Capítulo 12
Associação com o Senhor através da Audição
Versos 25 e 26
satāṁ prasaṅgān mama vīrya-saṁvido
bhavanti hṛt-karṇa-rasāyanāḥ kathāḥ
taj joṣaṇād āśv apavarga-vartmani
śraddhā ratir bhaktir anukramiṣyati
bhaktyā pumāñ jāta-virāga aindriyād
dṛṣṭa-śrutān mad-racanānucintayā
cittasya yatto grahaṇe yoga-yukto
yatiṣyate ṛjubhir yoga-mārgaiḥ
Na companhia de devotos puros, a conversa sobre os passatempos e as atividades da Suprema Personalidade de Deus é muito agradável e satisfatória ao ouvido e ao coração. Aquele que cultiva tal conhecimento avança gradualmente no caminho da liberação e, em seguida, se libera e sua atração se torna fixa. Então, começam a verdadeira devoção e o serviço devocional.
Estando assim ocupado conscientemente em serviço devocional na companhia dos devotos, ele perde o gosto pelo gozo dos sentidos, tanto neste mundo quanto no próximo, pensando constantemente nas atividades do Senhor. Esse processo de consciência de Kṛṣṇa é o processo mais fácil de poder místico; quando alguém se situa realmente nesse caminho do serviço devocional, ele é capaz de controlar a mente.
SIGNIFICADO—Aqui é descrito o processo para se avançar em consciência de Kṛṣṇa e em serviço devocional. O primeiro passo é buscar a companhia de pessoas que sejam conscientes de Kṛṣṇa e que se ocupem em serviço devocional. Sem tal companhia, ninguém pode avançar. Com o simples conhecimento teórico ou o simples estudo, ninguém pode fazer nenhum avanço apreciável. É preciso abandonar a companhia de pessoas materialistas e buscar a companhia dos devotos, pois, sem a companhia dos devotos, ninguém pode entender as atividades do Senhor. Em geral, as pessoas são persuadidas ao aspecto impessoal da Verdade Absoluta. Por não se associarem com os devotos, elas não podem entender que a Verdade Absoluta possa ser uma pessoa e ter atividades pessoais. Esse é um assunto muito difícil, e, a menos que se tenha compreensão pessoal da Verdade Absoluta, não há significado para a devoção. Não se pode oferecer serviço ou devoção a algo impessoal. Tem-se que prestar serviço a alguma pessoa. Os não-devotos não podem apreciar a consciência de Kṛṣṇa. Lendo o Śrīmad-Bhāgavatam ou qualquer outra escritura védica em que se descrevam as atividades do Senhor, eles pensam que essas atividades são narrações fictícias, porque a vida espiritual não lhes é explicada de maneira correta. Para entendermos as atividades pessoais do Senhor, precisamos buscar a companhia dos devotos, e, em tal companhia, ao contemplarmos e tentarmos entender as atividades transcendentais do Senhor, o caminho da liberação se abre para nós, e nos libertamos. Aquele que tem fé firme na Suprema Personalidade de Deus torna-se fixo, e sua atração por se associar com o Senhor e os devotos aumenta. Associar-se com os devotos significa associar-se com o Senhor. O devoto que estabelece essa associação desenvolve a consciência para prestar serviço ao Senhor, e então, situando-se na posição transcendental do serviço devocional, ele se torna perfeito gradualmente.
Todas as escrituras encorajam as pessoas a agir de maneira piedosa para que possam desfrutar do gozo dos sentidos, não somente nesta vida, mas também na próxima. Por exemplo, promete-se promoção ao reino celestial dos planetas superiores em troca de atividades fruitivas. Mas o devoto que se associa com devotos prefere contemplar as atividades do Senhor – como Ele cria este universo, como mantém, como a criação é dissolvida e como os passatempos do Senhor acontecem no reino espiritual. Há textos completos que descrevem essas atividades do Senhor, especialmente a Bhagavad-gītā, a Brahma-saṁhitā e o Śrīmad-Bhāgavatam. O devoto sincero que se associa com devotos obtém a oportunidade de ouvir e contemplar este tema dos passatempos do Senhor, e o resultado é que ele perde o gosto pela suposta felicidade neste ou naquele mundo, no céu ou em outros planetas. Os devotos estão simplesmente interessados em ser transferidos à associação pessoal com o Senhor; eles não sentem mais atração pela felicidade falsa e temporária. Essa é a posição de quem é yoga-yukta. Aquele que se fixa em poder místico não se deixa perturbar pelo encanto deste ou daquele mundo; está interessado nos temas da compreensão espiritual ou da situação espiritual. Esta sublime situação é alcançada com muita facilidade pelo processo mais fácil: bhakti-yoga. Ṛjubhir yoga-mārgaiḥ. Usa-se aqui uma palavra muito adequada – ṛjubhiḥ, ou “muito fácil”. Há diferentes processos de yoga-mārga para se alcançar a perfeição do yoga, mas este processo, o serviço devocional ao Senhor, é o mais fácil. Não apenas é o processo mais fácil, como também seu resultado é sublime. Todos, portanto, devem tentar adotar este processo da consciência de Kṛṣṇa e alcançar a perfeição máxima da vida.
