādhyātmika se refere ao corpo e à mente. Hoje, eu tive dor de cabeça ou um pouco de dor nas costas, ou minha mente não estava muito tranquila. Esses sofrimentos chamam-se ādhyātmika. Há outras formas de sofrimento chamadas ādhibhautika, que são sofrimentos impostos por outras entidades vivas. Além desses, existem sofrimentos chamados ādhidaivika, sobre os quais não temos controle algum. Esses são causados pelos semideuses ou pela natureza, e incluem fome, peste, enchentes, calor ou frio excessivo, terremotos, incêndio e assim por diante. No entanto, pensamos que somos muito felizes neste mundo material, embora haja, além dessas três classes de sofrimentos supracitados, ainda mais tormentos, a saber: nascimento, velhice, doença e morte. Então, onde está nossa felicidade? Porque estamos sob a influência de māyā, pensamos que nossa posição é muito segura. Estamos pensando: “Vamos desfrutar a vida”, mas que tipo de desfrute é esse?
Evidentemente, temos de tolerar o sofrimento. Umas das características do sādhu é a tolerância. Todos são tolerantes até certo ponto, mas a tolerância de um sādhu e a de um homem comum são diferentes. Isso porque o sādhu sabe que não é o corpo. Segundo uma canção bengali vaiṣṇava: deha-smṛti nāhi yāra saṁsāra-bandhana kāhāḥ tāra.
Se compreendermos adequadamente que não somos o corpo, apesar de sofrermos, não sentiremos o sofrimento de forma tão aguda. Por exemplo, se alguém pensa: “Este é meu carro”, e é muito apegado à sua posse, ele sofre mais quando o carro está quebrado do que uma pessoa que pensa: “Ele pode ser consertado, ou posso simplesmente viver sem ele.” É uma questão de absorção mental. Porque se assemelha mais a um animal, o materialista sofre mais. O devoto, por outro lado, aceita o conselho de Kṛṣṇa na Bhagavad-gītā (2.14):
mātrā-sparśās tu kaunteya
śītoṣṇa-sukha-duḥkha-dāḥ
āgamāpāyino ’nityās
tāṁs titikṣasva bhārata
“Ó filho de Kuntī, o aparecimento transitório de felicidade e aflição, e seu desaparecimento no devido tempo, são como o aparecimento e o desaparecimento das estações do inverno e do verão. Surgem da percepção sensorial, ó descendente de Bharata, e é preciso aprender a tolerá-los sem se perturbar.”
Sofremos no verão e sofremos no inverno. No verão, o fogo produz sofrimento, mas, no inverno, esse mesmo fogo é agradável. De igual modo, no inverno, a água causa sofrimento, mas no verão ela é agradável. A água e o fogo são os mesmos, mas ora são agradáveis, ora não. Isso se deve ao contato com a pele. Todos nós temos alguma “doença de pele”, que é o corpo, daí sofrermos. Visto que nos tornamos patifes dessa espécie, estamos pensando: “Eu sou este corpo.” De acordo com o sistema do āyurveda, o corpo é composto de três elementos materiais: kapha-pitta-vāyu. Quanto mais estivermos imersos na concepção corpórea, maior será nosso sofrimento.
