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VERSO 8

śrī-bhagavān uvāca
yasyāham anugṛhṇāmi
hariṣye tad-dhanaṁ śanaiḥ
tato ’dhanaṁ tyajanty asya
svajanā duḥkha-duḥkhitam

śrī-bhagavān uvāca — a Personalidade de Deus disse; yasya — a quem; aham — Eu; anugṛhṇāmi — favoreço; hariṣye — arrebatarei; tat — dele; dhanam — riqueza; śanaiḥ — aos poucos; tataḥ — então; adhanam — pobre; tyajanti — abandonam; asya — dele; sva-janāḥ — parentes e amigos; duḥkha-duḥkhitam — que sofre uma aflição atrás da outra.

A Personalidade de Deus disse: Se concedo favor especial a alguém, Eu o privo aos poucos de sua riqueza. Então, os parentes e amigos de tal homem empobrecido o abandonam. Desse modo, ele sofre uma aflição atrás da outra.

SIGNIFICADO—Os devotos do Senhor Supremo experimentam tanto felicidade quanto aflição – não como consequências do trabalho material, mas como efeitos incidentais de seu intercâmbio amoroso com o Senhor. Śrīla Rūpa Gosvāmī, no Śrī Bhakti-rasāmṛta-sindhu, seu tratado definitivo sobre o processo do serviço devocional, explica como um vaiṣṇava se alivia de todas as reações kármicas, inclusive aquelas que ainda não começaram a se manifestar (aprārabdha), aquelas que estão bem prestes a se manifestar (kūṭa), aquelas que estão longe de se manifestar (bīja) e aquelas que se manifestaram totalmente (prārabdha). Assim como o lótus perde gradualmente suas muitas pétalas, alguém que se refugia no serviço devocional tem todas as suas reações kármicas destruídas.

Confirma-se também nesta passagem do Gopāla-tāpanī-śruti (Pūrva 15) que o serviço devocional ao Senhor Kṛṣṇa erradica todas as reações kármicas, bhaktir asya bhajanaṁ tad ihāmutropādhi-nairāsyenāmuṣmin manaḥ-kalpanam etad eva naiṣkarmyam: “O serviço devocional é o processo de adoração ao Senhor Supremo. Ele con­siste em fixar a mente no Senhor e, ao mesmo tempo, desinteressar-se de todas as designações materiais, tanto nesta vida quanto na próxi­ma, e resulta na dissolução de todo o karma.” Embora seja decerto verdadeiro que aqueles que praticam serviço devocional permanecem em corpos materiais e em situações aparentemente materiais por algum tempo, isso é uma simples expressão da inconcebível miseri­córdia do Senhor, que concede os frutos da devoção apenas quando esta se tornou pura. Em cada fase da devoção, porém, o Senhor cuida de Seu devoto e Se encarrega de eliminar aos poucos o seu karma. Assim, apesar do fato de a felicidade e a aflição que os devotos experimen­tam parecerem reações kármicas ordinárias, elas, em verdade, são dadas pelo próprio Senhor. Como afirma o Bhāgavatam (10.87.40), bhavad-uttha-śubhāśubhayoḥ: Um devoto maduro reconhece as condições superficialmente boas e más com que se encontra como sendo sinais da orientação direta de seu Senhor, seu eterno benquerente.

Mas se o Senhor é tão compassivo com Seus devotos, por que Ele os expõe a tamanho sofrimento? A isso, responde-se com uma analogia: Um pai muito afetuoso assume a responsabilidade de restringir as brincadeiras de seus filhos e fazê-los irem para a escola. Ele sabe que esta é uma genuína expressão de seu amor por eles, mesmo que as crianças não consigam entender. De modo semelhan­te, o Supremo Senhor Viṣṇu é misericordiosamente estrito com todos os Seus dependentes, e não apenas com devotos imaturos que estão lutando para se tornarem qualificados. Mesmo santos perfeitos como Prahlāda, Dhruva e Yudhiṣṭhira foram submetidos a grandes tribulações – tudo para a glorificação deles. Depois da Batalha de Kurukṣetra, Śrī Bhīṣ­madeva descreveu ao rei Yudhiṣṭhira sua admiração por esse fato:

yatra dharma-suto rājā
gadā-pāṇir vṛkodaraḥ
kṛṣṇo ’strī gāṇḍivaṁ cāpaṁ
suhṛt kṛṣṇas tato vipat

na hy asya karhicid rājan
pumān vetti vidhitsitam
yad-vijijñāsayā yuktā
muhyanti kavayo ’pi hi

