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Capítulo Quinze

Explicação do Verso Ātmārāma do Śrīmad-Bhāgavatam

O Senhor Caitanya explicou a seguir um verso muito famoso, conhecido como o verso ātmārāma, que aparece no Śrīmad-Bhāgavatam como segue:

ātmārāmāś ca munayo
  nirgranthā apy urukrame
kurvanty ahaitukīṁ bhaktim
  ittham-bhūta-guṇo hariḥ

Este verso indica que aqueles que são almas liberadas e completamente autossatisfeitos, enfim se tornarão devotos do Senhor. Este preceito é dirigido sobretudo aos impersonalistas, pois estes não têm informação sobre a Suprema Personalidade de Deus. Eles tentam permanecer satisfeitos com a compreensão do Brahman impessoal, mas Kṛṣṇa é tão atrativo e forte que atrai suas mentes. Este é o significado deste verso.

Este verso fora explicado antes a um grande vedantista conhecido como Sārvabhauma Bhaṭṭācārya. Depois de aceitar os ensinamentos do Senhor Caitanya, Sanātana Gosvāmī referiu-se a este incidente e implorou ao Senhor que voltasse a explicar o verso ātmārāma. Kavirāja Gosvāmī, o autor do Caitanya-caritāmṛta, apreciando as explicações do Senhor sobre o verso ātmārāma, também glorificou o Senhor Caitanya em suas orações.

Prostrando-se aos pés do Senhor Caitanya, Sanātana Gosvāmī pediu-Lhe que explicasse o verso, como outrora o explicara a Sārvabhauma Bhaṭṭācārya. Sanātana mostrou sua avidez por ouvir a mesma explicação, e poder, assim, iluminar-se. Ao ser solicitado por Sanātana, o Senhor respondeu: “Não entendo por que Sārvabhauma Bhaṭṭācārya apreciou tanto a Minha explicação. Quanto a Mim, nem mesmo Me lembro do que lhe falei. Porém, porque estás Me pedindo, tentarei, com a ajuda de tua companhia, explicar tudo o que puder lembrar”. Dessa maneira, o orador e a audiência estão muito intimamente ligados; o orador é iluminado pela presença da audiência. O orador, ou mestre, pode falar muito bem sobre assuntos transcendentais diante de uma audiência sábia; por isso o Senhor Caitanya disse que não sabia como explicar o verso sânscrito, mas, devido à presença de Sanātana, Ele tentaria explicá-lo.

O Senhor, então, mostrou que existem onze termos no verso ātmārāma: (1) ātmārāmāḥ, (2) ca, (3) munayaḥ, (4) nirgranthāḥ (5) api, (6) urukrame, (7) kurvanti, (8) ahaitukīm, (9) bhaktim, (10) itthambhūta-guṇaḥ e (11) hariḥ. O Senhor começou a explicar cada um dos termos. Com relação ao termo ātmārāma, o Senhor explicou que a palavra ātmā é usada para indicar: (1) a Suprema Verdade Absoluta, (2) o corpo, (3) a mente, (4) esforço, (5) convicção, (6) inteligência e (7) natureza. A palavra ārāma significa desfrutador; portanto, qualquer um que tem prazer em cultivar o conhecimento destes sete itens é conhecido como ātmārāma. O Senhor então explicou sobre as diversas classes de ātmārāmas, ou transcendentalistas. Quanto à palavra munayaḥ, ou muni, aqueles que são eminentes pensadores são chamados munis. Às vezes, a palavra muni também é aplicada a pessoas que são muito graves. Eminentes sábios, ascetas, místicos e acadêmicos eruditos também são chamados munis.

A palavra seguinte, nirgrantha, indica liberdade do aprisionamento da ilusão. Nirgrantha também significa “aquele que não tem ligação com preceitos escriturais”. Grantha significa escrituras reveladas, e nir é um afixo usado para exprimir “não ligação”, “construção” e também “proibição”. Existem muitas instruções para atingir-se a realização espiritual, mas as pessoas que não têm conexão com tais preceitos escriturais também são conhecidas como nirgrantha. Há muitas pessoas que são tolas, de baixo nascimento, malcomportadas e que desconhecem as escrituras e preceitos revelados, sendo por isso chamadas nirgrantha. Porque grantha também denota “propósito de buscar riquezas”, a palavra nirgrantha também indica um homem pobre, desprovido de riqueza, que está tentando buscá-la.

