VERSO 14
śrī-śrutaya ūcuḥ
jaya jaya jahy ajām ajita doṣa-gṛbhīta-guṇāṁ
tvam asi yad ātmanā samavaruddha-samasta-bhagaḥ
aga-jagad-okasām akhila-śakty-avabodhaka te
kvacid ajayātmanā ca carato ’nucaren nigamaḥ
śrī-śrutayaḥ ūcuḥ — os Vedas disseram; jaya jaya — vitória a Vós, vitória a Vós; jahi — por favor, derrotai; ajām — a eterna potência ilusória de māyā; ajita — ó invencível; doṣa — para criar discrepâncias; gṛbhīta — que assumiu; guṇām — as qualidades da matéria; tvam — Vós; asi — sois; yat — porque; ātmanā — em Vossa posição original; samavaruddha — completo; samasta — em todas; bhagaḥ — opulências; aga — inertes; jagat — e móveis; okasām — daqueles que possuem corpos materiais; akhila — de todas; śakti — as energias; avabodhaka — que despertais; te — Vós; kvacit — às vezes; ajayā — com Vossa energia material; ātmanā — e com Vossa energia espiritual interna; ca — também; carataḥ — ocupando; anucaret — podem apreciar; nigamaḥ — os Vedas.
Os śrutis disseram: Vitória, vitória a Vós, ó invencível! Por Vossa própria natureza, sois perfeitamente pleno em todas as opulências; portanto, por favor, derrotai o eterno poder da ilusão, que assume o controle dos modos da natureza para criar dificuldades para as almas condicionadas. Ó Vós que despertais todas as energias dos seres corporificados móveis e inertes, às vezes os Vedas podem reconhecer-Vos enquanto Vos divertis com Vossas potências material e espiritual.
SIGNIFICADO—Segundo Śrīla Jīva Gosvāmī, os vinte e oito versos das orações dos Vedas personificados (versos 14-41) representam as opiniões de cada um dos vinte e oito śrutis mais importantes. Essas Upaniṣads principais e outros śrutis versam sobre várias abordagens da Verdade Absoluta, e dentre eles são supremos aqueles śrutis que enfatizam o serviço devocional puro e exclusivo à Suprema Personalidade de Deus. As Upaniṣads dirigem nossa atenção para a Personalidade de Deus primeiro negando o que é distinto dEle e, então, definindo algumas de Suas características importantes.
Śrīla Viśvanātha Cakravartī interpreta as primeiras palavras desta oração, jaya jaya, como significando “por favor, revelai Vossa sobre-excelência”. Repete-se a palavra jaya ou por reverência ou por júbilo.
“Como devo revelar Minha excelência?”, o Senhor poderia perguntar.
Os śrutis respondem pedindo-Lhe que misericordiosamente destrua a ignorância de todos os seres vivos e os atraia para Seus pés de lótus.
O Senhor diz: “Mas māyā, que impõe ignorância às jīvas, é repleta de boas qualidades (gṛbhīta-guṇām). Por que devo opor-Me a ela?”
“Sim”, respondem os Vedas, “mas ela assumiu os três modos da natureza para confundir as almas condicionadas e fazê-las identificarem-se falsamente com seus corpos materiais. Seus modos de bondade, paixão e ignorância, além disso, são maculados (doṣa-gṛbhīta) porque não estais manifesto na presença deles.”
Os śrutis, então, dirigem-se ao Senhor como ajita, insinuando: “Só Vós não podeis ser vencido por māyā, ao passo que outros, como Brahmā, são derrotados por suas próprias falhas.”
O Senhor responde: “Mas que provas tendes de que ela não Me pode vencer?”
“A prova está no fato de que, em Vosso estado original, já realizastes a perfeição de todas as opulências.”
Neste ponto, o Senhor poderia objetar que apenas destruir a ignorância das jīvas não bastará para levá-las a Seus pés de lótus, pois a alma jīva, mesmo depois de dissipada sua ignorância, não pode alcançar o Senhor sem se ocupar no serviço devocional. Como o Senhor diz com Suas próprias palavras, bhaktyāham ekayā grāhyaḥ: “Eu só sou alcançado mediante o serviço devocional.” (Śrīmad-Bhāgavatam 11.14.21)
A essa objeção, os śrutis respondem: “Meu Senhor, ó Vós que despertais todas as energias, depois de criardes a inteligência e os sentidos dos seres vivos. Vós os inspirais a trabalhar duramente e gozar os frutos de seu trabalho. Além disso, por Vossa misericórdia, despertais a capacidade deles de seguir os caminhos progressivos de conhecimento, yoga místico e serviço devocional, permitindo-lhes avançar rumo a Vós em Vossos aspectos de Brahman, Paramātmā e Bhagavān, respectivamente. E quando jñāna, yoga e bhakti amadurecem, dotais os seres vivos de poder para realizar-Vos diretamente em cada um de Vossos três aspectos.”
