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VERSO 1

śrī-parīkṣid uvāca
brahman brahmaṇy anirdeśye
nirguṇe guṇa-vṛttayaḥ
kathaṁ caranti śrutayaḥ
sākṣāt sad-asataḥ pare

śrī-parīkṣit uvāca — Śrī Parīkṣit disse; brahman — ó brāhmaṇa (Śukadeva Gosvāmī); brahmāṇi — na Verdade Absoluta; anirdeśye — que não pode ser descrita com palavras; nirguṇe — que não tem qualidades; guṇa — as qualidades da natureza material; vṛttayaḥ — cuja esfe­ra de ação; katham — como; caranti — funcionam (referindo-se); śru­tayaḥ — os Vedas; sākṣāt — diretamente; sat — à substância material; asataḥ — e suas causas sutis; pare — naquilo que é transcendental.

Śrī Parīkṣit disse: Ó brāhmaṇa, como os Vedas podem descre­ver diretamente a Suprema Verdade Absoluta, que não pode ser descrita com palavras? Os Vedas limitam-se a descrever as qualidades da natureza material, mas o Supremo é destituído dessas qualidades, sendo transcendental a todas as manifestações mate­riais e a suas causas.

SIGNIFICADO—Antes de iniciar seu comentário sobre este capítulo, Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:

vāg-īśā yasya vadane
lakṣmīr yasya ca vakṣasi
yasyāste hṛdaye saṁvit
taṁ nṛṣiṁham ahaṁ bhaje

“Adoro o Senhor Nṛsiṁha, em cuja boca residem os grandes mestres da eloquência, sobre cujo peito reside a deusa da fortuna e dentro de cujo coração reside a divina potência da consciência.”

sampradāya-viśuddhy-arthaṁ
svīya-nirbandha-yantritaḥ
śruti-stuti-mita-vyākhyāṁ
kariṣyāmi yathā-mati

“Desejando purificar minha sampradāya e estando preso pelo dever, apresentarei um breve comentário sobre as preces dos Vedas personificados, segundo o melhor de minha compreensão.”

śrīmad-bhāgavataṁ pūrvaiḥ
sārataḥ sanniṣevitam
mayā tu tad-upaspṛṣṭam
ucchiṣṭam upacīyate

“Visto que o Śrīmad-Bhāgavatam já foi perfeitamente honrado com as explicações de meus predecessores, só posso juntar os restos do que eles honraram.”

Śrīla Viśvanātha Cakravartī oferece sua própria invocação:

mama ratna-vaṇig-bhāvaṁ
ratnāny aparicinvataḥ
hasantu santo jihremi
na sva-svānta-vinoda-kṛt

“Os devotos santos podem rir de mim por me tornar um mercador de joias embora não saiba nada de joias preciosas. Mas não sinto vergonha, porque ao menos poderei entretê-los.”

na me ’sti vaiduṣy api nāpi bhaktir
virakti-raktir na tathāpi laulyāt
su-durgamād eva bhavāmi veda-
stuty-artha-cintāmaṇi-rāśi-gṛdhnuḥ

“Apesar de não ter sabedoria, devoção nem desapego, ainda assim estou ansioso por retirar a pedra filosofal das orações dos Vedas da fortaleza em que está sendo mantida.”

māṁ nīcatāyām aviveka-vāyuḥ
pravartate pātayituṁ balāc cet
likhāmy ataḥ svāmī-sanātana-śrī-
kṛṣṇāṅghri-bhā-stambha-kṛtāvalambaḥ

“Se o vento da imprudência – meu fracasso em reconhecer minha posição inferior – ameaçar me derrubar, então, ao escrever este comentário, devo me agarrar aos pilares refulgentes dos pés de Śrīdhara Svāmī, de Sanātana Gosvāmī e do Senhor Śrī Kṛṣṇa.”

praṇamya śrī-guruṁ bhūyaḥ
śrī-kṛṣṇaṁ karuṇārṇavam
loka-nāthaṁ jagac-cakṣuḥ
śrī-śukaṁ tam upāśraye

“Prostrando-me repetidas vezes diante de meu divino mestre espiritual e do Senhor Śrī Kṛṣṇa, o oceano de misericórdia, refugio-me em Śrī Śukadeva Gosvāmī, o protetor do mundo e seu olho universal.”