A palavra urukrama indica uma pessoa sumamente poderosa. A palavra krama exprime o ato de caminhar, e a palavra urukrama indica alguém que pode dar passos muito longos. O maior passo foi dado pelo Senhor Vāmanadeva, que cobriu o Universo inteiro com dois passos. Assim, a palavra urukrama indica o Supremo Senhor Vāmanadeva. Esta característica extraordinária do Senhor Vāmanadeva é explicada da seguinte maneira no Śrīmad-Bhāgavatam (2.7.40):

viṣṇor nu vīrya-gaṇanāṁ katamo ’rhatīha
  yaḥ pārthivāny api kavir vimame rajāṁsi
caskambha yaḥ sva-raṁhasāskhalatā tri-pṛṣṭhaṁ
  yasmāt tri-sāmya-sadanād uru-kampayānam

“Ninguém pode estimar as inconcebíveis potências do Senhor Viṣṇu. Mesmo que alguém possa contar o número de combinações atômicas deste mundo material, ainda assim não poderá contar as diferentes energias do Senhor Supremo. Sob Sua encarnação como Vāmanadeva, o Senhor foi tão poderoso que, pelo simples fato de dar um passo, cobriu o Universo inteiro, de Brahmaloka a Pātālaloka.”

As energias inconcebíveis do Senhor estão espalhadas por toda a criação. Ele é onipenetrante, e, através de Suas energias, sustém todos os sistemas planetários, e ainda assim, por meio de Sua potência de prazer, permanece em Sua morada pessoal, conhecida como Goloka. Mediante a expansão de Sua opulência, Ele está presente em todos os planetas Vaikuṇṭhas como Nārāyaṇa. Ao expandir Sua energia material, Ele cria inumeráveis universos, cheios de inumeráveis planetas. Assim, ninguém pode estimar as atividades maravilhosas do Senhor Supremo, e, portanto, o Senhor Supremo é conhecido como urukrama, o ator maravilhoso. No dicionário Viśva-prakāśa, define-se a palavra krama como “uma hábil mostra de energias” e também como “dando passos muito rápidos”.

A palavra kurvanti significa “trabalhar para outros”. Existe outra palavra semelhante a esta que é usada quando as atividades de uma pessoa são para o próprio gozo dos sentidos, mas a palavra kurvanti é usada quando as atividades são executadas para a satisfação do Supremo. Logo, neste verso, a palavra só pode indicar a prestação de transcendental serviço ao Senhor.

A palavra hetu indica razão ou causa. Em geral, as pessoas estão ocupadas em atividades transcendentais por três razões: algumas buscam a felicidade material, outras, a perfeição mística, e ainda outras querem a liberação do aprisionamento material. Com relação ao desfrute material, existe tamanha variedade, que é impossível enumerar. No tocante às perfeições dos poderes místicos, existem oito, e quanto às classes de liberação do cativeiro material, existem cinco. O estado de existência onde todas estas variedades de desfrutes brilham pela ausência chama-se ahaitukī. Menciona-se em especial a qualificação ahaitukī, pois através do serviço ahaitukī ao Senhor, pode-se alcançar o Seu favor.

Pode-se aplicar a palavra bhakti de dez maneiras distintas. Dentre essas dez maneiras, encontra-se sādhana-bhakti, ou serviço devocional ocupacional. As outras nove são chamadas prema-bhakti, amor a Deus. Aqueles que estão situados na posição neutra alcançam a perfeição até o amor a Deus. Da mesma forma, os que estão situados na relação de senhor e servo alcançam amor a Deus até o nível de apego. Os que estão relacionados em amizade alcançam amor a Deus até o ponto da fraternidade. Os que estão no nível de amor a Deus como Seus pais são elevados ao ponto da emoção transcendental. Porém, apenas os que estão relacionados com o Supremo em amor conjugal podem experimentar o êxtase máximo. Logo, existem diversos significados para a palavra bhakti.

