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Capítulo 1

O Propósito do Advento do Senhor Kapila

Verso 1

śaunaka uvāca
kapilas tattva-saṅkhyātā
bhagavān ātma-māyayā
jātaḥ svayam ajaḥ sākṣād
ātma-prajñaptaye nṛṇām

Śrī Śaunaka disse: Embora seja não-nascido, a Suprema Personalidade de Deus nasceu como Kapila Muni através de Sua potência interna. Ele fez Seu advento para disseminar o conhecimento transcendental para o benefício de toda a raça humana.

SIGNIFICADO—A expressão ātma-prajñaptaye indica que o Senhor desce para o benefício da raça humana, para dar conhecimento transcendental. As necessidades materiais ficam completa e suficientemente satisfeitas com o conhecimento védico, que oferece um programa de boas condições de vida e de elevação gradual à plataforma de sattva-guṇa, o modo da bondade. No modo da bondade, nosso conhecimento se expande. Na plataforma da paixão, não há conhecimento, pois a paixão não passa de mero ímpeto de usufruir dos benefícios materiais. Na plataforma da ignorância, não há conhecimento nem gozo, mas simplesmente uma vida quase como a dos animais.

Os Vedas destinam-se a elevar-nos do modo da ignorância à plataforma da bondade. Quando alguém está situado no modo da bondade, é capaz de entender o conhecimento acerca do eu, ou seja, o conhecimento transcendental. Nenhum homem comum pode apreciar este conhecimento; logo, faz-se necessária uma sucessão discipular. Este conhecimento é exposto ou pela Suprema Personalidade de Deus em pessoa, ou por Seu devoto autêntico. Śaunaka Muni também afirma neste verso que Kapila, a encarnação da Suprema Personalidade de Deus, nasceu, ou apareceu, simplesmente para disseminar o conhecimento transcendental. O simples entendimento de que não somos matéria, mas almas espirituais (ahaṁ brahmāsmi: “Sou Brahman por natureza”) não é conhecimento suficiente para compreendermos o eu e suas atividades. É preciso situarmo-nos nas atividades de Brahman. O conhecimento dessas atividades é explicado pela Suprema Personalidade de Deus em pessoa. Tal conhecimento transcendental pode ser apreciado na sociedade humana, mas não na sociedade animal, como deixa bem claro aqui a palavra nṛṇām, “para os seres humanos”. Os seres humanos destinam-se à vida regulada. Por natureza, também há regulações na vida animal, mas não podem comparar-se à vida regulada descrita nas escrituras ou pelas autoridades. Vida humana é vida regulada, e não vida animal. Somente na vida regulada segundo o padrão dos Vedas é que se pode compreender o conhecimento transcendental.

A fim de propagar este conhecimento transcendental, Kapiladeva, a encarnação da Suprema Personalidade de Deus, deu instruções sobre a filosofia sāṅkhya a Sua mãe, Devahūti. Mais tarde, outro Kapiladeva apareceu e apresentou a filosofia sāṅkhya ateísta, que trata dos vinte e quatro elementos, mas não apresenta informações sobre Deus. O Kapila original Se chama Devahūti-putra Kapila, e o outro é o Kapila ateísta. No que diz respeito a Kapiladeva, Śaunaka Ṛṣi diz: kapilas tattva-saṅkhyātā. Kapila é a Pessoa Suprema; Ele, portanto, pode explicar a Verdade Absoluta. Na realidade, apenas Bhagavān pode conhecer a posição verdadeira da verdade última. Ninguém mais pode conhecê-la. Bhagavān, Kṛṣṇa ou Sua encarnação, ocasionalmente visita a Terra para dar informações à humanidade sobre o objetivo da vida. Por isso, o Senhor Supremo desceu como Kapiladeva, tattva-saṅkhyātā. A palavra saṅkhyātā significa “expositor”, e tattva significa “a Verdade Absoluta”. A Verdade Absoluta é o próprio Bhagavān Śrī Kṛṣṇa. Não podemos compreender a Verdade Absoluta ou a Pessoa Suprema através de especulação mental, em especial quando estamos sob a influência dos três modos da natureza material (sattva-guṇa, rajo-guṇa e tamo-guṇa). Somente aqueles que se situaram em sattva-guṇa (o modo da bondade) é que estão aptos a compreender a Verdade Absoluta. De acordo com a Bhagavad-gītā (18.42), aqueles que possuem qualificações bramânicas estão situados em sattva-guṇa.