No final do capítulo anterior, Śukadeva Gosvāmī disse a Parīkṣit Mahārāja:

evaṁ sva-bhaktayo rājan
bhagavān bhakta-bhaktimān
uṣitvādiśya san-mārgaṁ
punar dvāravatīm agāt

“Então, ó rei, a Personalidade de Deus, que é devotado a Seus devotos, ficou algum tempo com Seus dois grandes devotos, ensinando-lhes o comportamento dos santos perfeitos. Depois, o Senhor regressou a Dvārakā.” Neste verso, a palavra san-mārgam pode ser compreendida de pelo menos três maneiras. Na primeira, toma-se sat como significando “devoto do Senhor Supremo”, de modo que san-mārgam quer dizer “o caminho de bhakti-yoga, o serviço devocio­nal”. Na segunda, com sat significando “um buscador do conhecimento transcendental”, san-mārgam quer dizer “o caminho filosófico do conhecimento”, que tem o Brahman impessoal como seu objeto. E na terceira, com sat referindo-se ao som transcendental dos Vedas, san-mārgam quer dizer “o processo de seguir os preceitos védicos”. A segunda e a terceira dessas interpretações de san-mārgam levam à questão de como os Vedas podem descrever a Verdade Absoluta.

Śrīla Śrīdhara Svāmī faz uma análise detalhada desse problema nos termos da disciplina tradicional da poética sânscrita. Devemos considerar que as palavras têm três espécies de capacidades expressivas, chamadas śabda-vṛttis. Essas são as diferentes maneiras pelas quais uma palavra se refere a seu significado, conhecidas como mukhya-vṛtti, lakṣaṇā-vṛtti e gauṇa-vṛtti. A śabda-vṛtti chamada mukhya é o sentido primário e literal da palavra: também conhecido como abhidhā, a “denotação” da palavra, ou seu sentido dicionarizado. Mukhya-vṛtti divide-se em duas subcategorias, a saber, rūḍhi e yoga. Um sentido primário chama-se rūḍhi quando se baseia no uso conven­cional, e yoga quando deriva do sentido de outra palavra através de regras etimológicas regulares.

Por exemplo, a palavra go (“vaca”) é um exemplo de rūḍhi, pois sua relação com seu sentido literal é puramente convencional. A de­notação da palavra pācaka (cozinheiro), por outro lado, é um yoga­-vṛtti, através da derivação da raiz pac (“cozinhar”) com adição do sufixo de agente ka.

Além de seu mukhya-vṛtti, ou sentido primário, uma palavra tam­bém pode ser usada num sentido secundário, metafórico. Esse uso se chama lakṣaṇā. A regra é que não se deve interpretar uma palavra metaforicamente se seu mukhya-vṛtti faz sentido no contexto dado; somente depois que mukhya-vṛtti falha em transmitir o sentido da palavra é que há justificativa para a aplicação de lakṣaṇā-vṛtti. A função de lakṣaṇā é explicada tecnicamente nos kāvya-śāstras como uma re­ferência estendida, indicando algo de alguma forma relacionado ao objeto do sentido literal. Assim, a frase gaṅgāyāṁ ghoṣaḥ literalmen­te significa “a vila pastoril no Ganges”. Mas como essa ideia é absurda, deve-se entender gaṅgāyām por seu lakṣaṇā como signi­ficando “na margem do Ganges”, por ser a margem algo relacionado com o rio. Gauṇa-vṛtti é um tipo especial de lakṣaṇā, em que o sentido se estende para alguma ideia de semelhança. Por exemplo, na frase siṁho devadattaḥ (Devadatta é um leão”), o heroico Deva­datta é metaforicamente chamado de leão por causa de suas qualidades leoninas. Em contraste, o exemplo da categoria geral de lakṣaṇā, isto é, gaṅgāyāṁ ghoṣaḥ, envolve uma relação não de semelhança, mas de localização.

Neste primeiro verso do octogésimo sétimo capítulo, Parīkṣit Mahārāja expressa sua dúvida sobre como as palavras dos Vedas podem referir-se à Verdade Absoluta por meio de alguma das espécies válidas de śabda-vṛtti. Ele pergunta, kathaṁ sākṣāt caranti: Como os Vedas podem descrever o Brahman diretamente por rūḍha-mukhya-vṛtti, o sentido literal baseado na convenção? Afinal, o Absoluto é anirdeśya, inacessível à designação. E como os Vedas podem sequer descrever o Brahman por gauṇa-vṛtti, metáfora baseada em qualida­des semelhantes?

Os Vedas são guṇa-vṛttayaḥ, cheios de descrições qualitativas, mas o Brahman é nirguṇa, destituído de qualidades. É óbvio que uma metáfora baseada em qualidades semelhantes não pode aplicar-se no caso de algo que não tem qualidades. Além do mais, Parīkṣit Mahārāja assinala que o Brahman é sad-asataḥ param, além de todas as causas e efeitos. Sem ter conexão alguma com ne­nhuma existência manifesta, sutil ou grosseira, o Absoluto não pode ser expresso nem por yoga-vṛtti, um sentido derivado etimologica­mente, nem por lakṣaṇā, uma metáfora, pois ambos exigem alguma relação de Brahman com outras entidades.

Dessa maneira, o rei Parīkṣit está perplexo sobre como as palavras dos Vedas podem descrever diretamente a Verdade Absoluta.

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