O Senhor então explicou os diferentes significados de itthambhūta-guṇa. Ittham bhūta exprime prazer transcendental completo, diante do qual, o prazer transcendental conhecido como brahmānanda torna-se como palha. No Hari-bhakti-sudhodaya (14.36), um devoto diz:

tvat-sākṣāt-karaṇāhlāda-
  viśuddhābdhi-sthitasya me
sukhāni goṣpadāyante
  brāhmāṇy api jagad-guro

“Ó meu Senhor Supremo! Apenas por entender-Vos ou ver-Vos, o prazer que adquirimos é tão grande que o prazer de brahmānanda se torna insignificante.” Em outras palavras, o prazer adquirido por entendermos Kṛṣṇa como Ele é – como o reservatório todo-atrativo de todos os prazeres e de todos os sabores prazerosos plenos de todas as qualificações transcendentais – atrai-nos a sermos Seus devotos. Em virtude de tal atração, podem-se abandonar as atividades fruitivas e todos os esforços por alcançar a liberação e pode-se até mesmo abandonar o intenso desejo de lograr sucesso no poder místico do yoga. A atração por Kṛṣṇa é tão intensa que a pessoa pode perder o respeito por todos os outros meios de autorrealização e apenas render-se à Suprema Personalidade de Deus.

O Senhor também explicou a palavra guṇa em todos os seus diferentes significados. Guṇa indica as ilimitadas qualidades transcendentais de Kṛṣṇa, sobretudo Sua forma sac-cid-ānanda. Em Seu conhecimento, eternidade e bem-aventurança transcendentais, Ele é completamente perfeito, e Sua perfeição aumenta quando Ele é controlado pela atenção de Seu devoto. Deus é tão bondoso e misericordioso que pode dar a Si próprio em troca do serviço devocional do devoto. Suas qualidades transcendentais são tamanhas que a perfeição de Sua beleza, de Sua reciprocação amorosa com os devotos e o sabor de Suas qualidades transcendentais, atraem diversas classes de transcendentalistas e almas liberadas. Por exemplo, Ele atraiu a mente de Sanaka Kumāra simplesmente pelo aroma das flores a Ele oferecidas. A mente de Śukadeva Gosvāmī foi atraída pelos passatempos transcendentais do Senhor Kṛṣṇa, e as mentes das donzelas de Vṛndāvana foram atraídas por Sua beleza pessoal. A atenção de Rukmiṇī foi atraída pelos traços corpóreos e qualidades transcendentais dEle, e a mente da deusa da fortuna foi atraída pelo tocar de Sua flauta e outras características transcendentais. O Senhor Kṛṣṇa atrai a mente de todas as moças e senhoras por meio de Suas atividades infantis. Ele também atrai a mente de Seus amigos em virtude de Suas atividades amistosas. Ao aparecer em Vṛndāvana, Ele atraiu até mesmo os pássaros, animais, árvores e plantas. Na realidade, todos se atraíam amorosa e afetuosamente por Kṛṣṇa.

A palavra hari tem diferentes significados, entre os quais, dois são mais importantes. Hari significa que Ele afasta todas as coisas inauspiciosas da vida do devoto e atrai sua mente concedendo-lhe transcendental amor a Deus. Kṛṣṇa é tão atrativo que qualquer um que consiga lembrar-se dEle, de alguma maneira livra-se das quatro espécies de misérias materiais. O Senhor dedica atenção especial a Seu devoto e livra-o das reações às várias atividades pecaminosas, que são obstáculos ao avanço no serviço devocional. Isto se chama desarraigar a influência da ignorância. Pelo simples fato de ouvir sobre Kṛṣṇa, desenvolve-se amor por Ele. Esta é a dádiva do Senhor. Por um lado, Ele afasta as coisas inauspiciosas e, por outro, Ele outorga o que é mais auspicioso. Este é o significado de hari. Quando alguém desenvolveu amor a Deus, seu corpo, mente e tudo mais são atraídos pelas qualidades transcendentais do Senhor. Tal é o poder das atividades misericordiosas e das qualidades transcendentais de Kṛṣṇa. Ele é tão atrativo que, devido a seu apego transcendental, o devoto abandonará todos os quatro princípios da vida espiritual – religiosidade, desenvolvimento econômico, regulação do gozo dos sentidos e salvação.