Sat significa “existência”, e asat significa “aquilo que não existe”, “o que é temporário”. O mundo material é asat; os Vedas, portanto, recomendam que asato mā sad gama: “Não permaneça neste mundo material.” Aqueles que estão interessados em vida materialista também são chamados de asat. Quando perguntaram a Caitanya Mahāprabhu como se comporta um vaiṣṇava, Ele respondeu que asat-saṅga-tyāga—ei vaiṣṇava-ācāra: “Em primeiro lugar, o devoto evita a companhia dos asat, aqueles que têm interesses materiais.” (Caitanya-caritāmṛta, Madhya 22.87) Fundamos este movimento da consciência de Kṛṣṇa a fim de evitarmos asat-saṅga, associação com aqueles que estão interessados em coisas materiais. Porque estamos nos associando com Kṛṣṇa, não desejamos falar sobre nada além de Kṛṣṇa. Todos estão interessados nisso ou naquilo, mas nós estamos exclusivamente interessados em nossa consciência de Kṛṣṇa. Aqueles que são asat se apegam demais ao gozo dos sentidos, e o ápice do gozo dos sentidos é o prazer sexual.
Além disso, Śrī Sanātana Gosvāmī, em seu Hari-bhakti-vilāsa, recomenda que não se deve ouvir a Bhagavad-gītā, os Purāṇas, o Śrīmad-Bhāgavatam ou qualquer hari-kathā da parte de quem não é um vaiṣṇava em seus atos. Isso quer dizer que não devemos ouvir essas escrituras védicas da parte de māyāvādīs, os quais, em verdade, não aceitam Kṛṣṇa como a Suprema Personalidade de Deus. Como alguém pode não aceitar Kṛṣṇa como o Senhor Supremo e, ainda assim, ousar explicar a Bhagavad-gītā? Nunca obteremos benefício algum ouvindo os comentários de tais pessoas. Devemos ouvir os devotos explicar a Bhagavad-gītā e o Śrīmad-Bhāgavatam. Podemos ouvir o comentário dos māyāvādīs sobre a Bhagavad-gītā por centenas de anos e nunca compreender Kṛṣṇa. Por isso, proíbe-se que os vaiṣṇavas ouçam aulas dadas por māyāvādīs.
Hari-kathā, conversas sobre Śrī Hari, ou Kṛṣṇa, são amṛta, néctar. Quem as ouve da fonte correta alcança amṛta (so ’mṛtatvāya kalpate). Mṛta significa “nascimento e morte”, e amṛta significa “cessação do nascimento e da morte”. Vida espiritual consiste em acabar com nascimento, velhice, doença e morte. Obter amṛta, néctar, significa livrar-se do nascimento e da morte, e esse é o verdadeiro objetivo da vida espiritual. O Senhor Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (7.16) que a vida espiritual começa quando alguém é piedoso:
catur-vidhā bhajante māṁ
janāḥ su-kṛtino ’rjuna
ārto jijñāsur arthārthī
jñānī ca bharatarṣabha
“Ó melhor entre os Bhāratas [Arjuna], quatro classes de homens piedosos passam a Me prestar serviço devocional – o aflito, o que deseja riquezas, o inquisitivo e o que busca conhecer o Absoluto.”
