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Capítulo 14

Bhakti é a Liberação Última

Verso 31

maitreya uvāca
viditvārthaṁ kapilo mātur ittham
jāta-sneho yatra tanvābhijātaḥ
tattvāmnāyaṁ yat pravadanti sāṅkhyaṁ
provāca vai bhakti-vitāna-yogam

Śrī Maitreya disse: Após ouvir a afirmação de Sua mãe, Kapila pôde entender sua intenção e encheu-Se de compaixão por ela, uma vez que havia nascido de seu corpo. Ele, então, descreveu o sistema de filosofia sāṅkhya, que é uma combinação de serviço devocional e compreensão mística, conforme fora recebido através da sucessão discipular.

SIGNIFICADO—A filosofia proposta pelo Kapila ateísta é uma análise dos elementos materiais e é muito apreciada pelos filósofos ocidentais. O sāṅkhya-yoga explicado pelo Senhor Kapiladeva, o filho de Devahūti, é praticamente desconhecido no Ocidente. O sāṅkhya-yoga proposto aqui é, na verdade, bhakti. Este verso explica que a maneira apropriada de receber este conhecimento é através da sucessão discipular, e não através da especulação filosófica. Especulação é um processo inadequado para se compreender a Verdade Absoluta. Em geral, os filósofos ocidentais tentam compreender a Verdade Absoluta através do processo ascendente da especulação mental. Esse é o processo da lógica indutiva. O outro processo é o descendente, ou o processo paramparā. Mediante esse método, o conhecimento desce através de uma fonte superior.

Na Bhagavad-gītā, explicam-se muitos sistemas de yoga, mas o sistema de bhakti-yoga é considerado superior a todos. Em última análise, todos os yogas terminam em bhakti-yoga. A conclusão final de jñāna-yoga e haṭha-yoga é bhakti-yoga. O sexto capítulo da Bhagavad-gītā explica o sistema haṭha-yoga de meditação, e Arjuna, que era muito elevado, disse que não podia concentrar a mente daquela maneira. Se o sistema de haṭha-yoga era tão difícil de ser praticado há cinco mil anos por alguém tão elevado que era até mesmo amigo de Kṛṣṇa, o que dizer, então, de praticá-lo hoje em dia? Arjuna disse francamente que esse sistema de yoga era impossível de executar, pois a mente é tão difícil de controlar quanto o vento.

O sistema de haṭha-yoga destina-se basicamente àqueles que são por demais apegados ao corpo; do contrário, o yoga mais elevado é sāṅkhya-yoga ou bhakti-yoga. Quando Arjuna disse a Śrī Kṛṣṇa que o sistema de haṭha-yoga era muito difícil de executar, o Senhor o tranquilizou dizendo que o yogī de primeira classe é aquele que está sempre pensando nEle. (Bhagavad-gītā 6.47) Arjuna não conhecia nada além de Kṛṣṇa e, em virtude disso, pediu a Kṛṣṇa que ficasse do seu lado na batalha. Quando Duryodhana, junto de Arjuna, se aproximou de Kṛṣṇa e pediu-lhe que tomasse algum partido, Kṛṣṇa disse: “Tenho dezoito divisões militares. Essas divisões ficarão de um lado, e Eu pessoalmente ficarei de outro. Entretanto, não lutarei nessa batalha.” Primeiro, Arjuna pensou que seria melhor aceitar as dezoito divisões com seus muitos milhares de elefantes e cavalos, mas depois considerou que, caso simplesmente tivesse Kṛṣṇa a seu lado, isso seria suficiente. Ele não precisaria de nenhum soldado comum. Duryodhana, por outro lado, decidiu ficar com os soldados de Kṛṣṇa. Assim, para apaziguar Arjuna, Kṛṣṇa lhe disse que não se preocupasse, embora ele não fosse capaz de executar o sistema de aṣṭāṅga-yoga.