As palavras api e ca são advérbios e podem ser usadas para quase todo propósito. A palavra ca, ou “e”, pode exprimir sete significados distintos na construção completa da frase.

O Senhor estabeleceu assim o sentido das onze palavras do verso ātmārāma, e então passou a explicar o sentido de cada termo da seguinte maneira. A palavra brahman indica o supremo sob todos os aspectos. O Senhor é supremo em todas as opulências. Ninguém pode excedê-lO em riqueza, força, fama, beleza, conhecimento e renúncia. Assim a palavra brahman indica a Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa. No Viṣṇu Purāṇa (1.12.57), emprega-se a palavra brahman para indicar o maior de todos; o Senhor Supremo é o maior, e Ele expande-Se como o maior ilimitadamente. Talvez alguém possa conceber a grandiosidade de Brahman, mas ainda assim, esta grandiosidade aumenta de tal maneira que ninguém poderá estimar quão grande Ele realmente é.

A Suprema Personalidade de Deus é compreendida em três aspectos, mas eles são todos o mesmo. A Verdade Absoluta, a Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa, é eterno. No Śrīmad-Bhāgavatam (2.9.33), afirma-se que Ele existia antes da manifestação deste mundo cósmico, que Ele existe durante esta manifestação, e que Ele continua a existir depois da sua aniquilação. Portanto, Ele é a alma de tudo o que é grandioso. Ele é onipenetrante e onisciente, Ele é a suprema forma de tudo.

Existem três diferentes processos transcendentais mencionados na literatura védica através dos quais se pode entender e alcançar a suprema perfeição da Verdade Absoluta. Eles são conhecidos como o processo de conhecimento, do yoga místico e do serviço devocional. Os seguidores destes três processos compreendem a Verdade Absoluta sob três aspectos distintos. Quem segue o processo de conhecimento compreende-O como o Brahman impessoal; quem segue o processo do yoga compreende-O como a Superalma localizada; e quem segue o processo do serviço devocional compreende-O como a Suprema Personalidade de Deus, Śrī Kṛṣṇa. Em outros termos, mesmo que a palavra Brahman indique Kṛṣṇa e nada mais, ainda assim, de acordo com o processo seguido, o Senhor é compreendido sob três aspectos distintos.

No tocante ao serviço devocional, existem duas divisões. O início do processo chama-se vidhi-bhakti, ou serviço devocional com princípios reguladores. A etapa mais avançada chama-se rāga-bhakti, ou serviço devocional em amor puro.

A Suprema Personalidade de Deus é a Verdade Absoluta, porém, Ele também Se manifesta através das expansões de Suas diferentes energias. Aqueles que seguem os princípios reguladores do serviço devocional alcançam afinal os planetas Vaikuṇṭhas no mundo espiritual, mas quem segue os princípios do amor em serviço devocional alcança a morada suprema, o planeta mais elevado do mundo espiritual, conhecido como Kṛṣṇaloka ou Goloka Vṛndāvana.

Os transcendentalistas também podem ser classificados em três categorias. A palavra akāma refere-se a alguém que não tenha nenhum desejo material. Mokṣa-kāma refere-se a quem procura libertar-se das misérias materiais, e sarva-kāma, a quem deseja obter desfrute material. O transcendentalista mais inteligente abandona todos os outros processos e ocupa-se em serviço devocional ao Senhor, mesmo que ainda possa ter muitos desejos. Não é através de nenhuma espécie de atividade transcendental, ou seja, a ação fruitiva, o cultivo de conhecimento, ou o cultivo do yoga místico, que alguém alcança a perfeição mais elevada. Entretanto, em comparação com o serviço devocional, todos os outros processos transcendentais são como tetas no pescoço de um bode. Podem-se apertar as tetas no pescoço de um bode, mas elas não suprem leite. Se alguém quer alcançar verdadeira perfeição em seu processo, deve aceitar o serviço devocional a Kṛṣṇa.