śamo damas tapaḥ śaucaṁ
kṣāntir ārjavam eva ca
jñānaṁ vijñānam āstikyaṁ
brahma-karma svabhāva-jam

“Tranquilidade, autocontrole, austeridade, pureza, tolerância, honestidade, conhecimento, sabedoria e religiosidadesão estas as qualidades naturais com as quais os brāhmaṇas agem.”

Segundo a concepção védica, deve haver homens na sociedade que sejam brāhmaṇas genuínos, capazes de disseminar a verdade insofismável. Se todos se tornam śūdras, não é possível compreender a Verdade Absoluta. Afirma-se que, no presente momento, em Kali-yuga, todos são śūdras (kalau śūdra-sambhavāḥ), e é muito difícil nesta era encontrar brāhmaṇas qualificados, pois são muito raros. Não há praticamente nenhum brāhmaṇa qualificado nesta era.

prāyeṇālpāyuṣaḥ sabhya
kalāv asmin yuge janāḥ
mandāḥ sumanda-matayo
manda-bhāgyā hy upadrutāḥ

“Ó sábio, nesta férrea era de Kali, os homens têm vida curta. São briguentos, preguiçosos, desorientados, azarentos e, acima de tudo, sempre perturbados.” (Śrīmad-Bhāgavatam 1.1.10) As pessoas desta era têm vida curta e são morosas para compreender a vida espiritual. Na verdade, vida humana destina-se à compreensão de valores espirituais, mas, como todos nesta era são śūdras, ninguém se interessa por tais assuntos. Os homens esqueceram-se do verdadeiro objetivo da vida. A palavra manda significa tanto moroso como mau, e todos nesta era são ou maus ou morosos ou uma combinação de ambos. Eles são desafortunados e perturbados por várias coisas. De acordo com o Śrīmad-Bhāgavatam, chegará a época em que não haverá mais chuvas e, como consequência disso, faltarão alimentos. Os governos também taxarão impostos altíssimos. Até certo ponto, já se podem experimentar as características dessa era predita no Śrīmad-Bhāgavatam. Visto que Kali-yuga é uma era de muito sofrimento, Caitanya Mahāprabhu, que é o próprio Śrī Kṛṣṇa, aconselha a todos que simplesmente cantem Hare Kṛṣṇa.

harer nāma harer nāma
harer nāmaiva kevalam
kalau nāsty eva nāsty eva
nasty eva gatir anyathā

“Nesta era de Kali, não há outro meio, não há outro meio, não há outro meio para se alcançar a autorrealização, senão cantar os santos nomes, cantar os santos nomes, cantar os santos nomes do Senhor.” (Bṛhan-nāradīya Purāṇa) Este processo não é uma invenção de Caitanya Mahāprabhu, mas sim um processo aconselhado pelos śāstras, os Purāṇas. O processo para Kali-yuga é muito simples. Basta cantar o mahā-mantra Hare Kṛṣṇa. Já que todos nesta era são śūdras ininteligentes, desafortunados e perturbados, como alguém pode compreender a Verdade Absoluta ou o objetivo da vida? Como o próprio Senhor declara na Bhagavad-gītā (4.7):

yadā yadā hi dharmasya
glānir bhavati bhārata
abhyutthānam adharmasya
tadātmānaṁ sṛjāmy aham

“Sempre e onde quer que haja um declínio na prática religiosa, ó descendente de Bharata, e um aumento predominante de irreligiãonesse momento, Eu próprio desço.”