Se desejamos realmente nos tornar piedosos e desenvolver nossa vida devocional, temos de nos associar sempre com um sādhu. Nós, então, podemos adquirir algum apego por Kṛṣṇa. Quando conversamos sobre Kṛṣṇa com um sādhu, a conversa se torna muito agradável, e desenvolvemos algum gosto, que se denomina rasa, ou doçura. Rasa é o prazer que sentimos ao bebermos algo muito bom quando estamos sedentos. Kṛṣṇa nos instrui a pensarmos nEle enquanto bebemos água. Isso não é muito difícil. Kṛṣṇa também nos diz para pensarmos nEle ao vermos o brilho do Sol pela manhã. Por que, então, perguntamos se alguém pode nos mostrar Deus? Deus está Se mostrando. Por que, ao tentar vê-lO, fechamos os olhos? Ele diz: “Eu sou isto, e Eu sou aquilo.” Não é possível possamos ver Deus subitamente, senão que devemos nos qualificar para ver Deus através da associação com um sādhu. Hoje em dia, muita gente está interessada em receber um diploma universitário, mas a educação sem consciência de Deus não passa de uma expansão da influência de māyā. Porque o conhecimento é roubado pela ilusão, as universidades estão apenas apresentando obstáculos no caminho da consciência de Deus. O ser vivo já está iludido quando vem para o mundo material, e a dita educação avançada simplesmente aumenta sua ilusão. Tentando ser feliz nesta temporária vida material, o ser vivo esquece que é servo eterno de Kṛṣṇa. Mesmo que alguém se sinta feliz nesta vida temporária, sua felicidade é uma ilusão, pois ninguém pode permanecer e desfrutar dessa felicidade. Devem-se entender estes pontos na companhia dos devotos. O devoto conhece tudo, porque viu a Suprema Verdade Absoluta, Kṛṣṇa.
Qual é o objetivo do vedānta-darśana? Veda significa “conhecimento”, e anta significa “último”. Qual é esse conhecimento último? Na Bhagavad-gītā (15.15), Śrī Kṛṣṇa diz:
vedaiś ca sarvair aham eva vedyo
vedānta-kṛd veda-vid eva cāham
“Através de todos os Vedas, é a Mim que se deve conhecer. Na verdade, sou o compilador do Vedānta e aquele que conhece os Vedas.”
Se ouvimos Kṛṣṇa e compreendemos quem Ele é, podemos de fato compreender o Vedānta. Se não compreendemos Kṛṣṇa mas nos apresentamos como vedantistas, estamos apenas nos iludindo. Sem compreendermos Kṛṣṇa, não passamos de mūḍhas, tolos. As pessoas não sabem, mas, na verdade, quase todos neste mundo material são mais ou menos mūḍhas. Todos somos mūḍhas, pois, se não fôssemos mūḍhas, não teríamos vindo para o mundo material. De Brahmā à diminuta formiga, todos somos mūḍhas de diferentes categorias. Para nos tornarmos realmente eruditos, temos de nos associar com os devotos. Assim poderemos realmente saborear o kṛṣṇa-kathā. Quando falado entre devotos, o kṛṣṇa-kathā é agradável ao coração e ao ouvido. Isso exige um pouco de treino, e esse treino é dado pelos devotos. Devemos seguir os devotos em sua vida prática diária, em seu trabalho de rotina e em seu comportamento. Cultivo significa prática, e os grandes ācāryas nos deram uma rotina que podemos cultivar. Por exemplo, O Néctar da Devoção, de Śrīla Rūpa Gosvāmī, trata do cultivo do serviço devocional, e este livro, que já traduzimos, foi muito bem recebido em universidades europeias e americanas. O Bhakti-rasāmṛta-sindhu, O Néctar da Devoção, é a verdadeira ciência de bhakti. Bhakti não é sentimento: é uma grande ciência, e temos de aprendê-la cientificamente. Não é preciso esperar por outra vida para se cultivar o serviço devocional. Podemos ler O Néctar da Devoção, viver com os devotos, levantar bem cedo para comparecer ao maṅgala-ārati, estudar a literatura védica, tomar prasāda e pregar a consciência de Kṛṣṇa.
Māyā é muito forte, e começar a prestar serviço devocional é declarar guerra contra māyā. Alguns dos devotos deste movimento da consciência de Kṛṣṇa talvez caiam, mas qualquer coisa que tenham feito com sinceridade faz parte de seu crédito permanente. A Bhagavad-gītā confirma isso. Se uma pessoa presta um pouco de serviço devocional, ela não cai nas espécies inferiores, senão que volta a obter uma forma humana. Existem 8.400.000 espécies, mas o devoto caído tem a garantia de receber uma forma humana. Quem se torna consciente de Kṛṣṇa com certeza terá um bom nascimento na vida seguinte. Contudo, se alguém desenvolve plena consciência de Kṛṣṇa nesta vida, não nascerá de novo e voltará para Kṛṣṇa. Isso é o mais desejável. Por que correr o risco de nascer em uma família rica ou em uma família de brāhmaṇas? Na verdade, tal nascimento é muito arriscado, pois não existe garantia alguma. Em geral, aqueles que são ricos não se importam de modo algum com a consciência de Kṛṣṇa, e aqueles que nascem em famílias de brāhmaṇas ficam orgulhosos, pensando: “Sou um brāhmaṇa. Nasci em uma família muito nobre.” Esse tipo de pensamento provoca-lhes a queda. Afirma-se que o orgulho precede a queda. O vaiṣṇava é muito humilde por natureza.
