Capítulo 34
A Libertação de Vidyādhara e a Morte do Demônio Śaṅkhācūḍa
Certa vez, os vaqueiros de Vṛndāvana, liderados por Nanda Mahārāja, desejaram ir a Ambikāvana para executar o ritual de Śiva-rātri. A rāsa-līlā aconteceu durante o outono, e, depois disso, a próxima grande cerimônia é Holi, ou a cerimônia de dolayātrā. Entre a cerimônia de rāsa-līlā e a cerimônia de dolayātrā, existe uma cerimônia importante chamada Śiva-rātri, que é observada especialmente entre os śivaistas, ou devotos do senhor Śiva. Às vezes, porém, os vaiṣṇavas também observam esta cerimônia uma vez que aceitam o senhor Śiva como o principal vaiṣṇava. No entanto, os bhaktas, ou devotos de Kṛṣṇa, não observam com muita regularidade a função de Śiva-rātri. É por isso que se diz no Śrīmad-Bhāgavatam que os vaqueiros liderados por Nanda Mahārāja “certa vez desejaram”. Isso quer dizer que eles não observavam regularmente a cerimônia de Śiva-rātri, mas, uma vez, eles quiseram ir a Ambikāvana por curiosidade. Ambikāvana situa-se em algum lugar na província de Gujarat. Dizem que Ambikāvana se situa no rio Sarasvatī, mas não encontramos nenhum rio Sarasvatī na província de Gujarat; o único rio ali é o Savarmati. Na Índia, todos os lugares de peregrinação situam-se ao lado de belos rios, como o Ganges, o Yamunā, o Sarasvatī, o Narmadā, o Godāvarī e o Kāverī. Ambikāvana situava-se à margem do Sarasvatī, e todos os vaqueiros e Nanda Mahārāja foram para lá.
Com muita devoção, eles começaram a adorar as deidades do senhor Śiva e Ambikā. É prática geral que, sempre que há um templo do senhor Śiva, há também um templo de Ambikā (ou Durgā) porque Ambikā é a esposa do senhor Śiva e é a mais elevada das mulheres castas. Ela não vive sem a associação de seu marido. Ao alcançarem Ambikāvana, os vaqueiros de Vṛndāvana primeiro tomaram banho no rio Sarasvatī. Se alguém vai a algum lugar de peregrinação, seu primeiro dever é tomar banho e, às vezes, raspar a cabeça. Esta é a primeira obrigação. Depois de tomar banho, adoram-se as deidades e, então, se distribui caridade nos lugares santos.
Segundo o sistema védico, deve-se dar caridade aos brāhmaṇas. Afirma-se nos śāstras védicos que só os brāhmaṇas e os sannyāsīs podem aceitar caridade. Os vaqueiros de Vṛndāvana deram aos brāhmaṇas vacas decoradas com enfeites de ouro e belas guirlandas. Os brāhmaṇas recebem caridade porque não se ocupam em uma profissão comercial. Supõe-se que eles se dediquem a ocupações bramânicas, como as descreve o Bhagavad-gītā – ou seja, eles devem ser muito eruditos e devem executar austeridade e penitências. Eles não só devem ser eruditos, mas também devem ensinar outras pessoas. Os brāhmaṇas não devem ser brāhmaṇas sozinhos; devem criar outros brāhmaṇas também. Caso se encontre um homem que concorde em tornar-se discípulo de um brāhmaṇa, este receberá a oportunidade de tornar-se brāhmaṇa. O brāhmaṇa está sempre ocupado na adoração do Senhor Viṣṇu. Por isso, os brāhmaṇas estão qualificados para aceitar todo tipo de caridade. Contudo, se receberem caridade em excesso, os brāhmaṇas deverão distribuí-la para o serviço de Viṣṇu. Na escritura védica, portanto, recomenda-se que se dê caridade aos brāhmaṇas, e quem faz isso agrada o Senhor Viṣṇu e todos os semideuses.
Os peregrinos tomam banho, adoram a deidade e dão caridade; recomenda-se também que se jejue um dia. Devem ir ao lugar de peregrinação e ficar lá durante pelo menos três dias. Durante o primeiro dia, eles jejuam e, à noite, podem beber um pouco de água porque água não quebra o jejum.