Na Bhagavad-gītā (7.16), afirma-se:

catur-vidhā bhajante māṁ
  janāḥ sukṛtino ’rjuna
ārto jijñāsur arthārthī
  jñānī ca bharatarṣabha

“Ó melhor entre os Bhāratas [Arjuna], quatro classes de homens piedosos prestam-Me serviço devocional: o aflito, o desejoso de riquezas, o inquiridor e o que busca conhecer o Absoluto.” Ao acumularem atividades virtuosas, estas quatro classes de pessoas aproximam-se do serviço devocional ao Senhor. Dentre estas quatro, os aflitos e os desejosos de riquezas, são chamados devotos com desejos, enquanto os outros dois, o inquiridor e o que busca sabedoria, têm por objetivo a liberação. Porque adoram Kṛṣṇa, todos eles são considerados muito afortunados. Se eles, no devido tempo, abandonam todos os desejos e tornam-se devotos puros do Senhor Supremo, podem ser considerados os mais afortunados. Tais iniciantes afortunados só podem progredir caso estejam na companhia dos devotos puros do Senhor Kṛṣṇa. Ao associar-se com devotos puros, a pessoa também se torna um devoto puro. Confirma isto o Śrīmad-Bhāgavatam (1.10.11):

sat-saṅgān mukta-duḥsaṅgo
  hātuṁ notsahate budhaḥ
kīrtyamānaṁ yaśo yasya
  sakṛd ākarṇya rocanam

“Uma pessoa realmente inteligente consegue – em virtude da associação com os devotos puros – ouvir sobre o Senhor Kṛṣṇa e Suas atividades.” Estas atividades são tão atrativas que, ao ouvir falar delas, a pessoa não consegue abandonar a companhia do Senhor.

À exceção da companhia dos devotos puros, toda associação é kaitava, ou fraudulenta. Isto é confirmado no Primeiro Canto do Śrīmad-Bhāgavatam, onde se afirma que todos os processos fraudulentos, que obstruem a realização transcendental, devem ser atirados fora. Através do Śrīmad-Bhāgavatam pode-se entender a realidade como ela é, e tal entendimento ajuda a transcender as três espécies de misérias materiais. O Śrīmad-Bhāgavatam foi compilado pelo mais eminente sábio, Vyāsadeva, e é uma obra advinda de sua experiência madura. Ao entender o Śrīmad-Bhāgavatam e prestar serviço devocional, a pessoa pode conquistar de imediato o Senhor Supremo em seu coração.

O Senhor Caitanya explicou, então, que a palavra projjhita significa “desejo de liberação”. Um grande comentador explicou que desejar a liberação é o mais obstrutivo impedimento no caminho da compreensão de Deus. Se, de algum modo, alguém vem a Kṛṣṇa e passa a ouvir sobre Ele, Kṛṣṇa é tão bondoso que lhe concede Seus pés de lótus como centro. Tendo tal ponto focal, o devoto ou transcendentalista se esquece de tudo e se ocupa em serviço devocional ao Senhor. Quando alguém se aproxima do Senhor mediante o serviço devocional, ou completa consciência de Kṛṣṇa, a recompensa é o próprio Supremo. Uma vez entregue ao Supremo, a pessoa não busca mais nada, como fariam o homem aflito ou o que deseja posses materiais. O método de serviço devocional, o próprio serviço, a companhia dos devotos puros e a misericórdia imotivada do Senhor, todos agem tão maravilhosamente que a pessoa abandona todas as outras atividades e absorve-se em Kṛṣṇa, mesmo que seja um homem aflito, desejoso de posses materiais, inquiridor ou realmente sábio que cultiva conhecimento.

Em resumo, Kṛṣṇa é o significado implícito em cada palavra do verso ātmārāma. Até este ponto, o Senhor Caitanya apresentou apenas a introdução do verso ātmārāma. A seguir, Ele explica a verdadeira posição desse verso.

Duas classes de transcendentalistas cultivam o conhecimento. Uma adora o Brahman impessoal e a outra deseja a liberação. Porque adoram o aspecto impessoal do Brahman, os monistas são chamados de adoradores do Brahman. Estes ainda se dividem em três categorias: o neófito, o que está absorto na compreensão do Brahman e o que é verdadeiramente autorrealizado como Brahman. Se acrescentarmos o serviço devocional, ao conhecedor do Brahman, este poderá se liberar; caso contrário, não há tal possibilidade.