Essas são as oportunidades que a alma condicionada recebe quando se torna um ser humano. Kṛṣṇa em pessoa está nos aconselhando a aceitarmos as oportunidades oferecidas pelo movimento da consciência de Kṛṣṇa. Devemos aceitá-las e não correr o risco de cometer suicídio espiritual.
Este é o processo para se compreender a Verdade Absoluta, a Pessoa Suprema, o Ser Supremo. No Absoluto, inexistem contradições. O nome, a forma, as atividades, a parafernália e os atributos de Kṛṣṇa são idênticos a Kṛṣṇa. Esse é o significado de absoluto. Não há diferença entre a forma de Kṛṣṇa e Kṛṣṇa. As mãos de Kṛṣṇa e as pernas de Kṛṣṇa não são diferentes. No mundo material, existe diferença entre a mão esquerda e a mão direita, entre o nariz e o ouvido, mas essas dualidades não existem em Kṛṣṇa. Esse é o significado de absoluto. Como se declara na Brahma-saṁhitā (5.32):
aṅgāni yasya sakalendriya-vṛttimanti
paśyanti pānti kalayanti ciraṁ jaganti
ānanda-cinmaya-sad-ujjvala-vigrahasya
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi
“Adoro Govinda, o Senhor primordial, cuja forma transcendental é plena de bem-aventurança, verdade e substancialidade e que é, portanto, plena do mais deslumbrante esplendor. Cada um dos membros desta forma transcendental possui, em si mesmo, as funções completamente desenvolvidas de todos os órgãos, e vê, mantém e manifesta eternamente infinitos universos, tanto espirituais quanto mundanos.” As diferentes partes de nosso corposservem para diferentes propósitos. Kṛṣṇa pode comer através dos olhos, ou Kṛṣṇa pode ir a qualquer parte apenas através do pensamento. O Absoluto é advaita. Não existe dualidade no Absoluto. Tudo é um.
Nossa doença material consiste no desejo de desfrutar dos sentidos. Dissemos antes que o avanço da civilização significa avanço no gozo dos sentidos, mas bhakti significa exatamente o oposto. Enquanto estamos interessados em gozo dos sentidos, bhakti está fora de cogitação. Temos de reduzir nossa tendência ao gozo dos sentidos e desenvolver nossas atividades devocionais. Dissemos também que cativeiro material significa aceitar um corpo e criar outro. Através da natureza, Kṛṣṇa nos dará completa liberdade para desfrutarmos. Atualmente nos países ocidentais, virou moda andar nu. Portanto, a natureza dará a essa gente a oportunidade de permanecerem nus como árvores por muitos anos. Por que recebemos corpos diferentes? Porque temos diferentes tendências para o gozo dos sentidos. Temos de detestar o gozo dos sentidos antes de começar nossa vida espiritual. Isso é possível através de bhakti. Apesar de estar além de nossa visão, Kṛṣṇa concorda em ser visto através do arcā-vigraha, a Deidade. Não devemos pensar que a Deidade é feita de pedra. Mesmo que seja pedra, devemos pensar que Kṛṣṇa fez-Se visível perante nós como uma pedra porque não podemos ver além da pedra. Isso é a misericórdia de Kṛṣṇa. Dado que nossos olhos e outros sentidos são imperfeitos, não podemos ver Kṛṣṇa presente em toda parte em Sua forma espiritual original. Por sermos imperfeitos, vemos diferenças entre elementos espirituais e materiais, mas Kṛṣṇa, sendo absoluto, não conhece tais distinções. Ele pode tornar-Se espiritual ou material, a Seu bel-prazer, e isso não faz a menor diferença para Ele. Por ser onipotente, Kṛṣṇa pode transformar matéria em espírito e espírito em matéria. Logo, não devemos pensar, como o fazem os ateus, que estamos adorando ídolos. Mesmo que fosse um ídolo, ainda assim seria Kṛṣṇa. Essa é a natureza absoluta de Kṛṣṇa. Mesmo que pensemos que a Deidade é pedra, um pedaço de metal ou madeira, continua sendo Kṛṣṇa. Essa compreensão requer bhakti de nossa parte. Se somos um pouco filosóficos e dados a reflexões, e se temos alguma inclinação por bhakti, podemos compreender que Kṛṣṇa está presente na pedra.