Há algumas centenas e milhares de anos, o Senhor Kṛṣṇa apareceu como Devahūti-putra Kapiladeva. O nome de Seu pai era Kardama Muni. Depois que Kapiladeva ficou adulto, Seu pai, de acordo com o sistema védico, retirou-se, aceitou sannyāsa e deixou o lar a fim de cultivar a vida espiritual. Não é que devamos apodrecer neste mundo material a vida inteira. Pañcāśordhvaṁ vanaṁ vrajet. Segundo os preceitos védicos, existem quatro āśramas e quatro varṇas, e costumavam-se segui-los muito à risca. Depois que seu filho cresceu, Kardama Muni, sendo um seguidor estrito dos Vedas, deixou o lar e confiou sua esposa aos cuidados de seu filho adulto, Kapiladeva.

Afirma-se sobre Kapiladeva: kapilas tattva-saṅkhyātā bhagavān. O Senhor Kapila é Bhagavān. Hoje em dia, Bhagavān tornou-se um conceito muito barato, porque a palavra tem sido mal utilizada, mas, na verdade, Bhagavān não é um homem qualquer. Avajānanti māṁ mūḍhāḥ: porque Bhagavān Śrī Kṛṣṇa apareceu como um ser humano, tolos e patifes (mūḍhas) consideram Kṛṣṇa um ser humano comum. Como o próprio Kṛṣṇa declara na Bhagavad-gītā (7.13):

tribhir guṇa-mayair bhāvair
ebhiḥ sarvam idaṁ jagat
mohitaṁ nābhijānāti
mām ebhyaḥ param avyayaṁ

“Iludido pelos três modos [bondade, paixão e ignorância], o mundo inteiro não conhece a Mim, que estou acima dos modos e sou inesgotável.”

Ainda assim, existem mahātmās, grandes almas, que podem compreender Kṛṣṇa. Arjuna pôde compreender que, embora Kṛṣṇa estivesse representando o papel de seu amigo, Ele era a Suprema Personalidade de Deus. Arjuna possuía conhecimento perfeito; Kṛṣṇa, todavia, o instruiu para nosso benefício. Arjuna pediu instruções a Kṛṣṇa, as quais serviriam para toda a sociedade humana. Após ouvir a Bhagavad-gītā, Arjuna dirigiu-se a Kṛṣṇa como paraṁ brahma paraṁ dhāma, “o Brahman Supremo e a morada suprema”.

Todos de fato são Brahman, almas espirituais. Na verdade, não somos o corpo. Compreender que ahaṁ brahmāsmi (“sou Brahman”) é verdadeira autorrealização. De acordo com a cultura védica, o homem deve compreender que é Brahman, e não o corpo. Não devemos permanecer na ignorância como cães e gatos, pensando: “Sou este corpo, sou americano, sou indiano, sou brāhmaṇa, sou kṣatriya, sou hindu, sou muçulmano” e assim por diante. Todas essas designações são corpóreas. Quando alguém alcança a compreensão espiritual, compreende que ahaṁ brahmāsmi (“sou Brahman”). Isso é o que se chama realização acerca de Brahman. Não é que nos tornamos Brahman através de algum processo. Ouro é ouro, mesmo coberto por algum tipo de sujeira, que decerto pode ser removida. De forma semelhante, todos somos Brahman, almas espirituais, mas, de uma forma ou outra, entramos em contato com estes elementos materiais (bhūmir āpo ’nalo vāyuḥ) e adquirimos estas coberturas corpóreas. Por isso, pensamos: “Sou este corpo.” Isso é ignorância, e a menos que se ilumine com conhecimento espiritual, o homem permanece animalesco.