“O yogī de primeira classe é aquele que sempre pensa em Mim”, disse Kṛṣṇa. Por isso, devemos sempre lembrar-nos de que Kṛṣṇa está dentro do coração e pensar nEle. Esse é o sistema correto de meditação. Se sempre cantarmos o mahā-mantra Hare Kṛṣṇa, iremos nos lembrar de Kṛṣṇa, e Sua forma despertará em nosso coração. O processo de pensar constantemente em Kṛṣṇa é o processo da consciência de Kṛṣṇa. O yogī de primeira classe é aquele que está sempre consciente de Kṛṣṇa. Qualquer um pode ser consciente de Kṛṣṇa, contanto que ouça sobre Ele submissamente.

É necessário aceitar Kṛṣṇa através da sucessão discipular. Existem quatro sampradāyas, sucessões discipulares. Uma vem através do senhor Brahmā (o Brahma-sampradāya), outra vem através de Lakṣmī, a deusa da fortuna, o Śrī-sampradāya. Há também o Kumāra-sampradāya e o Rudra-sampradāya. Nos dias de hoje, o Brahma-sampradāya está representado pelo Madhva-sampradāya, e nós pertencemos a esse sampradāya. Nosso sampradāya original provém de Madhvācārya. Nesse sampradāya, esteve Mādhavendra Purī, cujo discípulo foi Śrī Īśvara Purī. O discípulo desse foi o Senhor Caitanya Mahāprabhu. Assim sendo, pertencemos à sucessão discipular de Śrī Caitanya Mahāprabhu, em virtude do que nosso sampradāya é chamado de Madhva-gauḍīya-sampradāya. Não é que inventamos um sampradāya; ao contrário, nosso sampradāya provém do senhor Brahmā. Também existe o Rāmānuja-sampradāya, que provém do Śrī-sampradāya, e o Viṣṇusvāmī-sampradāya, que provém do Rudra-sampradāya. O Nimbāditya-sampradāya provém do Kumāra-sampradāya. Se não pertencemos a nenhum sampradāya, nossa conclusão é inútil. Ninguém deve pensar: “Sou um grande erudito e posso interpretar a Bhagavad-gītā à minha maneira. Todos esses sampradāyas são inúteis.” Não podemos inventar nossos comentários. Existem muitos comentários feitos assim, mas todos eles são inúteis. Eles não produzem nenhum efeito. Temos de aceitar a filosofia como a expuseram o senhor Brahmā, Nārada, Madhvācārya, Mādhavendra Purī e Īśvara Purī. Esses grandes ācāryas estão além das imperfeições dos pseudoeruditos. Cientistas e filósofos mundanos usam palavras como “talvez” e “pode ser” porque não conseguem chegar à conclusão correta. Eles só fazem especular, e a especulação mental não pode ser perfeita.

Bhakti-yoga é o último degrau na escada de todos os yogas. O primeiro degrau é karma-yoga, depois vêm jñāna-yoga e dhyāna-yoga e, por último, bhakti-yoga. Todos tentam alcançar a Verdade Absoluta, mas os outros yogas terminam em conhecimento parcial. A compreensão obtida através de bhakti-yoga é completa, e mesmo que alguém não a desenvolva por completo, ela tem potência. Eminentes mahājanas, como o senhor Brahmā, o senhor Śiva e Kapiladeva, também a recomendam. Porque é muito difícil compreender o caminho da perfeição, os śāstras recomendam que sigamos os mahājanas, que são assim descritos no Śrīmad-Bhāgavatam (6.3.20):

svayambhūr nāradaḥ śambhuḥ
kumāraḥ kapilo manuḥ
prahlādo janako bhīṣmo
balir vaiyāsakir vayam