Na verdade, nada é diferente de Kṛṣṇa, pois tudo é uma energia de Kṛṣṇa. Os filósofos māyāvādīs dizem que, como tudo é Deus, a personalidade de Kṛṣṇa se acabou. Mas Kṛṣṇa é Kṛṣṇa e, ao mesmo tempo, Ele é tudo. Podemos compreender este conhecimento através de bhakti, e por nenhum outro processo. Quando o bhakta vê uma árvore, ele vê Kṛṣṇa. Como explica o Caitanya-caritāmṛta (Madhya 8.274):
sthāvara jaṅgama dekhe, nā dekhe tāra mūrti
sarvatra haya nija iṣṭa-deva-sphūrti
O devoto avançado não vê as entidades vivas como móveis ou inertes. Ele vê Kṛṣṇa. A Brahma-saṁhitā (5.38) também afirma isto:
premāñjana-cchurita-bhakti-vilocanena
santaḥ sadaiva hṛdayeṣu vilokayanti
Como seus olhos estão untados com o bálsamo da devoção, o devoto sempre vê Kṛṣṇa e nada mais. Ele vê Kṛṣṇa e a energia de Kṛṣṇa em toda parte. Por exemplo, se você ama seu filho, ao ver o sapato dele, você de imediato vê seu filho. Ou se você vê um brinquedo dele, você prontamente vê seu filho e escuta sua voz. Analogamente, se desenvolvemos verdadeiro amor por Kṛṣṇa, nada existe, exceto Kṛṣṇa. Quando nosso amor por Kṛṣṇa estiver realmente desenvolvido, em tudo o que virmos, veremos Kṛṣṇa.
A menos que sejamos avançados em kṛṣṇa-prema, amor por Kṛṣṇa, não podemos ver nem compreender. Através dos embotados sentidos materiais, não podemos nem mesmo compreender o nome de Kṛṣṇa. Todos sempre perguntam: “Por que vocês cantam Hare Kṛṣṇa?” Eles não podem compreender; embora a compreensão sobre Kṛṣṇa comece através de Seu nome. O nome de Kṛṣṇa e Kṛṣṇa não são diferentes, mas não podemos compreender isso por intermédio do intelecto. Temos de praticar o processo de cantar Hare Kṛṣṇa para compreender esse conhecimento. Quando avançarmos em serviço devocional e cantarmos o mahā-mantra Hare Kṛṣṇa sem cometer ofensas, compreenderemos que Kṛṣṇa e Seu nome não são diferentes.
Portanto, kṛṣṇa-bhakti começa com a língua, pois podemos utilizar a língua para cantar e para provar kṛṣṇa-prasāda. Podemos ser devotos de Kṛṣṇa dessa maneira. Ao vermos a Deidade de Kṛṣṇa no templo, devemos pensar que a Deidade é Kṛṣṇa. Assim, Kṛṣṇa permitiu que nós O víssemos e até mesmo O vestíssemos. Todavia, se pensamos no virāṭ-rūpa de Kṛṣṇa, Sua forma universal, o que podemos fazer? Como podemos vestir o virāṭ-rūpa? Suas muitas cabeças cobrem o céu, e não podemos sequer concebê-lO. Kṛṣṇa pode Se tornar maior do que o maior e menor do que o menor. Em razão disso, este verso declara que bhaktyā pumāñ jāta-virāga aindriyāt. Quanto mais servimos a Kṛṣṇa, oferecendo-Lhe alimentos para comer e belos trajes para vestir, tanto mais perdemos o interesse por nossos próprios corpos. No mundo material, todos estão muito ocupados em vestir-se com elegância a fim de se tornarem sexualmente atrativos, mas, se tentarmos vestir Kṛṣṇa com muita elegância, esqueceremos nossas roupas materiais. Se oferecermos alimentos deliciosos a Kṛṣṇa, esqueceremos nosso desejo de satisfazer a língua indo a este ou àquele restaurante.
Kṛṣṇa ensinou a Bhagavad-gītā, e Arjuna O via face a face, mas ver Kṛṣṇa e ler a Bhagavad-gītā são a mesma coisa. Muitos dizem que Arjuna foi afortunado de ver Kṛṣṇa face a face e receber instruções dEle, mas qualquer um pode ver Kṛṣṇa, contanto que tenha olhos para ver. Há um exemplo no Caitanya-caritāmṛta de um brāhmaṇa do Sul da Índia que costumava ler a Bhagavad-gītā, embora fosse iletrado. O povo da vizinhança sabia que ele era iletrado e, devido a isso, costumava zombar dele, perguntando: “Bem, como é que você está lendo a Bhagavad-gītā?” Certo dia, Caitanya Mahāprabhu ficou em um templo ali perto e pôde compreender que aquele homem era um devoto. Ele, então, aproximou-Se do brāhmaṇa e perguntou: “Meu querido brāhmaṇa, o que você está lendo?” O brāhmaṇa respondeu: “Estou lendo a Bhagavad-gītā, ou melhor, estou tentando ler a Bhagavad-gītā. Sou iletrado, mas meu guru-mahārāja disse que eu devia ler os dezoito capítulos da Bhagavad-gītā diariamente. Estou simplesmente tentando obedecer a suas ordens e, por isso, estou folheando as páginas.” Caitanya Mahāprabhu, então, disse: “Vejo que às vezes você chora. Por qual motivo?” O brāhmaṇa respondeu: “Sim, choro porque, quando pego este livro, vejo um desenho de Kṛṣṇa conduzindo a quadriga de Arjuna. Śrī Kṛṣṇa é tão bondoso que aceitou a posição de servo de Seu devoto. Assim, quando vejo este desenho, eu choro.” Nesse momento, o Senhor Caitanya Mahāprabhu o abraçou e disse: “Você de fato leu a Bhagavad-gītā.”