Se o Senhor pedisse uma prova autorizada para apoiar esta afirmação dos Vedas personificados, eles responderiam com humildade: “Nós mesmos somos a prova. Em algumas ocasiões – como agora, a época da criação – associais-Vos com Vossa potência externa, māyā, ao passo que estais sempre presente com Vossa energia interna. É em momentos como este, quando Vossa atividade se manifesta externamente, que nós, os Vedas, podemos reconhecer-Vos em Vossa brincadeira.”
Dotados assim de autoridade por sua associação pessoal com o Senhor Supremo, os śrutis promulgam os processos de karma, jñāna, yoga e bhakti como vários meios para as almas condicionadas empregarem sua inteligência, sentidos, mente e vitalidade em busca da Verdade Absoluta.
Em muitas passagens, os Vedas glorificam as transcendentais qualidades pessoais do Supremo. O seguinte verso aparece na Śvetāśvatara Upaniṣad (6.11), Gopāla-tāpanī Upaniṣad (Uttara 97), e Brahma Upaniṣad (4.1):
eko devaḥ sarva-bhūteṣu gūḍhaḥ
sarva-vyāpī sarva-bhūtāntarātmā
karmādhyakṣaḥ sarva-bhūtādhivāsaḥ
sākṣī cetāḥ kevalo nirguṇaś ca
“O Senhor Supremo único vive oculto dentro de todas as coisas criadas. Ele permeia toda a matéria e está sentado no coração de todos os seres vivos. Como a Superalma que mora em seu coração, supervisiona suas atividades materiais. Assim, embora não tenha qualidades materiais, Ele é a única testemunha e aquele que proporciona consciência.”
As qualidades pessoais do Supremo são ainda descritas nas seguintes citações das Upaniṣads, yaḥ sarva-jñaḥ sa sarva-vid yasya jñāna-mayaṁ tapaḥ: “Ele que é onisciente, de quem provém a potência de todo o conhecimento – Ele é o mais sábio de todos” (Muṇḍaka Upaniṣad 1.1.9); sarvasya vaśī sarvasyeśānaḥ: “Ele é o Senhor e controlador de todos” (Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad 4.4.22); e yaḥ pṛthivyāṁ tiṣṭhan pṛthivyā āntaro yaṁ pṛthivī na veda: “Aquele que reside dentro da terra e a permeia, e que é desconhecido pela terra”. (Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad 3.7.3)
O papel do Senhor na criação é mencionado em muitas afirmações do śruti. A Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad (1.2.4) declara que so ’kāmayata bahu syām: “Ele desejou: ‘Vou tornar-Me muitos.’” A frase so ’kāmayata (“Ele desejou”) aqui indica que a personalidade do Senhor é eterna, pois, mesmo antes da criação, a Verdade Absoluta experimentou desejo, e desejo é um atributo exclusivo de pessoas. A Aitareya Upaniṣad (3.11) igualmente afirma que sa aikṣata tat-tejo ’sṛjata: “Ele viu, e Seu poder gerou a criação.” Neste trecho, a palavra tat-tejaḥ refere-se à expansão parcial do Senhor, Mahā-Viṣṇu, que lança Seu olhar para māyā e, assim, manifesta a criação material. Ou tat-tejaḥ pode referir-se ao aspecto impessoal Brahman do Senhor, Sua potência de existência eterna e onipenetrante. Como se descreve na Śrī Brahma-saṁhitā (5.40):
yasya prabhā prabhavato jagad-aṇḍa-koṭi-
koṭiṣv aśeṣa-vasudhādi-vibhūti-bhinnam
tad brahma niṣkalam anantam aśeṣa-bhūtaṁ
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi
“Adoro Govinda, o Senhor primordial, que é dotado de enorme poder. A refulgência deslumbrante de Sua forma transcendental é o Brahman impessoal, que é absoluto, completo e ilimitado e que manifesta as variedades de incontáveis planetas, com suas diferentes opulências, em milhões e milhões de universos.”
Resumindo esse verso, Śrīla Śrīdhara Svāmī ora:
jaya jayājita jahy aga-jaṅgamā-
vṛtim ajām upanīta-mṛṣā-guṇām
na hi bhavantam ṛte prabhavanty amī
nigama-gīta-guṇārṇavatā tava
“Todas as glórias, todas as glórias a Vós, o invencível! Por favor, derrotai a influência de Vossa eterna māyā, que encobre todas as criaturas móveis e inertes e que governa os modos da ilusão. Sem Vossa influência, todos esses mantras védicos seriam impotentes para cantar sobre Vós como o oceano de qualidades transcendentais.”