Compreender a própria identidade espiritual chama-se dharma. O próprio Śrī Kṛṣṇa explica na Bhagavad-gītā (18.66) o objetivo final de dharma. Sarva-dharmān parityajya mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja: “Abandona todas as variedades de religião e simplesmente rende-te a Mim.” Nesta Terra, criamos muitos dharmas – dharma hindu, dharma muçulmano, dharma cristão. Todos esses dharmas são criados, mas o verdadeiro dharma é obtido quando se chega à conclusão de que Śrī Kṛṣṇa é tudo. De novo, conforme as palavras de Śrī Kṛṣṇa na Bhagavad-gītā (7.19):

bahūnāṁ janmanām ante
jñānavān māṁ prapadyate
vāsudevaḥ sarvam iti
sa mahātmā su-durlabhaḥ

“Após muitos nascimentos e mortes, aquele que tem verdadeiro conhecimento rende-se a Mim, sabendo que sou a causa de todas as causas e de tudo o que existe. É muito raro encontrar semelhante grande alma.”

O movimento para a consciência de Kṛṣṇa tem por objetivo a propagação desta mensagem. Não estamos pregando um sistema religioso sectário, mas sim a religião verdadeira, dharma. Dharmaṁ tu sākṣād bhagavat-praṇītam: ninguém sabe realmente o que é dharma, e ninguém pode criar um dharma. Dharma é a ordem do Ser Supremo. Ninguém pode criar leis estatais; só o governo pode fazê-lo. A mais simples definição de dharma é que dharma é a ordem do Ser Supremo. Visto que o Ser Supremo, Deus, é um, Sua ordem também tem de ser uma. Como é possível, então, que existam diferentes dharmas? Não é possível. Criam-se dharmas diferentes devido à ignorância, que faz com que os homens pensem em termos de dharma hindu, dharma muçulmano, dharma cristão, este dharma, aquele dharma. Não. Ouro é ouro. Se um cristão possui ouro, isso quer dizer que se tornou ouro cristão? Ouro é ouro, quer o dono seja hindu, muçulmano ou cristão. De acordo com a ordem da Suprema Personalidade de Deus, dharma significa render-se ao Ser Supremo. Isso é bhāgavata-dharma, e todos devem aprender a como render-se a Deus. Deus é um; não pode haver dois Deuses. Onde há competição, não há Deus. Atualmente vemos um Deus diferente em cada esquina, mas Kṛṣṇa não é esse tipo de Deus. Ele é o Deus Supremo. Como o próprio Kṛṣṇa afirma na Bhagavad-gītā (7.7):

mattaḥ parataraṁ nānyat
kiñcid asti dhanañ-jaya
mayi sarvam idaṁ protaṁ
sūtre maṇi-gaṇā iva

“Ó conquistador de riquezas [Arjuna], não há verdade superior a Mim. Tudo repousa em Mim, como pérolas ensartadas em um cordão.”

O propósito deste movimento para a consciência de Kṛṣṇa é informar a todos que ninguém é superior a Kṛṣṇa, Deus. Porque muitos jovens americanos e europeus são afortunados e desconhecem essa confusão em relação a Deus, eles levaram a sério este autêntico movimento para a consciência de Kṛṣṇa. Kṛṣṇas tu bhagavān svayam: Bhagavān, Deus, quer dizer Śrī Kṛṣṇa. Apenas apresentamos esta informação, dizendo: “Eis aqui Deus. Śrī Kṛṣṇa.” Porque levaram este conhecimento a sério, muitos jovens americanos e europeus estão avançando na consciência de Kṛṣṇa. Por isso, muitas pessoas estão surpresas de ver como americanos e europeus se tornaram devotos tão bons e estão dançando em êxtase. Por que eles são tão avançados? Porque levaram a sério esta informação: kṛṣṇas tu bhagavān svayam. Se alguém, quer consciente, quer inconscientemente, toca o fogo, o fogo queima. Não é que se uma criança tocar o fogo, este não queimará. Estes jovens ocidentais tocaram o fogo, e ele, por conseguinte, está agindo como tal.