Conclui-se que qualquer um que esteja completamente ocupado no serviço devocional em consciência de Kṛṣṇa, já consumou a realização de Brahman. O serviço devocional é tão poderoso que atrai a Kṛṣṇa até mesmo alguém situado na plataforma de adoração a Brahman. O Senhor concede ao devoto a perfeição de um corpo espiritual; e ele se ocupa eternamente no transcendental serviço a Kṛṣṇa. Quando entende as qualidades transcendentais de Kṛṣṇa e fica atraído por elas, o devoto de todo o coração, ocupa-se em serviço devocional. Por exemplo, os quatro Kumāras e Śukadeva Gosvāmī eram liberados desde o começo, ainda assim, depois que ficaram atraídos aos passatempos de Kṛṣṇa, tornaram-se devotos. Sanaka Kumāra foi atraído pelo aroma das flores oferecidas a Kṛṣṇa; e os outros Kumāras, pelas qualidades transcendentais do Senhor e, por isso, ocuparam-se em Seu serviço devocional. Os nove místicos mencionados no Décimo Primeiro Canto do Śrīmad-Bhāgavatam eram transcendentalistas desde o nascimento, em virtude de terem ouvido Brahmā, Śiva e Nārada falarem sobre as qualidades transcendentais de Kṛṣṇa.

Às vezes, alguém fica atraído por Kṛṣṇa e por Suas qualidades transcendentais pelo simples fato de olhar as belas feições do Seu corpo transcendental. Assim, ele abandona o desejo de atingir a liberação e ocupa-se em Seu serviço devocional. O devoto lamenta seu desperdício de tempo no suposto cultivo de conhecimento e torna-se um devoto puro do Senhor.

Há duas classes de almas liberadas que têm corpos materiais: a que se liberou através do serviço devocional e a que se liberou através do cultivo de conhecimento. A alma que consumou a liberação através do serviço devocional, atraída pelas qualidades transcendentais de Kṛṣṇa, eleva-se cada vez mais, enquanto aquelas que se ocupam em especulação árida e no mero cultivo de conhecimento destituído de devoção, caem devido a suas muitas ofensas. Confirma isso o Śrīmad-Bhāgavatam (10.2.32):

ye ’nye ’ravindākṣa vimukta-māninas
  tvayy asta-bhāvād aviśuddha-buddhayaḥ
āruhya kṛcchreṇa paraṁ padaṁ tataḥ
  patanty adho ’nādṛta-yuṣmad-aṅghrayaḥ

“Ó Senhor, a inteligência daqueles que se julgam liberados, mas que não têm devoção, não é pura. Embora, à força de severas penitências e austeridades, eles atinjam a plataforma suprema da liberação, com certeza voltarão a cair nesta existência material, pois não se refugiam nos Vossos pés de lótus.” Isso também está confirmado na Bhagavad-gītā (18.54):

brahma-bhūtaḥ prasannātmā
  na śocati na kāṅkṣati
samaḥ sarveṣu bhūteṣu
  mad-bhaktiṁ labhate parām

“Aquele que está transcendentalmente situado entende de imediato o Brahman Supremo. Jamais se lamenta nem deseja ter nada; ele é equânime com todas as entidades vivas. Neste estado, ele alcança o serviço devocional puro a Mim.” Dessa maneira, aquele que realmente está situado na compreensão do Brahman não tem por que se lamentar ou desejar algo. Ele é equânime com todos e por isso torna-se qualificado para o serviço devocional. Isso também foi aceito por Bilvamaṅgala Ṭhākura, que, no final de sua vida, lamentava-se: “Estive situado na posição de monista a fim de tornar-me uno com o Supremo, mas, de alguma forma, entrei em contato com um menino travesso e tornei-me Seu servo eterno”. Em outras palavras, aqueles que adquirem a autorrealização mediante a prática de serviço devocional alcançam um corpo transcendental, e, sendo atraídos pelas qualidades transcendentais de Kṛṣṇa, ocupam-se plenamente no serviço devocional puro.

Compreende-se que qualquer um que não esteja atraído por Kṛṣṇa ainda se encontra sob o encanto da energia ilusória (māyā), porém, quem está tentando liberar-se através do processo de serviço devocional, de fato, liberou-se do encanto de māyā. No Décimo Primeiro Canto do Śrīmad-Bhāgavatam, mencionam-se muitos devotos que se liberaram nesta vida pelo simples fato de se ocuparem em serviço devocional.

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