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Capítulo Vinte e Três

Por que Estudar o Vedānta-sūtra?

Conhecimento é informação recolhida das escrituras, e ciência é compreensão prática deste conhecimento. O conhecimento é científico quando é recolhido das escrituras através do mestre espiritual genuíno, porém, ao ser interpretado pela especulação, é invenção mental. Compreendendo cientificamente a informação escritural através do mestre espiritual genuíno, a pessoa aprende, através de sua própria compreensão, a verdadeira situação da Suprema Personalidade de Deus. A forma transcendental da Suprema Personalidade de Deus é diferente das manifestações materiais, e está acima das reações da matéria. A menos que entenda cientificamente a forma espiritual da Personalidade de Deus, a pessoa torna-se um impersonalista. O brilho solar em si é iluminação, mas esta iluminação é diferente do Sol. Todavia, o Sol e o brilho solar não estão situados em posições diferentes, pois sem o Sol não pode haver brilho solar, e sem brilho solar a palavra sol não tem sentido.

Se a pessoa não se libertar da influência da energia material, não poderá compreender o Senhor Supremo e Suas diferentes energias. Nem pode alguém, cativado pelo encanto da energia material, compreender a forma espiritual do Senhor Supremo. A não ser que haja conhecimento sobre a forma transcendental da Suprema Personalidade de Deus, o amor a Deus está fora de cogitação. A menos que compreenda a forma transcendental do Senhor Supremo, não se pode alcançar de fato o amor a Deus, e, sem amor a Deus, não há perfeição na vida humana. Assim como os cinco elementos grosseiros da natureza – a saber, terra, água, fogo, ar e éter – estão dentro e fora de todos os seres vivos neste mundo, o Senhor Supremo está dentro e fora desta existência, e aqueles que são Seus devotos podem compreender isto.

Os devotos puros sabem que estão destinados a servir a Suprema Personalidade de Deus e que tudo o que existe pode ser meios pelos quais se pode servir o Supremo. Como foi abençoado pelo Supremo de dentro de seu coração, o devoto consegue ver o Senhor Supremo para onde quer que olhe. De fato, ele não pode ver nada mais. O Śrīmad-Bhāgavatam (11.2.55) confirma a relação entre o devoto e o Senhor Supremo da seguinte maneira:

viṣṛjati hṛdayaṁ na yasya sākṣād
  dharir avaśābhihito ’py aghaugha-nāśaḥ
praṇaya-raśanayā dhṛtāṅghri-padmaḥ
  sa bhavati bhāgavata-pradhāna uktaḥ

“Se o coração da pessoa está sempre atado aos pés de lótus do Senhor Supremo com a corda do amor, o Senhor não o abandona. Na verdade, mesmo que sua lembrança não seja perfeita, ele deve ser considerado um devoto de primeira classe.” Há um exemplo disto descrito no Śrīmad-Bhāgavatam, Daśa-skandha (10.30.4). Quando as gopīs se reuniram para entrar na dança da rāsa com Kṛṣṇa, Ele as deixou. Então as gopīs começaram a cantar o santo nome de Kṛṣṇa e, estando dominadas pela loucura, começaram a perguntar por Kṛṣṇa às flores e às trepadeiras da floresta. Kṛṣṇa é como o céu; Ele está situado em toda parte.

Estudando o Śrīmad-Bhāgavatam, podemos obter informação sobre nossa relação eterna com o Senhor Supremo, entender o processo pelo qual se pode alcançar o Senhor e receber a compreensão última, que é amor por Deus.

Explicando a Prakāśānanda Sarasvatī como se pode alcançar a Suprema Personalidade de Deus através do serviço devocional, o Senhor Caitanya citou um verso do Śrīmad-Bhāgavatam (11.14.21) no qual o Senhor diz que Ele pode ser compreendido apenas mediante o serviço devocional executado com fé e amor. Na verdade, só o serviço devocional purifica o coração do devoto e o eleva à compreensão última pela qual ele, firme em sua fé, presta serviço ao Senhor Supremo. Mesmo que tenha nascido em família baixa, como a de caṇḍālas (comedores de cachorro), a pessoa pode tornar-se plena de sintomas transcendentais através da compreensão do nível supremo de amor a Deus. Estes sintomas transcendentais são descritos no Śrīmad-Bhāgavatam (11.3.31):

smarantaḥ smārayantaś ca
  mitho ’ghaugha-haraṁ harim
bhaktyā sañjātayā bhaktyā
  bibhraty utpulakāṁ tanum

“Ao discutirem assuntos referentes ao Senhor Supremo, que pode limpar o coração de Seu devoto de todas as espécies de reações pecaminosas, os devotos ficam dominados pelo êxtase e exibem diversos sintomas devido a seu serviço devocional.” O Bhāgavatam (11.2.40) ainda afirma: “Em virtude de seu apego espontâneo pelo Senhor, quando eles cantam Seus santos nomes, ora choram, ora riem, ora dançam, ora cantam, etc., despreocupados de qualquer convenção social”.

