VERSO 57
itīreśe ’tarkye nija-mahimani sva-pramitike
paratrājāto ’tan-nirasana-mukha-brahmaka-mitau
anīśe ’pi draṣṭuṁ kim idam iti vā muhyati sati
cacchādājo jñātvā sapadi paramo ’jā-javanikām
iti — assim; irā-īśe — senhor Brahmā, o senhor de Sarasvatī (Irā); atarkye — além de; nija-mahimani — cuja própria glória; sva-pramitike — automanifesto e bem-aventurado; paratra — além de; ajātaḥ — a energia material (prakṛti); atat — irrelevante; nirasana-mukha — pela rejeição daquilo que é irrelevante; brahmaka — por intermédio das joias mais valiosas dos Vedas; mitau — em quem existe conhecimento; anīśe — não foi capaz; api — mesmo; draṣṭum — de ver; kim — o que; idam — é isto; iti — assim; vā — ou; muhyati sati — sendo mistificado; cacchāda — removeu; ajaḥ — Senhor Śrī Kṛṣṇa; jñātvā — após entender; sapadi — de uma vez; paramaḥ — o maior de todos; ajā-javanikām — a cortina de māyā.
O Brahman Supremo está além da especulação mental, é automanifesto, existindo em Sua própria bem-aventurança, e está além da energia material. Ele é conhecido por intermédio das joias mais valiosas dos Vedas, que refutam o conhecimento irrelevante. Assim, em relação com esse Brahman Supremo – a Personalidade de Deus, cuja glória fora mostrada pela manifestação de todas as formas de Viṣṇu de quatro braços –, o senhor Brahmā, o senhor de Sarasvatī, foi mistificado. “O que é isto?”, ele quis saber, e então não foi capaz nem mesmo de ver. O Senhor Kṛṣṇa, entendendo a posição de Brahmā, removeu então de uma vez a cortina, Sua yogamāyā.
SIGNIFICADO—Brahmā foi inteiramente mistificado. Ele não podia entender o que via e, depois, não foi capaz nem mesmo de ver. O Senhor Kṛṣṇa, compreendendo a posição de Brahmā, removeu então aquela cobertura, removeu yogamāyā. Neste verso, Brahmā é chamado de ireśa. Irā significa Sarasvatī, a deusa da sabedoria, e Ireśa é seu esposo, o senhor Brahmā. Brahmā, portanto, é inteligentíssimo. Mas mesmo Brahmā, o senhor de Sarasvatī, ficou confuso diante das ações de Kṛṣṇa. Embora tentasse, ele não pôde entender o Senhor Kṛṣṇa. No começo, os meninos, os bezerros e o próprio Kṛṣṇa foram cobertos por yogamāyā, que mais tarde expôs o segundo grupo de bezerros e meninos, que eram expansões de Kṛṣṇa, e que então manifestaram tantas formas de quatro braços. Agora, vendo a desorientação de Brahmā, o Senhor Kṛṣṇa fez desaparecer aquela yogamāyā. Pode-se pensar que a māyā afastada por Kṛṣṇa era mahāmāyā, mas Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura comenta que era yogamāyā, a potência pela qual Kṛṣṇa ora Se manifesta, ora não Se manifesta. A potência que cobre a verdadeira realidade e apresenta algo irreal é mahāmāyā, mas a potência pela qual a Verdade Absoluta ora Se manifesta, ora não Se manifesta é yogamāyā. Portanto, neste verso, a palavra ajā refere-se a yogamāyā.
A energia de Kṛṣṇa – Sua māyā-śakti, ou svarūpa-śakti – é apenas uma, mas se manifesta com variedades. Parāsya śaktir vividhaiva śrūyate. (Śvetāśvatara Upaniṣad 6.8) A diferença entre os vaiṣṇavas e os māyāvādīs é que os māyāvādīs dizem que māyā é apenas uma, ao passo que os vaiṣṇavas reconhecem suas variedades. Existe igualdade na variedade. Por exemplo, em uma árvore, existem muitas variedades de folhas, frutas e flores. Variedades de energia são necessárias para realizar as várias atividades dentro da criação. Citando outro exemplo: em uma máquina, todas as suas partes talvez sejam ferro, mas a máquina exerce atividades variadas. Embora toda a máquina seja de ferro, uma parte funciona de uma maneira, e outras partes funcionam de maneiras diferentes. Alguém que não saiba como a máquina funciona talvez diga que toda a máquina é somente ferro; entretanto, apesar de ser feita de ferro, a máquina tem diferentes elementos, todos funcionando diferentemente para cumprir o propósito para o qual a máquina foi feita. Uma roda gira dessa maneira, outra roda gira daquela maneira, funcionando naturalmente de tal modo que o trabalho da máquina se desenvolve. Consequentemente, damos diferentes nomes a diferentes partes da máquina, dizendo: “Isto é uma roda”, “Isto é um parafuso”, “Isto é uma rosca”, “Isto é a lubrificação”, e assim por diante. Igualmente, como se explica nos Vedas:
parāsya śaktir vividhaiva śrūyate
svābhāvikī jñāna-bala-kriyā ca
Uma vez que o poder de Kṛṣṇa é diverso, a mesma śakti, ou potência, funciona de várias maneiras. Vividhā significa “variedades”. Existe unidade na variedade. Assim, yogamāyā e mahāmāyā estão entre as várias partes individuais da mesma potência única, e todas essas potências individuais funcionam de acordo com suas próprias e variadas maneiras. As potências saṁvit, sandhinī e āhlādinī – a potência de Kṛṣṇa que se encarrega da existência, Sua potência utilizada no conhecimento e Sua potência utilizada no prazer – são distintas de yogamāyā. Cada uma delas é uma potência individual. A potência āhlādinī é Rādhārāṇī. Como Svarūpa Dāmodara Gosvāmī explica, rādhā kṛṣṇa-praṇaya-vikṛtir hlādinī śaktir asmāt. (Caitanya-caritāmṛta, Ādi 1.5) A āhlādinī-śakti manifesta-se como Rādhārāṇī, mas Kṛṣṇa e Rādhārāṇī são os mesmos, embora um seja o potente, e a outra, a potência.