Os pastores liderados por Nanda Mahārāja passaram aquela noite à margem do Sarasvatī. Jejuaram o dia inteiro e, à noite, beberam um pouco de água. Porém, enquanto descansavam, uma serpente enorme saiu da floresta ali próxima indo até onde eles estavam. Faminta, ela começou a engolir Nanda Mahārāja. Desamparado, Nanda começou a gritar: “Meu querido filho Kṛṣṇa, por favor, venha salvar-me deste perigo! Esta serpente está me engolindo!” Quando Nanda Mahārāja gritou por socorro, todos os pastores se levantaram e viram o que se passava. Eles pegaram imediatamente tochas acesas e começaram a golpear a cobra para matá-la. Porém, apesar de golpeada com tochas acesas, a serpente não pretendia desistir de engolir Nanda Mahārāja.
Naquele momento, Kṛṣṇa apareceu em cena e tocou a serpente com Seus pés de lótus. Logo ao ser tocada pelos pés de lótus de Kṛṣṇa, a serpente deitou fora seu corpo de réptil e apareceu como um belíssimo semideus chamado Vidyādhara. Tinha um corpo de aspecto tão bonito que parecia digno de adoração. De seu corpo, emanava um brilho refulgente, e ele usava um colar de ouro como guirlanda. Ofereceu reverências ao Senhor Kṛṣṇa e postou-se diante dEle com grande humildade. Kṛṣṇa, então, perguntou ao semideus: “Parece que você é um excelente semideus e que a deusa da fortuna o favorece. Como é que você cometeu atividades tão abomináveis, e como foi que adquiriu um corpo de serpente?” O semideus começou, então, a narrar a história de sua vida anterior.
“Meu querido Senhor”, disse ele, “em minha vida pretérita, eu me chamava Vidyādhara e era conhecido no mundo todo por minha beleza. Por ser uma personalidade célebre, eu costumava viajar por toda parte em meu aeroplano. Enquanto eu viajava, encontrei um grande sábio chamado Aṅgirā. Ele era muito feio, e eu, por estar muito orgulhoso de minha beleza, caçoei dele. Devido a essa ação pecaminosa, fui condenado pelo grande sábio a assumir a forma de serpente”.
Deve-se notar aqui que, antes de ser favorecida por Kṛṣṇa, a pessoa está sempre sob os modos da natureza material, por maior que seja sua elevação material. Vidyādhara era um semideus muito elevado materialmente, e era muito bonito. Tinha também uma grande posição material e podia viajar de aeroplano por toda parte. Mesmo assim, foi condenado a tornar-se uma serpente em sua vida seguinte. Qualquer pessoa em elevada posição material pode ser condenada a uma espécie de vida abominável se não tiver cuidado. É errado achar que, depois de alcançar o corpo humano, a pessoa nunca se degrada. O próprio Vidyādhara diz que, embora fosse semideus, ele foi condenado a virar serpente. Contudo, porque foi tocado pelos pés de lótus de Kṛṣṇa, ele atingiu imediatamente a consciência de Kṛṣṇa. Ele admitiu, porém, que, em sua vida precedente, fora de fato um pecador. Uma pessoa consciente de Kṛṣṇa sabe que é sempre servo do servo de Kṛṣṇa; ele é muito insignificante e, qualquer bem que faça, é pela graça de Kṛṣṇa e do mestre espiritual.
O semideus Vidyādhara continuou a falar a Śrī Kṛṣṇa: “Porque tinha muito orgulho da rara beleza de meu corpo”, disse ele, “eu ridicularizei a má aparência do grande sábio Aṅgirā. Ele me amaldiçoou por meu pecado e eu virei cobra. Agora, acho que esta maldição do sábio não foi de modo algum uma maldição, pois, para mim, foi uma grande bênção. Se ele não me tivesse amaldiçoado, eu não teria assumido um corpo de serpente, e não teria sido chutado por Seus pés de lótus, libertando-me assim de toda a contaminação material”.