Hoje em dia, há tantos “ismos” decorrentes da concepção corpórea de vida – nacionalismo, comunismo, socialismo e assim por diante. Em Calcutá, durante os conflitos entre hindus e muçulmanos, houve mais sofrimento porque todos estavam pensando: “sou hindu” ou “sou muçulmano”. Mas quem é avançado em consciência de Kṛṣṇa, não lutará de acordo com essas concepções. Alguém consciente de Kṛṣṇa sabe que não é nem hindu nem muçulmano, mas sim servo eterno de Kṛṣṇa. Porque as pessoas estão sendo educadas a pensarem cada vez mais que são o corpo, seu sofrimento também está aumentando. Se diminuirmos a concepção corpórea, o sofrimento também diminuirá. Aqueles que são conscientes de Kṛṣṇa, que vivem pensando em Kṛṣṇa dentro da própria mente e no âmago do coração, não sofrem tanto porque sabem que tudo que possam estar sofrendo deve-se ao desejo de Kṛṣṇa. Assim, dão boas-vindas ao sofrimento. Por exemplo, quando Kṛṣṇa estava partindo, a rainha Kuntī disse: “Meu querido Kṛṣṇa, quando estávamos em uma situação perigosa, sempre estavas presente como nosso amigo e conselheiro. Agora que estamos bem situados em nosso reino, estás partindo para Dvārakā. Isso não é bom. É melhor que soframos outra vez, para que possamos sempre lembrar de Ti.” Dessa maneira, às vezes o devoto dá boas-vindas ao sofrimento como uma oportunidade para se lembrar de Kṛṣṇa constantemente. Quando sofre, o devoto pensa: “Isto se deve a meus erros passados. Na realidade, eu deveria sofrer muito mais, porém, devido à graça de Kṛṣṇa, estou sofrendo apenas um pouco. Afinal, sofrimento e desfrute estão na mente.” Dessa maneira, o devoto não se deixa afetar demais pelo sofrimento, e essa é a diferença entre o devoto e o não-devoto.
Prahlāda Mahārāja, um menino de cinco anos, teve de passar por muito sofrimento nas mãos de seu pai, que o torturava pelo fato de aquele ser um devoto. O menino foi pisoteado por elefantes, atirado do cume de uma montanha, colocado em óleo fervente e jogado em um poço de serpentes, apesar do que permaneceu silencioso durante todas as provações. De modo semelhante, Haridāsa Ṭhākura, muçulmano de nascimento, era um devoto muito elevado que sempre cantava Hare Kṛṣṇa. Essa era seu único defeito. O Kazi muçulmano, contudo, o chamou e disse: “Você é um muçulmano, nascido de boa família muçulmana. Mesmo assim, você canta esse mantra hindu Hare Kṛṣṇa. Por que você faz isso?” Haridāsa Ṭhākura respondeu humildemente: “Meu caro senhor, há muitos hindus que se tornaram muçulmanos. Digamos que eu tenha me tornado hindu. O que há de errado nisso?” O Kazi ficou iradíssimo e ordenou que Haridāsa Ṭhākura fosse açoitado em vinte e duas praças. Isso, em outras palavras, queria dizer que ele devia ser espancado até a morte, mas, por ser um devoto muito avançado, ele, na verdade, não sentiu a dor. Embora o devoto às vezes tenha de sofrer, ele tolera o sofrimento. Ao mesmo tempo, ele é muito bondoso para as almas condicionadas e tenta elevá-las à consciência de Kṛṣṇa. Esse é um dos aspectos básicos da vida de um devoto. As pessoas sempre colocam um sādhu em dificuldades, mas ele não abandona sua tarefa, que é disseminar a consciência de Kṛṣṇa para que outros sejam felizes. Foi Prahlāda Mahārāja quem disse: “Meu Senhor, não estou sofrendo, pois conheço a arte de ser feliz.” Como isso acontece? “Pelo simples processo de ouvir e cantar sobre o Senhor, eu fico feliz.” Esse é o dever do devoto – ouvir e cantar sobre o Senhor. Isso é śravaṇaṁ kīrtanaṁ viṣṇoḥ smaraṇam. Agora esse śravaṇaṁ kīrtanam está acontecendo no mundo todo em virtude do movimento da consciência de Kṛṣṇa.
Mesmo na vida comum é possível absorver a mente de tal modo que ela não incomode um homem nem durante uma operação cirúrgica. Anos atrás, quando Stalin teve de se submeter a uma cirurgia, ele recusou o uso de clorofórmio. Se isso é possível até na vida materialista comum, o que se dizer, então, da vida espiritual? Deve-se manter a mente sempre absorta em consciência de Kṛṣṇa, pensando em Kṛṣṇa. É um preceito de Kṛṣṇa: “Sempre pense em Mim.” Os jovens europeus e americanos deste movimento da consciência de Kṛṣṇa estavam acostumados a muitos hábitos perniciosos desde o nascimento, mas agora eles os abandonaram. Muita gente pensa que é impossível viver sem sexo ilícito, intoxicação, consumo de carne e jogos de azar. Um marquês famoso disse a um de meus irmãos espirituais: “Por favor, façam-me um brāhmaṇa.” Meu irmão espiritual disse: “Sim, isso não é muito difícil. Simplesmente abandone estes maus hábitos – intoxicação, sexo ilícito, consumo de carne e jogos de azar. Você, então, pode se tornar um brāhmaṇa.” O marquês disse então: “Impossível! Esta é a nossa vida.” De fato, temos visto que, nos países ocidentais, homens idosos não conseguem abandonar esses maus hábitos, e por causa disso estão sofrendo, mas muitos rapazes e moças abandonaram esses hábitos e, por isso, estão livres de sofrimento. Isso se deve à consciência de Kṛṣṇa.