Devemos entender que o Śrīmad-Bhāgavatam é a verdadeira explicação do Brahma-sūtra, e foi compilado pelo próprio Vyāsadeva. Afirma-se no Garuḍa Purāṇa:

artho ’yaṁ brahma-sūtrāṇāṁ
bhāratārtha-vinirṇayaḥ
gāyatrī-bhāṣya-rūpo ’sau
vedārtha-paribṛṁhitaḥ

grantho ’ṣṭādaśa-sāhasraḥ
śrīmad-bhāgavatābhidhaḥ

“O Śrīmad-Bhāgavatam é a explicação autorizada do Brahma-sūtra, e é uma explicação suplementar do Mahābhārata. É a expansão do mantra gāyatrī e a essência de todo o conhecimento védico. Este Śrīmad-Bhāgavatam, contendo dezoito mil versos, é conhecido como a explicação de toda a literatura védica.” No próprio Primeiro Canto do Śrīmad-Bhāgavatam, os sábios de Naimiṣāraṇya perguntaram a Sūta Gosvāmī como se pode conhecer a essência da literatura védica. Em resposta, Sūta Gosvāmī apresentou o Śrīmad-Bhāgavatam como a essência de todos os Vedas, histórias e outros textos védicos. Em outra parte do Śrīmad-Bhāgavatam (12.13.15), afirma-se claramente que ele é a essência de todo o conhecimento do Vedānta e que quem saboreia o conhecimento do Śrīmad-Bhāgavatam não encontra gosto no estudo de qualquer outro livro. Mesmo no início do Śrīmad-Bhāgavatam, também se descrevem o significado e o propósito do mantra gāyatrī: “Ofereço minhas reverências à Verdade Suprema”. Este é o verso introdutório que trata da Verdade Suprema, descrita no Śrīmad-Bhāgavatam como a fonte da criação, manutenção e destruição da manifestação cósmica. Reverências à Personalidade de Deus, Vāsudeva (oṁ namo bhagavate vāsudevāya), indicam diretamente o Senhor Śrī Kṛṣṇa, que é o filho divino de Vasudeva e Devakī. Posteriormente, este fato é melhor explicitado no Śrīmad-Bhāgavatam. Vyāsadeva afirma que Śrī Kṛṣṇa é a Personalidade de Deus original e que todas as outras são Suas porções plenárias diretas ou indiretas ou porções destas porções. Śrīla Jīva Gosvāmī mais tarde desenvolveu melhor este tema em seu Kṛṣṇa-sandarbha, e Brahmā, o ser vivo original, explicou Śrī Kṛṣṇa substancialmente em seu tratado chamada Brahma-saṁhitā. O Sāma Veda também confirma que o Senhor Śrī Kṛṣṇa é o filho divino de Devakī.

Em sua oração, o autor do Śrīmad-Bhāgavatam primeiro propõe que o Senhor Śrī Kṛṣṇa é o Senhor primordial e que, caso deva ser aceita alguma nomenclatura transcendental para a Absoluta Personalidade de Deus, deve ser o nome Kṛṣṇa, o todo-atrativo. Em muitas passagens da Bhagavad-gītā, o Senhor afirmou que Ele é a Personalidade de Deus original, e Arjuna também confirmou isto citando grandes sábios como Nārada, Vyāsa e muitos outros. No Padma Purāṇa, também se diz que, dos inúmeros nomes do Senhor, o nome de Kṛṣṇa é o principal. Embora o nome Vāsudeva indique a porção plenária da Personalidade de Deus, e embora todas as diferentes formas do Senhor sejam idênticas a Vāsudeva, neste texto Vāsudeva indica sobretudo o filho divino de Vasudeva e Devakī. Śrī Kṛṣṇa é sempre o objeto de meditação dos paramahaṁsas, aqueles que são os mais perfeitos na ordem de vida renunciada. Vāsudeva, ou o Senhor Śrī Kṛṣṇa, é a causa de todas as causas, e tudo o que existe é uma emanação dEle. Isto é explicado em capítulos posteriores do Śrīmad-Bhāgavatam.

Caitanya Mahāprabhu descreve o Śrīmad-Bhāgavatam como o Purāṇa imaculado porque contém narrações transcendentais dos passatempos da Suprema Personalidade de Deus, Śrī Kṛṣṇa. A história do Śrīmad-Bhāgavatam também é muito gloriosa. Ele foi compilado por Vyāsadeva, que usou sua experiência madura do conhecimento transcendental sob a guia de Śrī Nārada Muni, seu mestre espiritual. Vyāsadeva compilou todos os textos védicos – os quatro Vedas, o Vedānta-sūtra ou Brahma-sūtras, os Purāṇas e o Mahābhārata. Contudo, ele não ficou satisfeito enquanto não escreveu o Śrīmad-Bhāgavatam. Seu mestre espiritual, Nārada Muni, observou sua insatisfação, e, por isso, aconselhou-o a escrever sobre as atividades transcendentais do Senhor Śrī Kṛṣṇa. Estas atividades são descritas sobretudo no Décimo Canto do Śrīmad-Bhāgavatam, o qual é considerado como a substância de toda a obra. Ninguém deve se aproximar do Décimo Canto de imediato, senão que aos poucos, desenvolvendo conhecimento dos assuntos apresentados primeiro.

Em geral, uma mente filosófica tem curiosidade em conhecer a origem de todas as criações. Ao ver o céu à noite, a pessoa filosófica naturalmente formula perguntas sobre as estrelas, como estão situadas, quem mora lá etc. Todas essas indagações são muito naturais para o ser humano, pois sua consciência é mais desenvolvida que a dos animais. Em resposta a esta indagação, o autor do Śrīmad-Bhāgavatam diz que o Senhor é a origem de todas as criações. Ele é não só o criador, mas também o mantenedor e aniquilador. A criação cósmica manifesta é criada num certo período pela vontade do Senhor, é mantida por algum tempo e, enfim, é aniquilada por Sua vontade. Portanto, Ele é a vontade suprema subjacente a todas as atividades.