Na existência material, quatro coisas são muito valiosas: nascer em uma família decente, ser muito rico, ser muito erudito e ser muito bonito. Estas são consideradas vantagens materiais. Infelizmente, sem a consciência de Kṛṣṇa, essas vantagens materiais tornam-se fonte de pecado e degradação. Apesar de Vidyādhara ser um semideus e ter um belo corpo, ele foi condenado a um corpo de cobra devido ao orgulho. Considera-se a cobra a entidade viva mais cruel e invejosa, mas aqueles que são seres humanos e têm inveja dos outros são considerados ainda mais perversos do que as cobras. A cobra pode ser dominada ou controlada por mantras e ervas, mas ninguém pode controlar uma pessoa invejosa.
“Meu querido Senhor”, Vidyādhara continuou, “agora, como acho que já estou livre de todas as espécies de atividades pecaminosas, peço Sua permissão para regressar a minha morada, o planeta celeste”. Este pedido indica que as pessoas apegadas às atividades fruitivas, que desejam promoção para os confortos de sistemas planetários superiores, não podem alcançar a meta final da vida sem a sanção da Suprema Personalidade de Deus. Também se diz no Bhagavad-gītā que os menos inteligentes querem conseguir benefícios materiais e, para tanto, adoram diferentes espécies de semideuses, mas, de fato, eles conseguem a bênção dos semideuses através da permissão do Senhor Viṣṇu, ou Kṛṣṇa. Os semideuses não têm o poder de dar benefícios materiais. Mesmo que alguém seja apegado a bênçãos materiais, ele pode adorar Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, e Lhe pedir. Kṛṣṇa é totalmente capaz de dar até bênçãos materiais. Existe uma diferença, porém, entre pedir uma bênção material aos semideuses e pedi-la a Kṛṣṇa. Dhruva Mahārāja adorou a Suprema Personalidade de Deus em troca de bênçãos materiais, mas, quando chegou a receber o favor do Senhor Supremo e a vê-lO face a face, Dhruva ficou tão satisfeito que se recusou a aceitar alguma bênção material. A pessoa inteligente não pede favores aos semideuses nem os adora; ela se torna diretamente consciente de Kṛṣṇa e, se deseja algum benefício material, pede a Kṛṣṇa, e não aos semideuses.
Vidyādhara, esperando permissão de Kṛṣṇa para regressar aos planetas celestes, disse: “Agora, porque fui tocado por Seus pés de lótus, estou livre de todas as espécies de dores materiais. Você é o mais poderoso de todos os místicos e a Suprema Personalidade de Deus original. Você é o senhor de todos os devotos e o proprietário de todos os sistemas planetários. Em razão disso, peço-Lhe que me aceite como uma alma plenamente rendida a Você. Sei muito bem que quem se ocupa constantemente em cantar Seu santo nome se salva de todas as reações pecaminosas, e, com certeza, alcança a libertação aquele que tem a sorte de ser tocado pessoalmente por Seus pés de lótus. Por isso, tenho certeza de que agora estou livre da maldição do brāhmaṇa, simplesmente por ter sido tocado por Seus pés de lótus”.
Com essa atitude, Vidyādhara recebeu permissão do Senhor Kṛṣṇa para regressar a seu lar no sistema planetário superior. Depois de receber esta honra, ele começou a cicungirar o Senhor. E, depois de oferecer-Lhe suas respeitosas reverências, regressou para seu planeta celeste. E assim, Nanda Mahārāja também se livrou do perigo iminente de ser devorado pela serpente.
Os pastores que tinham vindo para cumprir a função ritual de adorar o senhor Śiva e Ambikā terminaram suas obrigações e se prepararam para regressar a Vṛndāvana. Enquanto voltavam, recordavam as admiráveis atividades de Kṛṣṇa. Relatando o incidente da salvação de Vidyādhara, eles se tornaram ainda mais apegados ao Senhor Kṛṣṇa. Eles tinham vindo para adorar o senhor Śiva e Ambikā, mas ficaram cada vez mais apegados a Kṛṣṇa. De forma semelhante, as gopīs também adoravam a deusa Kātyāyanī para ficarem sempre mais apegadas a Kṛṣṇa. Afirma-se no Bhagavad-gītā que as pessoas que se apegam à adoração de semideuses, como o senhor Brahmā, Śiva, Indra e Candra, em troca de algum benefício pessoal, são menos inteligentes e se esqueceram do verdadeiro propósito da vida. Os pastores habitantes de Vṛndāvana, porém, não eram pessoas comuns. Tudo o que faziam, faziam para Kṛṣṇa. É correto alguém adorar semideuses como o senhor Śiva e o senhor Brahmā para se apegar mais a Kṛṣṇa. No entanto, se alguém procura os semideuses em troca de algum benefício pessoal, isso é condenado.