Ācāryopāsanam: esta informação (kṛṣṇas tu bhagavān svayam) não é inventada, senão que é aceita pelos ācāryas na sucessão discipular. Embora fosse um impersonalista, Śaṅkarācārya aceitou Kṛṣṇa como a Suprema Personalidade de Deus. Assim também o fizeram Rāmānujācārya, Madhvācārya, Viṣṇusvāmī, Nimbārka, Śrī Caitanya Mahāprabhu e Seus seguidores. Todos eles aceitam Kṛṣṇa como o Supremo, assim como o próprio Arjuna o fez. Esse é o método mais simples. Não há necessidade de especular: “O que é Deus? Onde está Deus?” Por que continuar procurando como um tolo? Eis aqui DeusKṛṣṇa. Talvez pensemos que Kṛṣṇa não pode ser visto, mas Kṛṣṇa pode aparecer na forma de Sua energia. Evidentemente, uma pedra não é Deus, mas uma pedra é uma das energias de Deus. Calor e luz não são fogo, mas, sem fogo, não pode haver nem calor nem luz. Neste sentido, calor e luz não são diferentes do fogo. Este mundo material é tal qual o calor e a luz do fogo supremo.

eka-deśa-sthitasyāgner
jyotsnā vistāriṇī yathā
parasya brahmaṇaḥ śaktis
tathedam akhilaṁ jagat

“Assim como o fogo está situado em um lugar, mas distribui luz por toda a volta, a Suprema Personalidade de Deus, Para-brahman, espalha Suas energias pelo universo inteiro.” (Viṣṇu Purāṇa 1.22.53)

O Sol está situado em um lugar, mas sua luz e seu calor se expandem por todo o sistema solar. Logo que percebemos luz e calor, podemos compreender que o Sol está presente. Visto que todos podem perceber a luz e o calor, Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (7.8) que prabhāsmi śaśi-sūryayoḥ: “Sou a luz do Sol e da Lua.” Sem compreenderem que estão vendo Deus todo dia, a todo momento, as pessoas costumam dizer: “Você pode nos mostrar Deus?” Porque os homens nesta era são tolos, eles não conseguem compreender que, ao percebermos a energia do Senhor, podemos sentir Sua presença.

Os jovens devotos deste movimento para a consciência de Kṛṣṇa estão de fato adorando Kṛṣṇa. Quais são os sintomas de um devoto? O verdadeiro sintoma de um devoto é que ele não se interessa mais pelo desfrute material: bhaktiḥ pareśānubhavo viraktir anyatra ca. (Śrīmad-Bhāgavatam 11.2.42) Os discípulos deste movimento para a consciência de Kṛṣṇa não vão a cinemas, restaurantes ou clubes, tampouco fumam ou bebem. Nos países europeus e americanos, todas essas coisas são acessíveis e muito baratas, mas estes jovens não estão interessados nelas. Estão interessados apenas em sentar-se no chão e aprender a consciência de Kṛṣṇa. Por que isso acontece? Eles de fato rejeitaram o mundo material. Quando alguém passa a detestar o desfrute material, pode entender que está avançando na vida espiritual. Vida espiritual não significa aceitar sannyāsa e, em seguida, fumar ou beber chá. É preciso realmente chegar a detestar a vida material. O devoto perde o interesse pelas atividades mundanas e fica interessado apenas em compreender a Deus, o Ser Supremo, e o serviço prestado a Ele. Como se prescreve no Śrīmad-Bhāgavatam (5.5.1):

nāyaṁ deho deha-bhājāṁ nṛloke
kaṣṭān kāmān arhate vid-bhujāṁ ye

“Dentre todas as entidades vivas que aceitaram corpos materiais neste mundo, aquele que recebeu esta forma humana não deve trabalhar arduamente dia e noite com o simples propósito de satisfazer os sentidos, visto que isso se encontra disponível até mesmo para os cães e porcos, meros comedores de excremento.” A palavra vid-bhujām significa “comedores de excremento”. Os porcos trabalham duro dia e noite apenas comendo excremento, e porque o excremento contém substâncias químicas como o hidrofosfato, o porco fica forte, engorda bastante e desfruta de sexo. De qualquer forma, a vida humana não se destina a imitar a vida do porco, mas sim a tapasya, austeridade:

tapo divyaṁ putrakā yena sattvaṁ
śuddhyed yasmād brahma-saukhyaṁ tv anantam

“Ao contrário, meus queridos filhos, a pessoa deve ocupar-se em penitências e austeridades para alcançar a posição divina do serviço devocional. Através dessa atividade, seu coração se purifica, e, ao situar-se nessa posição, obtém vida bem-aventurada e eterna, que é transcendental à felicidade material e continua para sempre.” (Śrīmad-Bhāgavatam 5.5.1)

Esse é o propósito da civilização védica. A sociedade de varṇāśrama-dharmacomposta de brāhmaṇas, kṣatriyas, vaiśyas, śūdras, gṛhasthas, vānaprasthas, brahmacārīs e sannyāsīspresta-se a elevar o ser humano pouco a pouco à plataforma perfeita de compreensão de Deus. Todo o objetivo dos diferentes varṇas e āśramas é a adoração ao Senhor Supremo. Pode-se atingir esta compreensão através desse sistema social, que admite gradações. Quando a criança vai para a escola, ela começa do primeiro ano, depois passa para o segundo, terceiro e assim por diante. Dessa maneira é que se faz progresso.

Quando a sociedade humana aceita o varṇāśrama-dharma, ela pode aos poucos chegar à compreensão do que é Brahman. Por nascimento, todos são śūdras; logo, todos devem receber educação. A palavra dvija significa “duas vezes nascido”. Primeiro o homem nasce do ventre de uma mãe, após o que nasce através do mestre espiritual e do conhecimento védico. O conhecimento védico é a mãe, e o mestre espiritual é o pai. Quando o homem é duas vezes nascido (dvija), ele recebe do mestre espiritual um cordão sagrado e começa a aprender a vida espiritual. Então, permite-se que ele leia as escrituras védicas. Dessa maneira ele se torna filho da literatura védica. Nigama-kalpa-taror galitaṁ phalam: o Śrīmad-Bhāgavatam é a essência da cultura védica. É a árvore que satisfaz todos os desejos, e podemos obter dele o que quer que desejemos. O conhecimento védico é perfeito, e, se desejamos chegar a conhecê-lo, temos de nos refugiar em um guru genuíno (tad-vijñānārthaṁ sa gurum evābhigacchet).

Infelizmente, tudo nesta era está sendo mal administrado. As pessoas esquecem o objetivo da vida, e, em tal situação, o próprio Senhor Supremo vem. O Senhor Supremo faz Seu advento neste mundo por compaixão, pois está mais ansioso de nos levar de volta ao lar, de volta ao Supremo, do que nós mesmos o estamos. Porque vivemos em ignorância, não sabemos nada sobre o reino de Deus. Não fazemos a mínima ideia de como chegar lá, nem de como nos tornarmos felizes. Esquecemos tudo isso. Portanto, Kṛṣṇa vem periodicamente ou envia Seu representante, o devoto puro. Ora Ele mesmo vem, ora envia uma encarnação Sua.

