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VERSO 2

śrī-śuka uvāca
buddhīndriya-manaḥ-prāṇān
janānām asṛjat prabhuḥ
mātrārthaṁ ca bhavārthaṁ ca
ātmane ’kalpanāya ca

śrī-śukaḥ uvāca — Śukadeva Gosvāmī disse; buddhi — inteligência material; indriya — sentidos; manaḥ — mente; prāṇān — e ar vital; janānām — das entidades vivas; asṛjat — emitiu; prabhuḥ — o Senhor Supremo; mātra — do gozo dos sentidos; artham — por causa; ca — e; bhava — do nascimento (e atividades que se lhe seguem); artham — por causa; ca — e; ātmane — para a alma (e sua obtenção de felicidade na próxima vida; akalpanāya — para seu abandono final das motivações materiais; ca — e.

Śukadeva Gosvāmī disse: O Senhor Supremo manifestou a inteligência, sentidos, mente e ar vital materiais das entidades vivas para que estas pudessem satisfazer seus desejos de gozo dos sentidos, nascerem repetidas vezes para se ocuparem em atividades fruitivas, tornarem-se elevadas em vidas futuras e, por fim, alcançarem a liberação.

SIGNIFICADO—Na aurora da criação, quando as entidades vivas condicionadas se achavam adormecidas dentro do corpo transcendental do Senhor Viṣṇu, Ele iniciou o processo da criação produzindo as coberturas de inteligência, mente etc. para o benefício das entidades vivas. Como se afirma aqui, Viṣṇu é o Senhor independente (prabhu), e as enti­dades vivas são Seus jana, dependentes. Então, devemos compreen­der que o Senhor cria o cosmos inteiramente por causa das entidades vivas; compaixão é Seu único motivo.

Fornecendo corpos grosseiros e sutis às entidades vivas, o Senhor Supremo capacita as entidades vivas a buscarem o gozo dos sentidos e, na forma huma­na, a religiosidade, o desenvolvimento econômico e a liberação. Em cada corpo, a alma condicionada utiliza seus sentidos para o desfrute, e quando chega à forma humana, ela também deve cumprir vários deveres prescritos para ela nas diferentes fases de sua vida. Se cumprir fielmente seus deveres, ela ganhará um prazer mais refinado e duradouro no futuro; caso contrário, ela se degradará. E quando a alma por fim almeja libertar-se da vida material, o caminho da liberação está sempre disponível. Śrīla Viśvanātha Cakravartī comenta que o uso repetido da palavra ca (“e”) neste verso indica a importância de tudo o que o Senhor fornece – não só o caminho da liberação, mas também os caminhos da elevação gradual através da vida religiosa e do adequa­do gozo dos sentidos.

Em todos os seus empreendimentos, as entidades vivas dependem da misericórdia do Senhor para ter sucesso. Sem inteligência, sen­tidos, mente e ar vital, as entidades vivas não conseguem alcançar nada – nem elevação ao céu, purificação através do conhecimento, perfeição do sistema óctuplo de meditação ióguica, nem devoção pura atingida através do processo de bhakti-yoga, que começa por ouvir e cantar os nomes de Deus.

Se o Supremo providencia todas essas facilidades para o bem-estar das almas condicionadas, como Ele poderia ser impessoal? Longe de apresentar a Verdade Absoluta como impessoal em últi­ma análise, as Upaniṣads falam extensamente sobre Suas qualidades pessoais. O Absoluto descrito pelas Upaniṣads é livre de todas as qualidades materiais inferiores, mas, ainda assim, Ele é onisciente, onipotente, o amo e controlador de cada um e o reservatório de toda a eternidade, conhecimento e bem-aventurança. A Muṇḍaka Upaniṣad (1.1.9) declara que yaḥ sarva-jñaḥ sa sarva-vid yasya jñāna-mayaṁ tapaḥ: “Aquele que é onisciente, de quem provém a potência de todo o conhecimento – Ele é o mais sábio de todos.” Nas palavras da Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad (4.4.22, 3.7.3 e 1.2.4), sarvasya vāśī sarvasyeśānaḥ: “Ele é o Senhor e controlador de todos”; yaḥ pṛthivyāṁ tiṣṭhan pṛthivyā āntaraḥ: “Aquele que reside dentro da terra e a permeia”, e so ’kāmayata bahu syām: “Ele desejou: ‘Vou tornar­-Me muitos.’” De forma semelhante, a Aitareya Upaniṣad (3.11) de­clara que sa aikṣata tat tejo ’sṛjata: “Ele olhou para Sua potência, que então manifestou a criação”, enquanto a Taittirīya Upaniṣad (2.11) declara que satyaṁ jñānam anantaṁ brahma: “O Supremo é verdade e conhecimento ilimitados.”