Não é necessário um vasto cabedal de educação. A pessoa nem precisa compreender a língua. O único ingrediente necessário é bhakti, amor. Se alguém se torna um bhakta puro, ele esquecerá todo o desfrute material. Ser bhakta não significa apenas usar tilaka e mantos. Não é um bhakta quem ainda tem algum gosto pelo desfrute sensual. O verdadeiro bhakta não deseja satisfazer os próprios sentidos, mas os sentidos de Kṛṣṇa. Assim é o mundo espiritual. No mundo espiritual, Vṛndāvana, todos – mãe Yaśodā, Nanda Mahārāja, Śrīmatī Rādhārāṇī, as gopīs, os vaqueirinhos, Śrīdāmā, Sudāmā, a terra, a água, as árvores, os pássaros – cada um está tentando satisfazer Kṛṣṇa. Esse é o verdadeiro significado de Vṛndāvana. Quando Kṛṣṇa deixou Vṛndāvana para ir para Mathurā, todos em Vṛndāvana sentiram-se mortos devido à saudade dEle. De modo semelhante, podemos viver sempre em Vṛndāvana, em Vaikuṇṭha, se estivermos loucos por Kṛṣṇa. Esse é o ensinamento de Caitanya Mahāprabhu, e Ele mostrou isso através de Seu próprio exemplo. Enquanto esteve em Jagannātha Purī, vivia louco por Kṛṣṇa dia e noite. Seus últimos doze anos se passaram na insanidade. Ora Ele Se atirava no oceano, ora perambulava como um louco. Evidentemente, isso não é possível para as entidades vivas comuns. Contudo, se nos tornarmos bhaktas, descobriremos uma inteligência por trás de tudo na criação. Se pegamos uma flor e olhamos sua constituição, como é feita, como se distribuem suas cores e como ela veio a existir podemos ver Kṛṣṇa. Podemos ver como Kṛṣṇa criou algo tão belo de forma tão inteligente. Não devemos pensar como os patifes que tal flor surgiu automaticamente. Os tolos não podem ver, mas aqueles que são inteligentes podem ver que a mão do Senhor Supremo está presente em tudo na criação. Īśāvāsyam idaṁ sarvam.
Na realidade, nada acontece por acaso. Tudo se manifesta por intermédio da inteligência de Kṛṣṇa, de Seus poderes sutis e acurados. Se pintamos uma flor, temos de prestar atenção a cada detalhe, e, ainda assim, o quadro não será absolutamente perfeito. Mas a flor criada por Kṛṣṇa é perfeita. Qual é o patife que pode dizer que não há um cérebro por trás de tudo? Kṛṣṇa diz especificamente que não devemos pensar que prakṛti, a natureza, está trabalhando ao acaso. Ele diz: “A natureza age sob Minha orientação.” Basta desenvolvermos os olhos para ver como essas coisas acontecem. Isso é possível se ocupamos nossos sentidos a serviço de Kṛṣṇa. Em primeiro lugar, temos de ocupar a língua em cantar Hare Kṛṣṇa e em comer bhagavat-prasāda. Não é preciso nada mais. É por isso que o movimento da consciência de Kṛṣṇa está distribuindo prasāda e ocupando as pessoas em cantar o mahā-mantra Hare Kṛṣṇa.
Verso 27
asevayāyaṁ prakṛter guṇānāṁ
jñānena vairāgya-vijṛmbhitena
yogena mayy arpitayā ca bhaktyā
māṁ pratyag-ātmānam ihāvarundhe
Assim, por não se ocupar a serviço dos modos da natureza material, mas por desenvolver consciência de Kṛṣṇa, conhecimento em renúncia, e praticar yoga, na qual a mente está sempre fixa no serviço devocional à Suprema Personalidade de Deus, alcança-se Minha associação nesta mesma vida, pois Eu sou a Personalidade Suprema, a Verdade Absoluta.