Kapiladeva é uma encarnação da Pessoa Suprema, Kṛṣṇa. Portanto, declara-se que kapilas tattva-saṅkhyātā bhagavān ātma-māyayā. A palavra māyā significa não apenas “ilusão”, como também “afeição” e “energia”. Quando Kṛṣṇa vem, todas as Suas energias O acompanham. Não é que Ele seja forçado a vir. Nós temos de aceitar certo tipo de corpo porque somos forçados a isso, mas tal situação não se aplica a Śrī Kṛṣṇa. Hoje posso ter uma forma humana, mas, no futuro, não posso exigir o mesmo. Recebemos corpos em nossas próximas vidas de acordo com nosso karma, e não de acordo com nossa vontade. Ninguém pode exigir a posição de juiz do Tribunal de Justiça sem se preparar para o cargo. Antes de tudo, é preciso se qualificar. Se a pessoa se qualifica, ela pode se tornar um devatā, um semideus como Indra ou Candra, ou pode tornar-se um cão ou um gato. Isso depende de seu karma, ou seja, atividades (karmaṇā daiva-netreṇa). Quando Kṛṣṇa ou Sua encarnação vem, Eles não dependem de karma para a obtenção de Seus corpos. O Senhor Supremo está acima do karma e tem completa independência. Portanto, afirma-se que ātma-māyayā. O Senhor Supremo vem mediante Sua própria energia, e não através da energia externa ou à força. Ao visitar a prisão, o governador não é forçado a isso. Não se deve considerá-lo um condenado; ao contrário, ele vai ali por sua boa vontade apenas para verificar como tudo está sendo encaminhado. Entretanto, sabe-se que quando um homem qualquer é posto na prisão, ele foi mandado para lá à força, pois provou-se que ele é um criminoso. Assim como um criminoso talvez pense que o governador e ele estão no mesmo nível, certos patifes e tolos pensam que Kṛṣṇa é como um deles. Avajānanti māṁ mūḍhā mānuṣīṁ tanum āśritam. O homem dotado de conhecimento sabe que quando Kṛṣṇa ou Sua encarnação descem ao mundo material, Eles mantêm Sua posição transcendental. Ele não é um homem qualquer, tampouco é forçado a vir ao mundo material como resultado do karma. O Senhor Supremo vem simplesmente por Seu bel-prazer. Paraṁ bhāvam ajānantaḥ. Os patifes não podem compreender quem é Kṛṣṇa; logo, pensam que Kṛṣṇa é um ser humano. Como o próprio Kṛṣṇa declara na Bhagavad-gītā (7.3):

manuṣyāṇāṁ sahasreṣu
kaścid yatati siddhaye
yatatām api siddhānāṁ
kaścin māṁ vetti tattvataḥ

“Dentre muitos milhares de homens, talvez haja um que se esforce para obter a perfeição, e, dentre aqueles que alcançaram a perfeição, é difícil um que Me conheça de verdade.”

Compreender Kṛṣṇa não é, portanto, tão fácil. Como Kṛṣṇa afirma, dentre muitos milhares de seres humanos, talvez um se torne siddha, um ser autorrealizado. E dentre muitos siddhas, talvez um seja capaz de compreender Kṛṣṇa. É grande fortuna nossa que Śrī Caitanya Mahāprabhu, o próprio Kṛṣṇa, tenha aparecido e nos dado um processo tão fácil pelo qual podemos compreender Kṛṣṇa. E que processo é esse? Precisamos apenas ouvir sobre Kṛṣṇa. Isso é tudo. Por isso abrimos todos estes templos da consciência de Kṛṣṇa no mundo inteiro.

śṛṇvatāṁ sva-kathāḥ kṛṣṇaḥ
puṇya-śravaṇa-kīrtanaḥ
hṛdy antaḥ-stho hy abhadrāṇi
vidhunoti suhṛt satām

“Śrī Kṛṣṇa, a Personalidade de Deus, que é o Paramātmā [Superalma] no coração de todos e o benfeitor do devoto veraz, purifica do desejo de gozo material o coração do devoto que desenvolve o desejo ardente de ouvir Suas mensagens, que são por si mesmas virtuosas quando adequadamente ouvidas e cantadas.” (Śrīmad-Bhāgavatam 1.2.17)

Se ouvimos sobre Kṛṣṇa, nós nos purificamos. Ouvir sobre Kṛṣṇa significa associar-nos com Kṛṣṇa. Dessa maneira podemos aperfeiçoar nossas vidas.

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