Certa noite muito agradável, depois deste incidente, Kṛṣṇa e Seu irmão mais velho Balarāma, que são inconcebivelmente poderosos, entraram na floresta de Vṛndāvana. Eles estavam acompanhados das moças de Vrajabhūmi e começaram a desfrutar a companhia uns dos outros. As jovens de Vraja estavam vestidas com muito esmero e ungidas com polpa de sândalo e adornadas de flores. A Lua brilhava no céu, rodeada de estrelas cintilantes, e a brisa soprava levando o aroma das flores mallikā, cujo aroma enlouquecia os abelhões. Aproveitando-Se dessa atmosfera agradável, Kṛṣṇa e Balarāma começaram a cantar de maneira muito melodiosa. As moças ficaram tão absortas no ritmo do canto dos dois irmãos que quase se esqueceram de si; seus cabelos se soltaram, os vestidos se afrouxaram e as guirlandas começaram a cair ao chão.
Naquele momento, enquanto estavam tão absortas, quase enlouquecidas, um demônio companheiro de Kuvera (o tesoureiro dos planetas celestes) entrou em cena. O nome do demônio era Śaṅkhācūḍa porque, em sua cabeça, havia uma joia valiosa semelhante a um búzio. Assim como os dois filhos de Kuvera eram arrogantes por causa da riqueza e da opulência e não se preocuparam com a presença de Nārada Muni, este Śaṅkhācūḍa também era arrogante por causa da opulência material, e achou que Kṛṣṇa e Balarāma eram dois vaqueirinhos comuns desfrutando a companhia de muitas meninas bonitas. É comum no mundo material um homem abastado achar que todas as mulheres bonitas devem ser desfrutadas por ele. Śaṅkhācūḍa também pensava que, por pertencer à rica comunidade de Kuvera, ele, e não Kṛṣṇa e Balarāma, deveria desfrutar a companhia de muitas meninas bonitas. Portanto, ele decidiu cuidar delas, aparecendo diante de Kṛṣṇa e Balarāma e começando a levar as meninas embora para o norte. Ele lhes dava ordens como se fosse seu proprietário e marido, apesar da presença de Kṛṣṇa e Balarāma. Sendo levadas à força por Śaṅkhācūḍa, as meninas de Vraja começaram a gritar os nomes de Kṛṣṇa e Balarāma pedindo proteção. Os dois irmãos imediatamente começaram a segui-lo, levando grandes toras de madeira śāla em Suas mãos. “Não tenham medo, não tenham medo”, diziam às gopīs. “Já estamos chegando para castigar esse demônio”. Em pouco tempo, alcançaram Śaṅkhācūḍa. Achando que os dois irmãos eram muito fortes, Śaṅkhācūḍa deixou a companhia das gopīs e correu temendo por sua vida, mas Kṛṣṇa não queria deixá-lo escapar. Ele confiou as gopīs aos cuidados de Balarāma e seguiu Śaṅkhācūḍa para onde quer que fosse. Kṛṣṇa queria tomar a valiosa joia em forma de búzio da cabeça do demônio. Depois de segui-lo por uma curta distância, Kṛṣṇa pegou o demônio, esmurrou-lhe a cabeça e o matou. Então, Ele tomou a joia preciosa e retornou. Na presença de todas as meninas de Vraja, Ele presenteou seu irmão mais velho Balarāma com a joia preciosa.
Neste ponto, encerram-se os significados Bhaktivedanta do capítulo trinta e quatro de Kṛṣṇa, intitulado “A Libertação de Vidyādhara e a Morte do Demônio Śaṅkhācūḍa”.