É claro que existem várias categorias de ateístas que não acreditam no criador, porém, isto se deve apenas a seu pobre fundo de conhecimento. O cientista moderno cria foguetes e, por um ou outro arranjo, eles são lançados no espaço sideral para voar algum tempo sob o controle de um cientista que está a grande distância. Todos os universos, com seus inumeráveis planetas, assemelham-se a estes foguetes, e são todos controlados pela Personalidade de Deus.

Declara-se nos textos védicos que a Verdade Absoluta, a Personalidade de Deus, é a principal dentre todas as personalidades vivas. Todos os seres vivos, do primeiro ser criado, Brahmā, até a menor formiga, são entidades vivas individuais. Mesmo acima de Brahmā há muitos outros seres vivos com capacidades individuais. A própria Personalidade de Deus também é um ser vivo e é tão individual quanto os outros seres vivos. O Senhor Supremo, porém, é o ser vivo supremo, e Ele tem a mente mais magnífica e possui as mais inconcebíveis energias em grande variedade. Se a mente do homem pode criar foguetes e naves espaciais, é concebível que uma mente superior à do homem possa criar coisas superiores. A pessoa ponderada aceitará este argumento, mas pessoas teimosas e obstinadas não.

Śrīla Vyāsadeva aceita de imediato a mente suprema como o parameśvara, o controlador supremo. Conforme se declara na Bhagavad-gītā e em todas as outras escrituras da autoria de Śrīla Vyāsadeva, este parameśvara é o próprio Śrī Kṛṣṇa. Isto é confirmado especificamente no Śrīmad-Bhāgavatam. Na Bhagavad-gītā, o próprio Senhor também diz que não há paratattva (summum bonum) superior a Ele mesmo. Portanto, o autor adora de imediato o paratattva, Śrī Kṛṣṇa, cujas atividades transcendentais são descritas no Décimo Canto.

Pessoas inescrupulosas correm para o Décimo Canto, em especial para os cinco capítulos que descrevem a dança da rāsa do Senhor. Contudo, esta seção do Śrīmad-Bhāgavatam é a parte mais confidencial desta grandiosa obra. Se não tiver adquirido completa perfeição no conhecimento transcendental a respeito do Senhor, a pessoa decerto compreenderá mal os adoráveis passatempos transcendentais do Senhor na dança da rāsa e os casos amorosos do Senhor com as gopīs. Este assunto é muitíssimo espiritual e técnico, e apenas personalidades liberadas, que, pouco a pouco, atingiram o nível de paramahaṁsa, podem desfrutar o sabor transcendental da adorável dança da rāsa.

Por isso, Śrīla Vyāsadeva dá ao leitor a oportunidade de desenvolver gradualmente sua compreensão espiritual antes de saborear de fato a essência dos passatempos do Senhor. Assim, Vyāsadeva intencionalmente invoca o mantra gāyatrī: dhīmahi. Este mantra gāyatrī destina-se sobretudo a pessoas com avanço espiritual. Quando alguém logra o sucesso em cantar o mantra gāyatrī, pode adentrar a posição transcendental do Senhor. Primeiro, todavia, deve adquirir as qualidades bramânicas e situar-se perfeitamente no modo da bondade a fim de cantar com sucesso o mantra gāyatrī. A partir desse ponto, pode-se começar a obter compreensão transcendental a respeito do Senhor, Seu nome, Sua fama, Suas qualidades, etc.

O Śrīmad-Bhāgavatam é a narração que trata da svarūpa (forma) do Senhor, a qual se manifesta mediante Sua potência interna. Esta potência é distinta da potência externa que manifestou o mundo cósmico dentro de nossa experiência. Śrīla Vyāsadeva faz uma clara distinção entre as potências interna e externa já no primeiro verso do Primeiro Capítulo do Śrīmad-Bhāgavatam. Naquele verso, ele diz que a potência interna é uma realidade concreta, ao passo que a energia externa manifestada sob a forma da existência material é temporária e ilusória, não mais verdadeira que uma miragem no deserto. Talvez a água apareça numa miragem, mas a verdadeira água está em outro lugar. Do mesmo modo, a criação cósmica manifesta parece realidade, porém, é apenas um reflexo da verdadeira realidade existente no mundo espiritual. No mundo espiritual não há miragens. A Verdade Absoluta está lá e não aqui no mundo material. Aqui, tudo é verdade relativa; uma verdade parece depender da outra. Esta criação cósmica resulta duma interação dos três modos da natureza material. As manifestações temporárias são criadas de tal forma que apresentam uma ilusão da realidade à mente confusa da alma condicionada. Logo, parecem existir tantas espécies de vida, inclusive os semideuses superiores como Brahmā, Indra, Candra, etc. De fato, não há realidade no mundo manifesto, mas parece haver realidade porque a verdadeira realidade existe no mundo espiritual, onde a Personalidade de Deus reside eternamente com Sua parafernália transcendental.

O engenheiro-chefe de uma construção complexa não toma parte pessoalmente na construção em si, porém, ele é o único que a conhece como a palma da mão, pois tudo é executado apenas sob suas instruções. Em outras palavras, ele, direta e indiretamente, conhece tudo sobre a construção. Da mesma forma, a Personalidade de Deus, que é o engenheiro supremo desta criação cósmica, sabe muito bem o que está acontecendo em cada canto da criação cósmica, embora pareça que outra pessoa realiza as atividades. Na verdade, na criação material ninguém é independente; a mão do Senhor Supremo está em toda parte. Todos os elementos materiais, bem como as centelhas espirituais, são apenas emanações dEle. Neste mundo material, tudo é criado pela interação das duas energias, a material e a espiritual. Estas energias pertencem à Verdade Absoluta, a Personalidade de Deus, Śrī Kṛṣṇa.