Este processo está aberto a todos. Todos ouviram falar sobre a Bhagavad-gītā. Podemos alcançar a perfeição simplesmente por seguir as instruções dadas naquele livro. Não é necessário abandonar nossas responsabilidades. Mahārāja Ambarīṣa foi um grande imperador que administrava seu reino, ainda assim, ao mesmo tempo, ele só falava sobre Kṛṣṇa. Caitanya Mahāprabhu pediu a Seus devotos que só falassem sobre Kṛṣṇa. Se falarmos unicamente sobre Kṛṣṇa e ouvirmos unicamente sobre Ele, chegará o dia em que não sofreremos mais. O Vedānta-sūtra chama essa plataforma de ānanda-mayo ’bhyāsāt. A entidade viva e Kṛṣṇa são ambos ānanda-maya, transcendentalmente bem-aventurados. Nesta plataforma, não existe possibilidade de sofrimento material. Não é questão de exibir algumas mágicas. A maior mágica é libertar-se do sofrimento, e essa é a liberdade do devoto. Quando sentimos prazer em ouvir sobre Kṛṣṇa e falar sobre Ele, devemos saber que estamos avançando no caminho da perfeição. Nesse momento, o sofrimento material não será mais sentido. Esse é o efeito prático de se prestar serviço devocional, efeito este que o Senhor Kapila está ressaltando para Sua mãe.
Verso 24
ta ete sādhavaḥ sādhvi
sarva-saṅga-vivarjitāḥ
saṅgas teṣv atha te prārthyaḥ
saṅga-doṣa-harā hi te
Ó Minha mãe, ó virtuosa senhora, são estas as qualidades dos grandes devotos que estão livres de todo o apego. Deves tratar de apegar-te a esses homens santos, pois isso neutraliza os efeitos perniciosos do apego material.
SIGNIFICADO—Nesta passagem, Kapila Muni aconselha a Sua mãe, Devahūti, que, se ela quiser livrar-se do apego material, deverá aumentar seu apego aos sādhus, ou devotos que estão completamente livres de todo o apego material. Na Bhagavad-gītā (15.5), declara-se que nirmāna-mohā jita-saṅga-doṣāḥ. Isso se refere àquele que está totalmente livre da vaidosa condição material de considerar-se possuidor de algo. Pode ser que uma pessoa seja materialmente muito rica, opulenta ou respeitável, mas, se ela quiser realmente transferir-se ao reino espiritual, de volta ao lar, de volta ao Supremo, terá de livrar-se da orgulhosa condição de posse material, por ser essa uma posição falsa.
A palavra moha usada aqui significa o falso entendimento de que se é rico ou pobre. Neste mundo material, o conceito de ser muito rico ou muito pobre – ou qualquer consciência semelhante em relação com a existência material – é falso, pois o próprio corpo é falso, ou temporário. Uma alma pura que está disposta a libertar-se deste enredamento material precisa, antes de tudo, livrar-se da associação com os três modos da natureza. Atualmente, nossa consciência está poluída devido ao contato com os três modos da natureza; portanto, na Bhagavad-gītā, declara-se o mesmo princípio. Ali se aconselha que jita-saṅga-doṣāḥ: devemos livrar-nos da associação contaminada dos três modos da natureza material. Também aqui, no Śrīmad-Bhāgavatam, confirma-se isto: o devoto puro, que está se preparando para transferir-se ao reino espiritual, também está livre da associação com os três modos da natureza material. Temos de procurar a associação de tais devotos. Por essa razão, demos início à Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna. Há na sociedade humana muitas associações comerciais e científicas para desenvolver um determinado tipo de educação ou consciência, mas não há associação que nos ajude a livrar-nos do contato com a matéria. Se alguém deseja livrar-se desta contaminação material, então tem de buscar a associação dos devotos, onde a consciência de Kṛṣṇa seja exclusivamente cultivada. Ele pode, deste modo, libertar-se de todo o contato com a matéria.