A frase tat tvam asi, “Tu és aquilo” (Chāndogya Upaniṣad 6.8.7), cos­tuma ser citada pelos impersonalistas como confirmação da identida­de absoluta da alma jīva finita com seu criador. Śaṅkarācārya e seus seguidores elevam essas palavras à posição de um dos poucos mahā-vākyas, dizeres centrais que, segundo eles, exprimem o significado essencial do Vedānta. Os principais pensadores das clássicas escolas vaiṣṇavas de Vedānta, porém, discordam clamorosamente dessa interpretação. Os ācāryas Rāmānuja, Madhva, Baladeva Vidyābhūṣaṇa e outros ofereceram numerosas explicações alternativas segundo um estudo sistemático das Upaniṣads e outros śrutis.

A questão que Mahārāja Parīkṣit apresentou aqui – a saber, “Como é que os Vedas podem referir-se diretamente à Verdade Abso­luta?” – foi respondida da seguinte maneira por Śukadeva Gosvāmī: “O Senhor criou a inteligência e outros elementos em consideração aos seres vivos condicionados.” Um cético pode objetar que essa resposta não vem ao caso. Porém, a resposta de Śukadeva Gosvāmī de fato não é irrelevante, como explica Śrīla Viśvanātha Cakravartī. Res­postas a perguntas sutis muitas vezes devem ser formuladas indiretamente. Como o próprio Senhor Kṛṣṇa afirma em Suas instruções a Uddhava (Śrīmad-Bhāgavatam 11.21.35), parokṣa-vādā ṛṣayaḥ parokṣaṁ mama ca priyam: “Os videntes e mantras védicos falam em termos esotéricos, e também fico satisfeito com tais descrições confidenciais.” No presente contexto, os impersonalistas, em nome de quem Mahārāja Pa­rīkṣit fez esta pergunta, não podem apreciar a resposta direta, então, em lugar dela, Śukadeva Gosvāmī apresenta uma resposta indireta: “Dizes que o Brahman não pode ser descrito por palavras. Todavia, se o Senhor Supremo não tivesse criado a inteligência, mente e sentidos, então o som e os outros objetos de percepção seriam todos tão indescritíveis como o teu Brahman. Terias sido cego e surdo de nascença, e não sa­berias nada das formas e sons físicos, isso para não falar do Abso­luto. Então, assim como o Senhor misericordioso nos deu todas as faculdades de percepção para experimentar e descrever aos outros as sensações de visão, som etc., Ele também pode dar a alguém a capacidade receptiva para compreender o Brahman. Ele poderá, se assim o quiser, criar algum modo extraordinário para o funcionamen­to das palavras – além de suas referências ordinárias a substâncias, qualidades, categorias e ações materiais – que lhes possibilitarão exprimir a Verdade Suprema. Ele é, afinal, o Senhor onipotente (prabhu) e pode, sem dificuldades, tornar descritível o indescritível.”