Um químico pode fabricar água no laboratório misturando hidrogênio e oxigênio, porém, na verdade, a entidade viva só pode trabalhar sob a direção do Senhor Supremo. De fato, todos os elementos usados pelo químico são fornecidos pelo Senhor. O Senhor conhece tudo direta e indiretamente, e está ciente dos mínimos detalhes de tudo. Ele também possui completa independência. Ele pode ser comparado a uma mina de ouro, e as criações cósmicas podem ser comparadas a ornamentos feitos deste ouro, tais como anéis, colares, etc. O anel e o colar de ouro são qualitativamente idênticos ao ouro da mina, mas, quantitativamente, o ouro da mina e o ouro do brinco ou colar são diferentes. A filosofia do Senhor Caitanya sobre a Verdade Absoluta centraliza-se no fato de que o Senhor Supremo é simultaneamente igual a Sua criação e diferente dela. Nada é absolutamente igual à Verdade Absoluta, mas ao mesmo tempo nada é independente dEle.

As almas condicionadas, desde Brahmā, o engenheiro deste universo particular, até uma insignificante formiga, estão todas criando algo, mas nenhuma delas é independente do Senhor Supremo. O materialista equivoca-se ao pensar que não existe criador além dele mesmo, e isto se chama māyā, ou ilusão. Devido a seu pobre fundo de conhecimento, o materialista não consegue enxergar além do alcance de seus sentidos imperfeitos; assim ele pensa que a matéria automaticamente assume sua própria forma, independente de um substrato consciente. Śrīla Vyāsadeva, no primeiro verso do Śrīmad-Bhāgavatam, refuta essa proposição. Como se afirmou antes, Vyāsadeva é uma alma liberada, e ele compilou este livro autorizado depois de alcançar a perfeição espiritual. Visto que o todo completo, ou a Verdade Absoluta, é a fonte de tudo, nada é independente dEle. Tudo existe dentro do corpo da Verdade Absoluta. Cada ação ou reação de parte de um corpo torna-se um fato perceptível para o todo corporificado. Da mesma maneira, se a criação reside no corpo da Verdade Absoluta, então nada é desconhecido ao Absoluto, direta ou indiretamente.

No śruti-mantra, declara-se que o todo absoluto, ou Brahman, é a fonte última de tudo. Tudo emana dEle, tudo é mantido por Ele e, no fim, tudo volta a entrar nEle. Esta é a lei da natureza. Isto também se confirma no smṛti-mantra. Lá se afirma que, no começo do milênio de Brahmā, a fonte da qual tudo emana é a Verdade Absoluta, ou Brahman, e, no fim desse milênio, o reservatório em que tudo entra é esta mesma Verdade Absoluta. Sem fundamento, os cientistas materialistas aceitam como verdadeiro que a fonte última deste sistema planetário é o Sol, mas são incapazes de explicar a fonte do Sol. Os textos védicos explicam qual é a fonte última; Brahmā é o criador deste universo, mas porque ele teve de meditar a fim de receber inspiração para realizar a criação, ele não é o criador último. Como se afirma no primeiro verso do Śrīmad-Bhāgavatam, Brahmā aprendeu o conhecimento védico com a Personalidade de Deus. No primeiro verso do Śrīmad-Bhāgavatam, afirma-se que o Senhor Supremo inspirou um criador secundário, Brahmā, e capacitou-o a executar suas funções criativas. Deste modo, o Senhor Supremo é o engenheiro supervisor; a verdadeira mente por trás de todos os agentes criadores é a Absoluta Personalidade de Deus, Śrī Kṛṣṇa. Na Bhagavad-gītā, o próprio Śrī Kṛṣṇa admite que é apenas Ele quem superintende a energia criativa (prakṛti), a totalidade da matéria. Portanto, Śrī Vyāsadeva não adora Brahmā nem o Sol, mas, sim, o Senhor Supremo, que dirige tanto Brahmā quanto o Sol em suas atividades criativas.

As palavras sânscritas abhijña e svarāṭ, que aparecem no primeiro verso do Śrīmad-Bhāgavatam, são significativas. Estas duas palavras distinguem o Senhor de todas as outras entidades vivas. Nenhuma entidade viva além do Ser Supremo, a Absoluta Personalidade de Deus, é abhijña ou svarāṭ – isto é, nenhuma delas possui cognição plena ou independência plena. Todos têm de aprender o conhecimento com algum superior; mesmo Brahmā, o primeiro ser vivo dentro deste mundo material, tem de meditar no Senhor Supremo e receber dEle ajuda para criar. Se Brahmā ou o Sol não podem criar nada sem adquirir conhecimento de um superior, então, qual é a situação dos cientistas mundanos que têm completa dependência de tantas coisas? Os cientistas modernos como Jagadisha Chandra Bose, Isaac Newton, Albert Einstein, etc., podiam vangloriar-se muito de suas respectivas energias criativas, porém, todos eram dependentes do Senhor Supremo para tantas coisas. Afinal, os cérebros inteligentíssimos destes cavalheiros com certeza não eram produtos de nenhum ser humano. O cérebro é criado por outro agente. Caso cérebros como os de Einstein ou Newton pudessem ser manufaturados por um ser humano, então, a humanidade produziria muitos de tais cérebros em lugar de elogiar-lhes o falecimento. Se estes cientistas não conseguem sequer manufaturar cérebros assim, que se dizer de ateístas tolos que desafiam a autoridade do Senhor?