Visto que o devoto está livre de toda a associação material contaminada, ele não é afetado pelos sofrimentos da existência material. Embora pareça estar no mundo material, ele não é afetado pelos sofrimentos do mundo material. Como isso é possível? Há um ótimo exemplo disso nas atividades da gata. A gata carrega seus filhotes na boca, e, quando mata um rato, ela também carrega a presa na boca. Assim, ambos são carregados na boca da gata, mas sob condições diferentes. O filhote sente conforto na boca da mãe, ao passo que o rato, quando é carregado na boca da gata, sente o sopro da morte. Analogamente, aqueles que são sādhus, ou devotos ocupados em consciência de Kṛṣṇa no transcendental serviço ao Senhor, não sentem a contaminação dos sofrimentos materiais, ao passo que aqueles que não são devotos em consciência de Kṛṣṇa sentem realmente os sofrimentos da existência material. Devemos, portanto, abandonar a companhia de pessoas materialistas e buscar a companhia de pessoas ocupadas em consciência de Kṛṣṇa, e, através de tal associação, recebermos o benefício do avanço espiritual. Através das palavras e instruções dos devotos, seremos capazes de cortar nosso apego à existência material.
Nesta era de Kali, a era atual, os perigosos modos de rajo-guṇa e tamo-guṇa, paixão e ignorância, são muito proeminentes. Quase todos nesta era estão contaminados pelo desejo luxurioso, pela cobiça e pela ignorância. Os śāstras afirmam que, nesta era de Kali, praticamente inexiste sattva-guṇa, o modo da bondade.
O décimo quarto capítulo da Bhagavad-gītā explica perfeitamente como é possível livrar-se da contaminação dos modos materiais. Kapiladeva, agora, aconselha: “Mãe, se a senhora deseja libertar-se da contaminação da natureza material, deve se associar com um sādhu.” Apego aos modos materiais ocasiona o cativeiro. Se desejamos nos libertar desse cativeiro, temos de transferir nosso apego para um sādhu.
Na verdade, todos estão apegados a alguma coisa. Ninguém pode dizer que está livre do apego. As filosofias māyāvāda e budista nos aconselham a que nos desapeguemos, mas isso não é possível. A criança está apegada a brincar de muitas maneiras, mas, aos poucos, devem-se transferir seus apegos para a leitura e para a educação escolar. Não é uma questão de acabar com o apego, mas sim de transferi-lo. Se alguém apenas tenta acabar com o apego, ficará louco. Deve-se dar um substituto para o apego. Por exemplo, dizemos a nossos discípulos que parem de comer carne, mas como é que se para de comer carne? No lugar da carne, estamos oferecendo kacaurīs, rasagullās e muitas outras preparações deliciosas. Dessa maneira, o desapego é possível. Antes de qualquer coisa, anule o apego inferior e, depois, proporcione um apego superior. Está fora de cogitação forçar uma entidade viva. Deve-se fazer isso pouco a pouco. Uma criança pode ter algum apego, mas, através deste sistema de substituir o apego, seu apego é transformado. Analogamente, nossa consciência, de uma forma ou outra, contaminou-se. Agora ela tem de ser purificada. A consciência de Kṛṣṇa, então, despertará automaticamente.