A opulência de Kṛṣṇa mistificou Brahmā porque essa opulência (nija-mahimani) era atarkya, ou inconcebível. Com sentidos limitados, ninguém pode discutir sobre aquilo que é inconcebível. Portanto, o inconcebível se chama acintya, aquilo que está além de cintya, nossos pensamentos e argumentações. Acintya refere-se àquilo que não podemos contemplar, senão que temos de aceitar. Śrīla Jīva Gosvāmī disse que, a menos que aceitemos que o Supremo é acintya, não poderemos nos dar conta do que é Deus. Isso tem de ser entendido. Portanto, dizemos que as palavras dos śāstras devem ser aceitas como elas são, sem mudanças, pois ultrapassam nossos argumentos. Acintyāḥ khalu ye bhāvā na tāṁs tarkeṇa yojayet: “Aquilo que é acintya não pode ser averiguado através do argumento.” De um modo geral, as pessoas contestam, mas nosso processo não é contestar, pois preferimos aceitar o conhecimento védico como ele é. Quando Kṛṣṇa diz: “Isso é superior e aquilo é inferior”, aceitamos exatamente o que Ele diz. Não ficamos argumentando: “Por que isso é superior e aquilo é inferior?” Se alguém contesta, sua chance de obter conhecimento se esvai.
Este caminho da aceitação chama-se avaroha-panthā. A palavra avaroha relaciona-se com a palavra avatāra, que significa “aquilo que desce”. O materialista quer entender tudo através de āroha-panthā – através do argumento e da razão –, mas os temas transcendentais não podem ser entendidos dessa maneira. Em vez disso, a pessoa deve seguir avaroha-panthā, o processo de conhecimento descendente. Portanto, deve-se aceitar o sistema paramparā. E o melhor paramparā é aquele que procede de Kṛṣṇa (evaṁ paramparā-prāptam). O que Kṛṣṇa diz, devemos aceitar (imaṁ rājarṣayo viduḥ) Isso se chama avaroha-panthā.
Brahmā, entretanto, adotou āroha-panthā. Através de seu próprio poder imaginativo limitado, ele queria entender o poder místico de Kṛṣṇa, daí ter sido mistificado. Todos querem sentir prazer em seu próprio conhecimento, pensando: “Eu sou entendido de um assunto.” Quando se refere a entender Kṛṣṇa, no entanto, esse conceito não tem validade, pois ninguém pode colocar Kṛṣṇa dentro das limitações da prakṛti. Todos devem submeter-se. Não há alternativa. Na tāṁs tarkeṇa yojayet. Essa submissão marca a diferença entre os kṛṣṇaístas e os māyāvādīs.
Os dizeres atan-nirasana refere-se ao ato de dispensar aquilo que é irrelevante. (Atat significa “aquilo que não é um fato”.) O Brahman às vezes é descrito como asthūlam anaṇv ahrasvam adīrgham: “Aquilo que não é nem grande nem pequeno, nem curto nem comprido.” (Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad 5.8.8) Neti neti: “Não é isto, não é aquilo.” Mas o que é isso? Ao descrever um lápis, pode-se dizer: “Não é isto, não é aquilo”, mas isso não nos diz o que ele é. Isso se chama definição através da negação. Na Bhagavad-gītā, Kṛṣṇa também explica a alma dando definições negativas. Na jāyate mriyate vā: “Ela não nasce nem morre. Dificilmente se consegue entender mais do que isto.” Mas o que é a alma? Ela é eterna. Ajo nityaḥ śāśvato ’yaṁ purāṇo na hanyate hanyamāne śarīre: “Ela é não-nascida, eterna, sempre existente, imortal e primordial. Ela não morre quando o corpo morre.” (Bhagavad-gītā 2.20) A princípio, é difícil entender a alma, daí Kṛṣṇa fornecer definições negativas:
nainaṁ chindanti śastrāṇi
nainaṁ dahati pāvakaḥ
na cainaṁ kledayanty āpo
na śoṣayati mārutaḥ
“A alma nunca pode ser despedaçada por arma alguma, tampouco pode ser queimada pelo fogo, umedecida pela água ou enxugada pelo vento.” (Bhagavad-gītā 2.23) Kṛṣṇa diz: “Ela não é queimada pelo fogo.” Portanto, deve-se imaginar o que não é queimado pelo fogo. Essa é uma definição negativa.