SIGNIFICADO—Quando nos ocupamos em serviço devocional ao Senhor mediante os nove diferentes processos de bhakti-yoga, como enunciam as escrituras autorizadas, tais como ouvir (śravaṇam), cantar (kīrtanam), lembrar, oferecer adoração, orar e oferecer serviço pessoal – seja mediante um, dois, três ou todos eles – naturalmente não temos oportunidade de nos ocupar a serviço dos três modos da natureza material. A menos que se tenham boas ocupações no serviço espiritual, não é possível escapar do apego ao serviço material. Aqueles que não são devotos, portanto, estão interessados em ditos trabalhos filantrópicos ou humanitários, tais como abrir hospitais ou instituições de caridade. Esses são, sem dúvida, bons trabalhos no sentido de que são atividades piedosas, e o resultado deles é que o executor poderá obter algumas oportunidades para o gozo dos sentidos, seja nesta vida, seja na próxima. O serviço devocional, entretanto, está além das fronteiras do gozo dos sentidos. É uma atividade inteiramente espiritual. Quando nos dedicamos às atividades espirituais de serviço devocional, naturalmente não obtemos oportunidade de nos ocupar em atividades de gozo dos sentidos. As atividades conscientes de Kṛṣṇa não são executadas cegamente, mas com perfeita compreensão de conhecimento e renúncia. Esse tipo de prática de yoga, em que a mente está sempre fixa na Suprema Personalidade de Deus com devoção, resulta em liberação nesta mesma vida. A pessoa que realiza tais atos entra em contato com a Suprema Personalidade de Deus. O Senhor Caitanya, portanto, aprovou o processo de ouvir devotos realizados falarem sobre os passatempos do Senhor. Não importa a que categoria deste mundo pertença a audiência. Se alguém, mansa e submissamente, ouvir uma alma realizada falar a respeito das atividades do Senhor, será capaz de conquistar a Suprema Personalidade de Deus, a qual nenhum outro processo pode conquistar. Ouvir e associar-se com devotos são as funções mais importantes para a autorrealização.
Em Goloka Vṛndāvana, as entidades vivas servem a Kṛṣṇa como amigos, vaqueirinhos, gopīs, amantes, pais, mães e assim por diante. Até mesmo as árvores, água, flores, terra, bezerros e vacas servem a Kṛṣṇa em Goloka Vṛndāvana. Este também é nosso dever, mas, de uma forma ou outra, não gostamos de servir a Kṛṣṇa; portanto, fomos colocados a serviço de māyā, sob os três modos da natureza material. Quando um criminoso não gosta de obedecer às leis do Estado, ele é posto na prisão e forçado a acatar a lei. Nossa posição constitucional é prestar serviço a Kṛṣṇa como Suas partes integrantes, mas, tão logo nos recusamos a prestar serviço a Ele, māyā nos captura e diz: “Sirva-me.” Não faz parte de nossa natureza sermos mestres. Mesmo que nos tornemos mestres, não seremos felizes, pois isso é artificial. Por exemplo, se a mão pensar: “Oh! Agora tenho alguns doces deliciosos. Vou comê-los”, a mão, no final, se frustrará. É o dever e a natureza da mão colocar a comida na boca. Dessa maneira a mão é nutrida; do contrário, tudo é desperdiçado. De modo semelhante, somos partes integrantes de Kṛṣṇa, e nosso dever é dar satisfação a Kṛṣṇa. Nos Vedas, aprendemos que Deus, que é um, converte-Se em muitos. Nós somos uma dessas muitas partes integrantes de Kṛṣṇa. Suas expansões pessoais chamam-se svāṁśas, e nós somos Suas expansões diferenciadas chamadas vibhinnāṁśas. Em qualquer caso, todas as expansões destinam-se a servir Kṛṣṇa. Isso é explicado no Caitanya-caritāmṛta, ekale īśvara kṛṣṇa, āra saba bhṛtya: “Só o Senhor Kṛṣṇa é o controlador supremo, e todos os outros são Seus servos.” (Ādi-līlā 5.142)
Nossa propensão natural é desfrutar na companhia de Kṛṣṇa. Como se afirmou antes, Kṛṣṇa é ānanda-maya, e, por sermos partes integrantes de Kṛṣṇa, também somos ānanda-maya. Agora estamos buscando ānanda (bem-aventurança) em diferentes ambientes. Porque possuímos certa independência, decidimos ir para a prisão da natureza material e tentar servir os nossos sentidos ao invés de Kṛṣṇa. Temos de aprender, então, como deixar de servir a natureza material, e esse processo se chama bhakti-mārga, o caminho do serviço devocional. Ao atingirmos a compreensão de que não somos servos de ninguém além de Kṛṣṇa, logramos a autorrealização. Devemos chegar a essa compreensão não através de sentimento, mas através de conhecimento verdadeiro. Após muitos nascimentos e mortes, quando alguém compreende que vāsudevaḥ sarvam iti – Vāsudeva é tudo –, ele se rende a Kṛṣṇa. Isto é conhecimento verdadeiro: jñāna e vairāgya, conhecimento e desapego das coisas materiais.