A consciência de Kṛṣṇa é nossa consciência original, mas, de alguma maneira, ela foi encoberta pelo apego material. A questão é como abandonar o apego material e apegar-se a Kṛṣṇa. O processo é sādhu-saṅga, associação com um sādhu. Temos muitos apegos neste mundo material, mas não podemos anular esses apegos. Temos apenas de purificá-los. Talvez alguém diga que, se o olho está doente, deve-se arrancá-lo, mas isso não é tratamento. Tratamento é eliminar a doença. De alguma maneira, alguém contrai catarata, mas, se a catarata é removida, recupera-se a visão. Temos muitos desejos, mas é preciso dirigir esses desejos ao serviço a Kṛṣṇa. Por exemplo, podemos estar muito apegados a ganhar dinheiro, de modo que Kṛṣṇa diz: “Sim, continue com seus negócios. Não há problema algum. Simplesmente dê os resultados para Mim.” Como se declara na Bhagavad-gītā (9.27):
yat karoṣi yad aśnāsi
yaj juhoṣi dadāsi yat
yat tapasyasi kaunteya
tat kuruṣva mad-arpaṇam
“Tudo o que fizeres, tudo o que comeres, tudo o que ofereceres ou deres, e quaisquer austeridades que executares – faze isso, ó filho de Kuntī, como uma oferenda a Mim.”
Esse é o começo de bhakti-yoga. Se fazemos negócios e ganhamos dinheiro, devemos gastá-lo para Kṛṣṇa. Essa é uma forma de bhakti. Outro exemplo vívido é Arjuna, que era um guerreiro. Por lutar, ele se tornou um devoto. Ele não se tornou um devoto por cantar Hare Kṛṣṇa, mas por lutar na Batalha de Kurukṣetra. Kṛṣṇa o aconselhou a lutar, mas, porque era um vaiṣṇava, Arjuna estava relutante a princípio. Um vaiṣṇava não gosta de matar ninguém, mas, se Kṛṣṇa manda que ele faça isso, ele tem de lutar. Ele não luta por sua própria vontade, pois o instinto natural do vaiṣṇava é o de não prejudicar ninguém. Entretanto, ao saber que Kṛṣṇa quer que ele faça algo, o vaiṣṇava não se importa com suas próprias considerações. De qualquer modo, todos têm algum tipo específico de dever ou ocupação. Se pudermos dedicar nossa ocupação ao serviço de Kṛṣṇa, nossa vida será perfeita. O Śrīmad-Bhāgavatam (1.2.13) também corrobora essa instrução:
ataḥ pumbhir dvija-śreṣṭhā
varṇāśrama-vibhāgaśaḥ
sv-anuṣṭhitasya dharmasya
saṁsiddhir hari-toṣaṇam
“Ó melhores entre os duas vezes nascidos! Conclui-se, portanto, que a máxima perfeição que se pode alcançar através do cumprimento dos deveres prescritos para nossa própria ocupação, de acordo com as divisões de castas e ordens de vida, é satisfazer a Personalidade de Deus.”
Outrora, o varṇāśrama-dharma era muito proeminente, e todos tinham um dever específico de acordo com sua posição na sociedade. Agora há mais variedade de deveres ocupacionais, mas não importa se alguém é engenheiro, médico ou qualquer outra coisa. Apenas tente servir a Kṛṣṇa através dos resultados do trabalho. Isso é bhakti. A filosofia deste movimento da consciência de Kṛṣṇa não é fazer com que as pessoas abandonem suas ocupações. O indivíduo deve permanecer em sua ocupação, mas ele jamais deve se esquecer de Kṛṣṇa. Kṛṣṇa nos aconselha a sermos sempre conscientes de Kṛṣṇa, e devemos pensar sempre que estamos agindo para Kṛṣṇa. É claro que devemos trabalhar sob a ordem de Kṛṣṇa ou de Seu representante, e não caprichosamente. Se fazemos alguma bobagem e pensamos: “Estou fazendo isto para Kṛṣṇa”, semelhante ação não será aceita. Deve-se avaliar o trabalho através da aceitação de Kṛṣṇa ou do representante de Kṛṣṇa. Arjuna não lutou sem a ordem de Kṛṣṇa; logo, também temos de receber nossas ordens. Podemos dizer: “Não posso encontrar Kṛṣṇa. Como posso seguir Sua ordem?” O papel do sādhu é transmitir as ordens de Kṛṣṇa. Já que o sādhu é o representante de Kṛṣṇa, Kapiladeva aconselha a Sua mãe que se associe com os sādhus.