Mesmo os impersonalistas māyāvādīs, que se lisonjeiam acreditando que eles próprios se tornaram o Senhor, não são abhijñaḥ ou svarāṭ, plenos de conhecimento ou de independência. Os monistas māyāvādīs submetem-se a um severo processo de austeridade e penitência para adquirir o conhecimento que os leva a unificar-se ao Senhor, porém, no final, acabam dependendo de um seguidor rico que lhes fornece a parafernália necessária para construir grandes mosteiros e templos. Ateístas como Rāvaṇa e Hiraṇyakaśipu tiveram de submeter-se a severas penitências antes de poder zombar da autoridade do Senhor, mas, enfim, ficaram tão desamparados que não conseguiram salvar-se quando o Senhor apareceu diante deles como a morte cruel. Isto também se aplica aos ateístas modernos que se atrevem a zombar da autoridade do Senhor. Semelhantes ateístas terão de lidar com as mesmas recompensas dadas outrora a notáveis ateístas como Rāvaṇa e Hiraṇyakaśipu. A história se repete e o que aconteceu no passado se repetirá quantas vezes for necessário. Sempre que a autoridade do Senhor for negligenciada, as leis da natureza infligirão severas punições.

Todos os śruti-mantras confirmam que o Senhor Supremo, a Personalidade de Deus, é todo-perfeito. Declara-se nos śruti-mantras que o Senhor todo-perfeito lançou Seu olhar sobre a matéria e assim criou todos os seres vivos. Os seres vivos são partes integrantes do Senhor, e Ele fecunda a vasta natureza material com as sementes das centelhas espirituais. Dessa maneira, as energias criativas são postas em movimento a fim de realizar tantas criações maravilhosas. Quando um ateísta argumentou que Deus não é mais hábil que o fabricante de um engenhoso relógio com tantas peças delicadas, respondemos que Deus é um mecânico melhor que o relojoeiro, pois Ele apenas cria uma máquina com forma masculina e outra com forma feminina, e estas continuam produzindo inúmeras máquinas semelhantes sem o auxílio subsequente de Deus. Se o homem pudesse manufaturar um conjunto de máquinas capazes de produzir outras máquinas sem o seu auxílio subsequente à matéria, poder-se-ia dizer, então, que o homem se iguala a Deus em inteligência. Claro que isto não é possível. Cada uma das máquinas imperfeitas do homem tem de ser manipulada por um mecânico. Como ninguém pode ser igual a Deus em inteligência, outro nome de Deus é asamaurdha, indicando que ninguém é igual ou superior a Ele. Todos têm alguém que se lhe iguale ou supere intelectualmente, e ninguém pode alegar o contrário. Todavia, esse não é o caso do Senhor. Os śruti-mantras indicam que, antes da criação do universo material, o Senhor existia, e era o amo de todos. Foi o Senhor quem instruiu Brahmā sobre o conhecimento védico. Esta Personalidade de Deus deve ser obedecida em todos os aspectos. Quem quer que deseje livrar-se do enredamento material deve render-se a Ele, e isto é confirmado na Bhagavad-gītā.

A não ser que se renda aos pés de lótus da Personalidade de Deus, é certo que a pessoa ficará desnorteada, mesmo que por acaso tenha uma inteligência magnífica. Como se confirma na Bhagavad-gītā (7.19), apenas quando se rendem aos pés de lótus de Vāsudeva e sabem perfeitamente que Vāsudeva é a causa de todas as causas, esses eminentes intelectuais podem se tornar mahātmās, ou pessoas com inteligência verdadeiramente desenvolvida. Todavia, é raro ver tais mahātmās de inteligência desenvolvida. Só eles, contudo, podem compreender que o Senhor Supremo é a Absoluta Personalidade de Deus, a causa primordial de todas as criações. Ele é parama, a verdade última, porque todas as outras verdades dependem dEle. Porque é a fonte de todo o conhecimento, Ele é onisciente; para Ele não existe ilusão, assim como há para o conhecedor relativo.

Alguns eruditos māyāvādīs argumentam que o Śrīmad-Bhāgavatam não foi compilado por Śrīla Vyāsadeva, e alguns sugerem que o livro é uma criação moderna, escrito por alguém chamado Vopadeva. Para refutar este argumento sem sentido, Śrīla Śrīdhara Svāmī indica que existem muitos purāṇas antiquíssimos que fazem referência ao Śrīmad-Bhāgavatam. O primeiro śloka, ou verso, do Śrīmad-Bhāgavatam começa com o mantra gāyatrī, e há referência a isto no Mātsya Purāṇa (o purāṇa mais antigo). Com referência ao contexto do mantra gāyatrī no Śrīmad-Bhāgavatam, afirma-se neste purāṇa: “Aquele que contém muitas narrações de instrução espiritual, começa com o mantra gāyatrī e também contém a história de Vṛtrāsura, é conhecido como o Śrīmad-Bhāgavatam. Quem presentear esta grande obra num dia de lua cheia, atinge a mais elevada perfeição da vida e volta para o Supremo”. Também há referência ao Śrīmad-Bhāgavatam em outros purāṇas que chegam a indicar que a obra consiste em Doze Cantos e dezoito mil ślokas. No Padma Purāṇa, durante uma conversa entre Gautama e Mahārāja Ambarīṣa, também se faz menção do Śrīmad-Bhāgavatam. Mahārāja Ambarīṣa foi aconselhado a ler regularmente o Śrīmad-Bhāgavatam, caso desejasse, de alguma forma, libertar-se do cativeiro material. Nestas circunstâncias, não há dúvida quanto à autoridade do Śrīmad-Bhāgavatam. Nos últimos quinhentos anos, muitos eruditos fizeram comentários elaborados sobre o Śrīmad-Bhāgavatam e demonstraram rara erudição. O estudante sério fará bem em tentar examiná-los com cuidado para saborear mais adequadamente as mensagens transcendentais do Bhāgavatam.

Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura trata sobretudo da psicologia sexual (ādi-rasa) original e pura, isenta de todo inebriamento mundano. O mundo material inteiro gira devido ao princípio básico da vida sexual. Na civilização humana atual, o sexo é o ponto central de todas as atividades; de fato, para onde quer que olhemos, vemos que a vida sexual é preeminente. Logo, a vida sexual não é irreal; sua verdadeira realidade é experimentada no mundo espiritual. Sexo material não é senão um reflexo pervertido do original; o original encontra-se na Verdade Absoluta. Isto comprova que a Verdade Absoluta é pessoal, pois a Verdade Absoluta não pode ser impessoal e ter um sentido de vida sexual pura. A filosofia monista impessoal dá um ímpeto indireto ao abominável sexo mundano porque enfatiza demais a impersonalidade da Verdade última. O resultado é que homens destituídos de conhecimento aceitaram a pervertida vida sexual mundana como o que há de mais valioso, pois não têm informação sobre a forma sexual espiritual. Há uma distinção entre sexo na condição doentia da vida material e sexo na existência espiritual. O Śrīmad-Bhāgavatam, pouco a pouco, eleva o leitor sem preconceitos ao mais elevado nível de perfeição da transcendência, acima dos três modos das atividades materiais, das ações fruitivas, da filosofia especulativa e da adoração das deidades funcionais indicadas nos Vedas. O Śrīmad-Bhāgavatam é a personificação do serviço devocional à Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa, e, portanto, está situado em posição superior a outros textos védicos.

A religião inclui quatro temas primários: 1) atividades piedosas, 2) desenvolvimento econômico, 3) satisfação dos sentidos e 4) liberação do cativeiro material. A vida religiosa distingue-se da vida irreligiosa bárbara. Na verdade, pode-se dizer que a vida humana começa com a religião. Os quatro princípios da vida animal – comer, dormir, defender-se e acasalar-se – são comuns tanto aos animais quanto aos seres humanos, mas a religião é uma preocupação especial dos seres humanos. Porque a vida humana sem religião não é melhor que a vida animal, na verdadeira sociedade humana existe alguma forma de religião que visa à autorrealização e faz menção do relacionamento eterno da pessoa com Deus.

Na etapa inferior da civilização humana sempre há competição entre os homens em sua tentativa de dominar a natureza material. Em outras palavras, existe rivalidade contínua na tentativa de satisfazer os sentidos. Assim, levados pela consciência do desfrute sensual, os homens sancionam rituais religiosos. Portanto, as atividades piedosas e as funções religiosas são executadas com o objetivo de adquirir ganho material, e, se tal ganho é obtenível de outra maneira, esta pretensa religião é negligenciada. Pode-se ver isto na civilização humana atual. Como os desejos econômicos das pessoas parecem ser satisfeitos de outra maneira, ninguém se interessa por religião atualmente. As igrejas, mesquitas e templos estão quase vazios, pois as pessoas estão mais interessadas em fábricas, lojas e cinemas. Assim, eles desertaram os locais religiosos erigidos por seus antepassados. Isto evidencia que, em geral, a religião é executada visando ao desenvolvimento econômico, e este é necessário para o desfrute dos sentidos. Ao frustrar-se em sua tentativa de obter o desfrute sensual, a pessoa busca a salvação a fim de tornar-se uno com o todo supremo. Todas estas atividades surgem visando ao mesmo objetivo – o desfrute dos sentidos.

Os Vedas prescrevem os quatro temas primários supracitados de modo regulado para que não haja competição indevida pelo desfrute dos sentidos. Todavia, o Śrīmad-Bhāgavatam é transcendental a todas as atividades para o desfrute dos sentidos do mundo material. É uma literatura transcendental pura, compreensível aos devotos do Senhor que estão além da competição por desfrute sensual. No mundo material, existe uma competição acirrada entre animais, homens, comunidades e até mesmo nações na tentativa de satisfazer os sentidos, porém, os devotos do Senhor estão acima de tudo isto. Os devotos não precisam competir com os materialistas porque estão no caminho de volta ao Supremo, de volta ao lar, onde tudo é eterno, completo e bem-aventurado. Estes transcendentalistas são cem por cento não-invejosos e, portanto, puros de coração. Porque, no mundo material, todos são invejosos, existe competição. Os devotos do Senhor não só estão livres de toda inveja material, como também são amáveis com todos na tentativa de estabelecer uma sociedade sem competição, com Deus como centro.