O Senhor Matsya assegura ao rei Satyavrata que a Verdade Abso­luta pode ser conhecida através das palavras dos Vedas:

madīyaṁ mahimānaṁ ca
paraṁ brahmeti śabditam
vetsyasy anugrahītaṁ me
sampraśnair vivṛtaṁ hṛdi

“Serás completamente orientado e favorecido por Mim, e devido às tuas perguntas, tudo sobre Minhas glórias, que são conhecidas como paraṁ brahma, será manifesto dentro do teu coração. Assim, conhe­cerás tudo acerca de Mim.” (Śrīmad-Bhāgavatam 8.24.38)

A alma afortunada que foi agraciada pelo Senhor Supremo com o divino desejo de saber fará perguntas sobre a natureza do Absoluto e, ouvindo as respostas dadas pelos grandes sábios, registradas nos textos védicos, ela compreenderá o Senhor como Ele é. Assim, apenas pela misericórdia especial da Pessoa Suprema é que o Brahman se torna śabditam, “literalmente denotado por palavras”. De outro modo, sem a graça excepcional do Senhor, as palavras dos Vedas não podem revelar a Verdade Absoluta.

Śrīla Viśvanātha Cakravartī sugere que a palavra buddhi neste verso falado por Śukadeva Gosvāmī pode indicar o mahat-tattva, do qual evoluem as várias expansões do éter (tais como o som), que são designadas aqui como indriya. Mātrārtham, portanto, significa “a fim de usar o som transcendental para descrever o Brahman”, pois, precisamente com esse propósito, o Senhor Supremo inspirou a prakṛti a desenvol­ver o éter e o som.

Outro entendimento da finalidade da criação é expresso pelas palavras bhavārtham e ātmane kalpanāya (se for tomada a leitura kalpanāya em lugar de akalpanāya). Bhavārtham significa “para o bem das entidades vivas”. A adoração (kalpanam) do Eu Supremo (ātma­ne) é o meio pelo qual as entidades vivas podem cumprir a divina finalidade para a qual elas existem. Inteligência, mente e sentidos destinam-se a ser usados para adorar o Senhor Supremo, quer a entidade viva já os tenha elevado ao estado de purificação transcendental, quer não.

Como tanto os devotos purificados quanto os não purificados usam sua inteligência, mente e sentidos na adoração ao Senhor é algo descrito em referência à seguinte citação da Gopāla-tāpanī Upaniṣad (Pūrva 12):

sat-puṇḍarīka-nayanaṁ
meghābhaṁ vaidyutāmbaram
dvi-bhujaṁ mauna-mudrāḍhyaṁ
vana-mālinam īśvaram

“O Senhor Supremo, que apareceu em Sua forma de dois braços, tinha divinos olhos de lótus, pele cor de nuvem e roupas semelhantes ao raio. Ele usava uma guirlanda de flores silvestres, e Sua beleza se realçava por Sua pose de meditação silenciosa.” A inteligência e os sentidos transcendentais dos devotos perfeitos do Senhor percebem corretamente Sua beleza puramente espiritual, e suas rea­lizações ecoam na comparação dos olhos, corpo e roupas do Senhor Kṛṣṇa ao lótus, à nuvem e ao raio feita no Gopāla-tāpanī-śruti. Por outro lado, os devotos no nível de sādhana, que estão no proces­so de purificação, realizaram apenas pobremente a ilimitada beleza espiritual do Senhor Supremo. Não obstante, ouvindo passagens das escrituras tais como esta da Gopāla-tāpanī Upaniṣad, eles se ocupam em contemplá-lO segundo o melhor de sua capacidade, apesar de toda a inexperiência. Embora os devotos neófitos ainda não tenham aprendido a realizar por completo o Senhor ou a meditar com constância sequer na refulgência que rodeia Seu corpo, mesmo assim eles sentem prazer em presumir: “Estamos meditando em nosso Senhor.” E o Senhor Supremo, levado pelas ondas de Sua misericórdia sem limites, pensa: “Estes devotos estão meditando em Mim.” Quando a devoção deles amadurece, o Senhor os atrai para Seus pés a fim de que se ocupem em Seu serviço íntimo. Desse modo, conclui-se que os Vedas têm acesso à identidade pessoal do Supremo apenas devido à Sua misericórdia.

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