Porque nasceu de uma flor de lótus que emanou do umbigo do Senhor Viṣṇu, e não de um pai e uma mãe, o senhor Brahmā também é chamado de Svayambhū. Nārada Muni também é um mahājana, e Śambhū é o senhor Śiva. Kumāra se refere aos quatro KumārasSanaka, Sanandana, Sanātana e Sanat-kumāra. Há doze autoridades que seguem a filosofia sāṅkhya, ou bhakti-yoga, a saber, o senhor Brahmā, Nārada, o senhor Śiva, os Kumāras, Kapiladeva, Manu, Prahlāda Mahārāja, Janaka Mahārāja, Bhīṣmadeva, Bali Mahārāja, Śukadeva Gosvāmī e Yamarāja. Se simplesmente aceitarmos um desses mahājanas, seremos bem-sucedidos quanto à compreensão acerca da Verdade Absoluta, mas, se tentarmos compreender a Verdade Absoluta através de lógica e argumentos, acabaremos frustrados. Um filósofo pode ser melhor que outro, e um argumento filosófico pode ser melhor que outro, mas esse processo continua indefinidamente. Não passa de completo desperdício de tempo. Mesmo que busquemos as escrituras védicas, encontraremos dificuldades. Há muitas escrituras – Yajur Veda, Ṛg Veda, Sāma Veda, Atharva Veda, as Upaniṣads, os Purāṇas, Brahma-sūtra, Rāmāyaṇa, Mahābhārata e assim por diante. Diferentes pessoas as leem e chegam a diferentes conclusões. Também existe a Bíblia e o Alcorão. De acordo com as diferentes classes de homens, há diferentes interpretações. Um filósofo vence outro filósofo com base nas escrituras. Afirma-se até mesmo que ninguém pode se tornar um ṛṣi, um filósofo, caso não proponha um sistema filosófico diferente. Nāsāv ṛṣir yasya mataṁ na bhinnam. A verdade sobre a vida espiritual é, portanto, muito complicada e difícil de compreender. A conclusão é que se deve seguir um desses doze mahājanas para se alcançar o êxito. Kṛṣṇa é o mahājana original, e Ele instruiu o senhor Brahmā. O senhor Brahmā também é um mahājana. Na verdade, Kṛṣṇa instruiu a todos na Bhagavad-gītā e, dessa maneira, todos aprenderam com Kṛṣṇa.

No Śrīmad-Bhāgavatam (1.1.1), declara-se que tene brahma hṛdā ya ādi-kavaye. Desse modo, Kṛṣṇa apresenta instruções pessoais assim como Kapiladeva deu Suas instruções pessoais. Não existe contradição entre a filosofia de Kṛṣṇa na Bhagavad-gītā e a de Kapiladeva. Basta recebermos o conhecimento transcendental através dos mahājanas, e os resultados serão benéficos. Kapiladeva explicou esta filosofia sāṅkhya a Sua mãe, e embora Ele tivesse afeição natural por ela, não devemos pensar que Devahūti era uma mulher qualquer. Ela era muito submissa, e, ao ver isso, Kapiladeva encheu-Se de compaixão. Ele viu que ela estava ávida por conhecer a Verdade Absoluta e considerou que Ele, afinal, recebera dela o Seu corpo. Ele, então, concluiu que deveria tentar lhe dar a conclusão máxima do conhecimento filosófico, que é esta filosofia sāṅkhya.

Verso 32

śrī-bhagavān uvāca
devānāṁ guṇa-liṅgānām
ānuśravika-karmaṇām
sattva evaika-manaso
vṛttiḥ svābhāvikī tu yā
animittā bhāgavatī
bhaktiḥ siddher garīyasī

O Senhor Kapila disse: Os semideuses são representados simbolicamente pelos sentidos, cuja tendência natural é trabalhar sob a orientação dos preceitos védicos. Assim como os sentidos são representantes dos semideuses, da mesma forma, a mente é representante da Suprema Personalidade de Deus. O dever natural da mente é servir. Quando esse espírito de serviço é ocupado em serviço devocional à Personalidade de Deus, sem nenhuma motivação, isso é ainda muito melhor do que a salvação.