“Oh! Quão maravilhosa é a influência do tempo inevitável! É irreversível – de outro modo, como poderia haver reveses na presença do rei Yudhiṣṭhira, o filho do semideus controlador da religião; de Bhīma, o grande lutador de maça; do grande arqueiro Arjuna com sua poderosa arma Gāṇḍīva; e, acima de tudo, do Senhor, o benquerente direto dos Pāṇḍavas? Ó rei, ninguém pode conhecer o plano do Senhor [Śrī Kṛṣṇa]. Embora grandes filósofos indaguem exaustivamente, eles ficam confusos.” (Śrīmad-Bhāgavatam 1.9.15-16)

Embora a felicidade e o sofrimento de um vaiṣṇava sejam sentidos como prazer e dor, exatamente como reações kármicas, eles são diferentes de uma maneira significativa. A felicidade e o sofrimento materiais, que surgem do karma, deixam um resíduo sutil – a semente de enredamento futuro. Tais prazeres e sofrimentos levam à degradação e aumentam o perigo de cair em esquecimento infernal. A felicidade e o sofrimento gerados dos desejos do Senhor Supremo, todavia, não deixam vestígios depois de alcançados seus propósitos imediatos. Além disso, o vaiṣṇava que desfruta desse intercâmbio com o Senhor não corre o risco de cair na ignorância. Como Yamarāja, o senhor da morte e o juiz de todas as almas que partiram, declara:

jihvā na vakti bhagavad-guṇa-nāmadheyaṁ
cetaś ca na smarati tac-caraṇāravindam
kṛṣṇāya no namati yac-chira ekadāpi
tān ānayadhvam asato ’kṛta-viṣṇu-kṛtyān

“Meus queridos servos, por favor, trazei-me apenas aquelas pessoas pecaminosas que não usam suas línguas para cantar o santo nome e as qualidades de Kṛṣṇa, cujos corações nem mesmo uma vez se lembram­ dos pés de lotus de Kṛṣṇa, e cujas cabeças nem mesmo uma vez prostram-se diante do Senhor Kṛṣṇa. Enviai-me aqueles que não executam os deveres que lhes cabem prestar a Viṣṇu, e que são os únicos deveres da vida humana. Por favor, trazei-me todos esses tolos e patifes.” (Śrīmad-Bhāgavatam 6.3.29) 

Os amados devotos do Senhor não consideram como muito mo­lesto o sofrimento que Ele lhes impõe. De fato, eles descobrem que, no final, ele dá origem a um prazer ilimitado, assim como um unguento ardido aplicado por um médico cura o olho infeccionado de seu pa­ciente. Além disso, o sofrimento, por desencorajar intrusões dos in­fiéis, ajuda a proteger o caráter confidencial do serviço devocional, e também aumenta a avidez com que os devotos invocam o apareci­mento do Senhor. Se os devotos do Senhor Viṣṇu estivessem tran­quilamente felizes o tempo todo, Ele jamais teria razões para aparecer neste mundo como Kṛṣṇa, Rāmacandra, Nṛsiṁha etc. Como o próprio Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (4.8):

paritrāṇāya sādhūnāṁ
vināśāya ca duṣkṛtām
dharma-saṁsthāpanārthāya
sambhavāmi yuge yuge

“Para libertar os piedosos e aniquilar os canalhas, bem como para restabelecer os princípios da religião, Eu mesmo apareço, milênio após milênio.” E se o Senhor não aparecesse na Terra em Sua forma original de Kṛṣṇa e nas formas de várias encarnações, Seus fiéis servos neste mundo não teriam a oportunidade de desfrutar de Sua rāsa­-līlā e outros passatempos.

Śrīla Viśvanātha Cakravartī aqui apresenta uma possível objeção: “Que transgressão haveria no fato de o Senhor encarnar por alguma outra razão senão para libertar as pessoas santas do sofrimento?” O erudito ācārya responde: “Sim, meu caro irmão, isso é sensato, mas não és perito em compreender os humores espirituais. Ouve, por favor: É de noite que o nascer do Sol é atraente, é durante o quente verão que a água fria dá conforto, e é durante os frios meses de inverno que a água quente é agradável. A luz da lamparina parece atraente na es­curidão, não na luz ofuscante do dia, e quando a fome nos aflige, a comida tem um sabor todo especial.” Em outras palavras, para for­talecer a atitude de Seus devotos de depender dEle e de ansiar por Ele, o Senhor faz com que Seus devotos passem por algum sofrimento, e, quando Ele aparece para salvá-los, a gratidão e prazer transcen­dental deles não têm limites.

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