Logo que nos ocupamos cem por cento no serviço a Kṛṣṇa, chegamos à plataforma brahma-bhūta. No momento, estamos na plataforma māyā-bhūta, identificados com māyā e agindo de acordo com os modos da natureza material. Porém, quando o ser vivo chega à realização de que é espírito (ahaṁ brahmāsmi), ele se torna feliz.
Sob os modos da natureza material, estamos sendo arrastados pelas ondas da natureza material e não temos controle sobre nosso destino. Bhaktivinoda Ṭhākura declarou que māyāra vaśe, yāccha bhese’, khāccha hābuḍubu, bhāi. Somos como palhas nas ondas do oceano e estamos sob o completo controle dessas ondas. Os ateus tremem quando pensam que existe uma outra vida, pois suas vidas são pecaminosas e eles temem a punição na próxima. Há um conto bengali sobre alguém que pensou: “Cometi tantos atos pecaminosos que Yamarāja virá e me punirá. Como poderei evitá-lo?” Depois de pensar sobre isso por algum tempo, ele decidiu: “Vou untar meu corpo com excremento. Dessa maneira, Yamarāja não me tocará.” Todavia, isso é mera tolice. Estamos sob o controle de māyā, a natureza material, e não é possível fugir dela. Contraímos a doença da natureza material, e nenhum método artificial nos salvará. Não existe outra maneira, senão nos rendermos a Kṛṣṇa. Kṛṣṇa diz que, apesar de sermos muito pecaminosos, Ele nos salvará.
Se dirigirmos nossa atenção para o serviço a Kṛṣṇa, para bhakti-yoga, podemos nos forçar a abandonar todos os anarthas, coisas indesejadas. Devemos levantar de manhã cedo e nos ocupar no serviço a Kṛṣṇa; nós, então, esqueceremos pouco a pouco o serviço a māyā. Bhakti-yoga é tão poderoso que, se nos ocupamos nele, automaticamente abandonamos o serviço a māyā. Isso se chama vairāgya.
Kṛṣṇa é o puruṣa original, o espírito original, a pessoa original. Tudo emana de Kṛṣṇa, daí Ele ser purāṇa, o mais velho. Ninguém é mais velho do que Kṛṣṇa, mas Ele é sempre jovem. Esse é Bhagavān. Ele é ādi, a fonte original, a causa de todas as causas. Ainda assim, nunca vemos Kṛṣṇa como um velho. Ele é sempre jovem e viçoso. Embora Kṛṣṇa já fosse bisavô na Batalha de Kurukṣetra, Ele não aparentava ter mais de vinte anos. Kṛṣṇa é sempre um jovem, e as entidades vivas no universo espiritual também têm corpos como os de Kṛṣṇa. No sexto canto do Śrīmad-Bhāgavatam, lemos que, quando os Vaikuṇṭha-dūtas surgiram para levar Ajāmila, eles tinham quatro braços e eram belíssimos. No mundo espiritual, existem entidades vivas com quatro braços, e todas elas são nitya-mukta, eternamente liberadas.
Infelizmente, agora somos prisioneiros neste mundo material e temos corpos materiais. Estes corpos estão mudando. Ora são jovens, ora são velhos. Contudo, se nos tornamos conscientes de Kṛṣṇa, não aceitaremos outro corpo material depois de abandonar este corpo. Voltaremos ao lar, voltaremos ao Supremo, e obteremos nosso corpo original, um corpo espiritual, que é tão belo quanto o de Kṛṣṇa, Nārāyaṇa. Devemos aproveitar esta oportunidade de nos tornar devotos de Kṛṣṇa seguindo os processos de bhakti-yoga – śravaṇaṁ kīrtanaṁ viṣṇoḥ smaraṇaṁ pāda-sevanaṁ arcanam. Podemos adotar um ou todos os nove processos de serviço devocional e tornar nossa vida bem-sucedida. Caitanya Mahāprabhu prescreveu o processo mais importante – śravaṇa. Basta ouvirmos, e isso fará de nossas vidas um sucesso.