Já descrevemos o que identifica um sādhu e explicamos que se deve aceitar um sādhu em virtude de suas características. Não podemos aceitar qualquer um que apareça e diga: “Sou um sādhu.” As características do sādhu devem estar presentes nele. Da mesma maneira, não podemos aceitar qualquer um que apareça e diga: “Sou uma encarnação de Deus.” As características de Deus estão nos śāstras. Sādhu-saṅga, associação com um sādhu, é muito essencial na consciência de Kṛṣṇa. O mundo inteiro está sofrendo devido à contaminação de tamo-guṇa e rajo-guṇa. O sādhu ensina como se pode permanecer puro em sattva-guṇa através da veracidade, limpeza, controle da mente e dos sentidos, simplicidade, tolerância, fé plena e conhecimento. Essas são algumas das características de sattva-guṇa.
Em vez de pensar: “A menos que eu beba uma cerveja, ficarei louco”, devo pensar: “A menos que eu me associe com um sādhu, ficarei louco.” Quando pensarmos assim, seremos liberados. Caitanya Mahāprabhu disse que desejava que cada vila do mundo fosse um centro da consciência de Kṛṣṇa para que as pessoas pudessem tirar proveito da companhia dos sādhus e se tornassem sādhus igualmente. Essa é a missão deste movimento da consciência de Kṛṣṇa. Temos apenas de nos submeter a alguma penitência voluntária no começo. Pode ser um pouco doloroso no começo abster-se de sexo ilícito, intoxicação, consumo de carne e jogos de azar, mas é necessário ser tolerante. Para nos curarmos de uma doença, temos de concordar em nos submeter a uma intervenção cirúrgica. Embora a operação possa ser muito dolorosa, temos de tolerá-la. Isso se chama titikṣavaḥ. Ao mesmo tempo, devemos ser kāruṇikāḥ, isto é, temos de ter compaixão das almas caídas, indo de cidade em cidade para iluminar os outros em consciência de Kṛṣṇa. Esse é o dever do sādhu. Os pregadores são superiores àqueles que vão para os Himalaias meditar. É bom ir para os Himalaias meditar em prol do próprio benefício, mas aqueles que se submetem a muitas dificuldades para pregar são superiores. Eles de fato estão lutando por Kṛṣṇa e decerto são mais compassivos. Os sādhus que deixam Vṛndāvana para lutar no mundo, para difundir a consciência de Kṛṣṇa, são sādhus superiores. Essa é a opinião de Kṛṣṇa na Bhagavad-gītā (18.68-69):
ya idaṁ paramaṁ guhyaṁ
mad-bhakteṣv abhidhāsyati
bhaktiṁ mayi parāṁ kṛtvā
mām evaiṣyaty asaṁśayaḥ
na ca tasmān manuṣyeṣu
kaścin me priya-kṛttamaḥ
bhavitā na ca me tasmād
anyaḥ priya-taro bhuvi
“Para aquele que explica aos devotos este segredo supremo, o serviço devocional puro está garantido, e, no final, ele voltará a Mim. Não há neste mundo servo que Me seja mais querido do que ele, tampouco, em algum momento, haverá alguém mais querido.”
Se queremos ser rapidamente reconhecidos por Kṛṣṇa, devemos ser pregadores. Essa também é a mensagem de Śrī Caitanya Mahāprabhu. Não é que se deva permanecer na Índia; ao contrário, o sādhu deve viajar pelo mundo todo para pregar a consciência de Kṛṣṇa. O sādhu é suhṛt; ele é o benquerente de todos. Isso não quer dizer que ele seja um benquerente de um nacionalista indiano ou algo assim. Não, ele é um benquerente até dos cães e gatos. O devoto deseja beneficiar os cães e gatos dando-lhes prasāda. Certa vez, quando os devotos da Bengala estavam indo ver Caitanya Mahāprabhu, um cão começou a segui-los, e o líder do grupo, Śivānanda Sena, passou a dar-lhe prasāda. Quando tiveram de cruzar um rio, o barqueiro não queria levar o cão, mas Śivānanda Sena deu-lhe mais dinheiro e disse: “Por favor, leve este cão. Ele é um vaiṣṇava, pois se uniu a nós. Como podemos deixá-lo para trás? Na verdade, o próprio Caitanya Mahāprabhu deu um pouco de Sua comida ao cão, em consequência do que este foi para Vaikuṇṭha.