A ideia socialista de uma sociedade destituída de competição é artificial, pois mesmo nos Estados socialistas há competição pelo poder. É um fato que o desfrute sensual é o princípio básico da vida materialista, e isto pode ser compreendido ou através da leitura dos Vedas ou através da simples observação das atividades humanas comuns. Os Vedas recomendam atividades fruitivas mediante as quais as pessoas podem elevar-se aos planetas superiores, e também recomendam a adoração de vários semideuses para quem deseja alcançar os seus planetas. Por fim, os Vedas recomendam atividades pelas quais a pessoa pode alcançar a Verdade Absoluta e compreender Seu aspecto impessoal para se tornar uno com Ele. Todavia, o aspecto impessoal da Verdade Absoluta não é a palavra última. Acima da característica impessoal está o Paramātmā, ou a Superalma, e acima desta situa-Se a Suprema Personalidade. O Śrīmad-Bhāgavatam dá informação sobre as qualidades pessoais da Verdade Absoluta, as quais estão além do aspecto impessoal. Os tópicos referentes a estas qualidades são superiores aos tópicos acerca da especulação filosófica impessoal; em consequência, dá-se uma posição mais elevada ao Śrīmad-Bhāgavatam que às seções jñāna-kāṇḍa dos Vedas. O Śrīmad-Bhāgavatam também é superior às seções karma-kāṇḍa e upāsanā-kāṇḍa, porque recomenda a adoração da Suprema Personalidade de Deus, Śrī Kṛṣṇa, o divino filho de Vasudeva. A seção karma-kāṇḍa dos Vedas está repleta de competição para alcançar os planetas celestiais a fim de obter melhor desfrute dos sentidos, e também se vê tal competição nas seções jñāna-kāṇḍa e upāsanā-kāṇḍa. O Śrīmad-Bhāgavatam está acima de todas estas seções porque visa apenas à Verdade Suprema, a substância ou raiz de todas as categorias.

Em outras palavras, por meio do Śrīmad-Bhāgavatam podemos conhecer a substância bem como as relatividades em seu verdadeiro sentido e perspectiva. A substância é a Verdade Absoluta, a Suprema Personalidade de Deus, e as relatividades são as diferentes formas de energia que emanam dEle. Porque as entidades vivas também estão relacionadas com Suas energias, não há nada realmente diferente da substância. Ao mesmo tempo, as energias são diferentes da substância. No sentido material, esta concepção é contraditória, porém, o Śrīmad-Bhāgavatam trata sobretudo deste aspecto de igualdade e diferença simultâneas. Esta filosofia também é encontrada no Vedānta-sūtra, que começa com o sūtra janmādy asya.

O conhecimento da igualdade e diferença simultâneas encontradas na Verdade Absoluta é revelado para o bem-estar de todos. Os especuladores mentais desencaminham as pessoas estabelecendo que a energia do Senhor é absoluta, porém, quando se compreende a verdade da igualdade e diferença simultâneas, os conceitos imperfeitos de monismo e dualismo deixam de satisfazer. Compreendendo que o Senhor é, ao mesmo tempo, igual a Sua criação e diferente dela, a pessoa, de imediato, consegue livrar-se das três misérias – misérias infligidas pelo corpo e a mente, por outras entidades vivas e por atos da natureza.

O Śrīmad-Bhāgavatam começa com a rendição da entidade viva à Pessoa Absoluta. Faz-se tal rendição com clara consciência e percepção da igualdade do devoto com o Absoluto e, ao mesmo tempo, de sua posição eterna de servo. Na concepção material, a pessoa se considera o senhor de tudo o que observa; por isso é sempre perturbada pelas três misérias da vida. Logo que chega a conhecer sua posição verdadeira no serviço transcendental, ela se livra de imediato de todas estas misérias. A posição do servo é desperdiçada na concepção de vida material. Na tentativa de dominar a natureza material, a entidade viva é forçada a oferecer seu serviço à energia material relativa. Quando este serviço é transferido ao Senhor em pura consciência de identidade espiritual, a entidade viva livra-se prontamente dos empecilhos criados pela afeição material.

Além disso, o Śrīmad-Bhāgavatam é o comentário pessoal ao Vedānta-sūtra feito por Vyāsadeva quando ele atingira a maturidade na compreensão espiritual. Ele pôde escrevê-lo com o auxílio da misericórdia de Nārada. Vyāsadeva também é uma encarnação de Nārāyaṇa, a Personalidade de Deus; portanto, está fora de cogitação duvidarmos de sua autoridade. Embora seja autor de toda a literatura védica, ele recomenda sobretudo que se estude o Śrīmad-Bhāgavatam. Outros purāṇas mencionam diversos métodos para a adoração aos semideuses, porém, o Śrīmad-Bhāgavatam só menciona a Suprema Personalidade de Deus. O Senhor Supremo é o corpo total, e os semideuses são as diferentes partes deste corpo. Logo, se alguém adora o Senhor Supremo, não precisa adorar os semideuses, pois o Senhor Supremo está nos corações de todos os semideuses. O Senhor Caitanya Mahāprabhu distinguia o Śrīmad-Bhāgavatam de todos os outros purāṇas, recomendando-o como o purāṇa imaculado.

O método através do qual se recebe a mensagem transcendental é a audição submissa. Uma atitude desafiadora não pode ajudar ninguém a receber ou compreender a mensagem transcendental; portanto, no segundo verso do Śrīmad-Bhāgavatam usa-se a palavra śuśrūṣu. Esta palavra indica que a pessoa deve estar ansiosa por ouvir a mensagem transcendental. O desejo de ouvir com interesse é a qualificação primária para assimilar o conhecimento transcendental.

Infelizmente, muitas pessoas não estão interessadas em ouvir com paciência a mensagem do Śrīmad-Bhāgavatam. O processo é simples, mas sua aplicação é difícil. Aqueles que são desafortunados acharão tempo para ouvir assuntos sociais e políticos corriqueiros, porém, ao serem convidados a assistir a uma reunião para ouvir o Śrīmad-Bhāgavatam, eles relutam em comparecer. Às vezes, há quem se entregue a ouvir trechos do Śrīmad-Bhāgavatam que não estão preparados para ouvir. Leitores profissionais do Bhāgavatam entregam-se à leitura dos trechos confidenciais que tratam dos passatempos do Senhor Supremo. Estes trechos se parecem com literatura licenciosa. Todavia, o Śrīmad-Bhāgavatam deve ser ouvido desde o começo, e aqueles que são aptos a assimilar suas mensagens são mencionados bem no início (Śrīmad-Bhāgavatam 1.1.2): uma audiência legítima e apta para ouvir o Śrīmad-Bhāgavatam é gerada após muitos feitos piedosos. A pessoa intelectual deve acreditar na palavra do grande sábio Vyāsadeva e ouvir com paciência as mensagens do Śrīmad-Bhāgavatam a fim de compreender diretamente a Suprema Personalidade de Deus. Não é necessário, com grande luta, passar pelos diversos graus de compreensão prescritos nos Vedas, pois a pessoa pode se elevar à posição de paramahaṁsa pelo simples processo de concordar em ouvir com paciência a mensagem do Śrīmad-Bhāgavatam. Os sábios de Naimiṣāraṇya disseram a Sūta Gosvāmī que tinham o intenso desejo de compreender o Śrīmad-Bhāgavatam. Estavam ouvindo Sūta Gosvāmī falar sobre Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, e nunca ficavam saciados destas conversas. Quem está de fato apegado a Kṛṣṇa, jamais quer parar de ouvir sobre Ele.

O Senhor Caitanya, portanto, aconselhou Prakāśānanda Sarasvatī: “Lê sempre o Śrīmad-Bhāgavatam e tenta entender todo e cada verso. Então compreenderás deveras o Brahma-sūtra. Dizes que estás muito ansioso por estudar o Vedānta-sūtra, porém, não podes compreender o Vedānta-sūtra sem teres entendido o Śrīmad-Bhāgavatam”. Ele também aconselhou Prakāśānanda Sarasvatī a cantar sempre Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare Hare/ Hare Rāma, Hare Rāma, Rāma Rāma, Hare Hare. “E, fazendo isso, serás liberado com muita facilidade. Após a liberação, estarás qualificado para atingir a mais elevada meta da vida, amor a Deus.”

O Senhor, então, recitou muitos versos de escrituras autorizadas, tais como o Śrīmad-Bhāgavatam, a Bhagavad-gītā e o Nṛsiṁha-tāpanī. Em especial, citou o seguinte verso da Bhagavad-gītā (18.54):

brahma-bhūtaḥ prasannātmā
  na śocati na kāṅkṣati
samaḥ sarveṣu bhūteṣu
  mad-bhaktiṁ labhate parām

“Aquele que está transcendentalmente situado entende de imediato o Brahman Supremo. Jamais se lamenta nem deseja ter nada; ele é equânime com todas as entidades vivas. Neste estado, ele passa a Me prestar serviço devocional puro.” Ao chegar a esta plataforma brahma-bhūta, a pessoa vê todas as entidades vivas com equanimidade e torna-se um devoto puro do Senhor Supremo. No Nṛsiṁha-tāpanī (2.5.16), afirma-se que, quando a pessoa está realmente liberada, ela pode entender os passatempos transcendentais do Senhor Supremo e, assim, ocupar-se em Seu serviço devocional. O Senhor Caitanya também citou um verso do Segundo Canto do Śrīmad-Bhāgavatam (2.1.9) em que Śukadeva Gosvāmī admite que, embora tivesse atingido a liberação e se livrado dos grilhões de māyā, ainda assim sentiu-se atraído pelos passatempos transcendentais de Kṛṣṇa. Portanto, ele estudou o Śrīmad-Bhāgavatam com seu ilustre pai, Vyāsadeva.

O Senhor Caitanya também citou outro śloka do Śrīmad-Bhāgavatam (3.15.43) referente aos Kumāras. Ao entrarem no templo do Senhor, os Kumāras foram atraídos pelo aroma das flores e folhas de tulasī oferecidas com polpa de sândalo aos pés de lótus do Senhor. Só por cheirar o aroma destas oferendas, as mentes dos Kumāras voltaram-se para o serviço ao Senhor Supremo, apesar de eles já serem almas liberadas. Afirma-se em outra parte do Bhāgavatam (1.7.10) que, mesmo que alguém seja uma alma liberada e, de fato, esteja livre da contaminação material, ainda assim, sem motivo, pode tornar-se atraído pelo serviço devocional ao Senhor Supremo. Assim, Deus é tão atrativo, e por isso é chamado Kṛṣṇa.

Dessa maneira, o Senhor Caitanya discutiu o verso ātmārāma do Śrīmad-Bhāgavatam com Prakāśānanda Sarasvatī. O admirador do Senhor Caitanya, o brāhmaṇa mahārāṣṭrīya, relatou que o Senhor explicou este verso de sessenta e uma maneiras distintas. Todos estavam desejosos de ouvir outra vez as diferentes versões do śloka ātmārāma, e, já que estavam tão interessados, o Senhor Caitanya tornou a explicar o śloka da mesma maneira que o fizera a Sanātana Gosvāmī. Todos os que ouviram as explicações do śloka ātmārāma ficaram admirados. Na verdade, todos consideravam que o Senhor Caitanya era ninguém mais senão o próprio Śrī Kṛṣṇa.

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