O sādhu não é apenas um benquerente de todos, como também não é inimigo de ninguém. Ele também é śānta, pacífico. Essas são as características preliminares de um sādhu. Ele não é apegado a ninguém exceto Kṛṣṇa. Mayy ananyena bhāvena. Esses são os aspectos internos e externos de um devoto. O devoto também respeita os semideuses, pois conhece a posição deles em relação a Kṛṣṇa. Na Brahma-saṁhitā (5.44), a deusa Durgā é adorada como a energia externa, ou potência, de Kṛṣṇa.
sṛṣṭi-sthiti-pralaya-sādhana-śaktir ekā
chāyeva yasya bhuvanāni bibharti durgā
icchānurūpam api yasya ca ceṣṭate sā
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi
“A potência externa, māyā, que possui a natureza da sombra da potência espiritual (cit), é adorada por todos como Durgā, a agente criadora, preservadora e destruidora deste mundo material. Adoro Govinda, o Senhor primordial, a quem Durgā obedece.”
A deusa Durgā é tão poderosa que pode criar, manter e aniquilar. Entretanto, não pode agir independentemente de Kṛṣṇa. Ela é como a sombra de Kṛṣṇa. O sādhu sabe que prakṛti, a natureza, está agindo sob a orientação de Kṛṣṇa. Assim como um policial sabe que não está trabalhando independentemente, mas sob as ordens do governo. Esse conhecimento é necessário para que o policial, que tem algum poder, não pense que se tornou Deus. Deus não é tão barato. Deus tem inúmeras energias, e uma dessas energias é Durgā. Não é que ela seja suprema, pois existem muitos milhões de Durgās, assim como existem muitos milhões de Śivas e milhões de universos. Apesar de existirem milhões de semideuses, Deus é um. Não existem milhões de Deuses. Evidentemente, Deus pode expandir-Se em milhões de formas, mas isso é diferente. O devoto oferece respeitos aos semideuses por serem assistentes da Suprema Personalidade de Deus, e não por serem o poder supremo. Quem não conhece Deus como Ele é considera que os semideuses são supremos. Tais pessoas são pouco inteligentes. O devoto oferece respeitos aos semideuses, mas sabe que o Senhor Supremo é Kṛṣṇa. Kṛṣṇas tu bhagavān svayam. Na verdade, o sādhu, o vaiṣṇava, oferece respeitos a todos e está pronto para abandonar parentes e tudo o mais por Kṛṣṇa. O sādhu sente prazer exclusivamente em ouvir sobre Kṛṣṇa e falar sobre Ele.
Kṛṣṇa desempenha muitos passatempos. Ele luta com demônios e depois os mata, realiza Seus passatempos com as gopīs. Ele atua como um vaqueirinho em Vṛndāvana e como o rei de Dvārakā. Há muito livros sobre Kṛṣṇa, kṛṣṇa-kathā, e este movimento da consciência de Kṛṣṇa já publicou muitos deles. Além da Bhagavad-gītā, que foi falada por Kṛṣṇa, podemos ler outros livros. Dessa maneira, qualquer um pode aprender a arte de se tornar um sādhu. Pelo simples fato de ouvir sobre Kṛṣṇa e falar sobre Ele, lograremos alívio imediato do sofrimento desta condição material.
Como se declara neste verso:
ta ete sādhavaḥ sādhvi
sarva-saṅga-vivarjitāḥ
Essas características são visíveis quando a pessoa não tem mais apegos materiais. O sādhu não se considera hindu, muçulmano, cristão, americano, indiano ou qualquer outra coisa. Ele simplesmente pensa: “Sou servo de Kṛṣṇa.” Śrī Caitanya Mahāprabhu disse: “Não sou brāhmaṇa, kṣatriya, vaiśya, śūdra, brahmacārī, gṛhastha, vānaprastha nem sannyāsī. Não passo de servo do servo do servo de Kṛṣṇa.” A única coisa necessária é aprender este processo para assim prestar o melhor serviço à humanidade.