SIGNIFICADO—Os sentidos da entidade viva estão sempre atarefados com alguma ocupação, seja em atividades recomendadas nos preceitos dos Vedas, seja em atividades materiais. A tendência natural dos sentidos é trabalhar em troca de algo, e a mente é o centro dos sentidos. A mente é realmente o líder dos sentidos e, por isso, é chamada de sattva. Da mesma forma, de todos os semideuses que estão ocupados nas atividades deste mundo materialo deus do Sol, o deus da Lua, Indra e outros, o líder é a Suprema Personalidade de Deus.

A literatura védica afirma que os semideuses são diferentes membros do corpo universal da Suprema Personalidade de Deus. Nossos sentidos também são controlados por diversos semideuses; nossos sentidos são representações de vários semideuses, e a mente é a representação da Suprema Personalidade de Deus. Os sentidos, liderados pela mente, agem sob a influência dos semideuses. Quando o serviço é finalmente destinado à Suprema Personalidade de Deus, os sentidos estão em sua posição natural. O Senhor é chamado de Hṛṣīkeśa, pois Ele é realmente o proprietário e senhor fundamental dos sentidos. Os sentidos e a mente têm a tendência natural de trabalhar, mas, estando contaminados pela matéria, agem em troca de algum benefício material ou a serviço dos semideuses, embora, na verdade, eles se destinem a servir à Suprema Personalidade de Deus. Os sentidos são chamados de hṛṣīka, e a Suprema Personalidade de Deus é chamada de Hṛṣīkeśa. Indiretamente, todos os sentidos têm a tendência natural de servir ao Senhor Supremo. Isso se chama bhakti.

Kapiladeva disse que, ao ocuparmos nossos sentidos, sem desejo de lucro material ou outras motivações egoístas, a serviço da Suprema Personalidade de Deus, situamo-nos em serviço devocional. Esse espírito de serviço é muito melhor do que siddhisalvação. Bhakti, a tendência a servir à Suprema Personalidade de Deus, está em uma posição transcendental muito melhor do que mukti, ou liberação. Assim, bhakti é a fase posterior à liberação. Quem não é liberado não pode ocupar os sentidos a serviço do Senhor. Quando os sentidos são ocupados, ou em atividades materiais de gozo dos sentidos, ou nas atividades dos preceitos védicos, há alguma motivação, porém, quando os mesmos sentidos são ocupados a serviço do Senhor e não há motivação, isso se chama animittā e é a tendência natural da mente. A conclusão é que, quando a mente, sem se deixar desviar por preceitos védicos ou por atividades materiais, é ocupada plenamente em consciência de Kṛṣṇa, ou serviço devocional à Suprema Personalidade de Deus, isso é muito melhor do que a tão ambicionada liberação do enredamento material.

Bhakti, serviço devocional, é transcendental até mesmo a mukti, a liberação. As pessoas em geral se preocupam com dharma, artha, kāma e mokṣa. No princípio, existe dharma (religião), então artha (desenvolvimento econômico), kāma (gozo dos sentidos) e depois mokṣa (fundir-se no Uno Supremo). Bhakti, entretanto, está acima disso tudo. Mukti não é muito importante para um bhakta. Nas palavras de Bilvamaṅgala Ṭhākura: muktiḥ svayaṁ mukulitāñjali sevate ’smāt. “Mukti em pessoa encontra-se de mãos postas à espera de poder servir o devoto.” (Kṛṣṇa-karṇāmṛta 107) Essa é a experiência de Bilvamaṅgala Ṭhākura, que era um brāhmaṇa muito rico do Sul da Índia. Devido à má associação, Bilvamaṅgala Ṭhākura se tornou um inveterado caçador de prostitutas e gastou todo o seu dinheiro com uma prostituta chamada Cintāmaṇi. Certa noite, durante uma tempestade terrível, Bilvamaṅgala foi encontrar-se com Cintāmaṇi, mas a prostituta estava pensando: “Com certeza Bilvamaṅgala não virá esta noite. A tempestade está muito forte.” Contudo, Bilvamaṅgala, a despeito de todas as dificuldades, foi vê-la. De alguma maneira, ele conseguiu atravessar o tormentoso rio e, ao se deparar com o portão da casa de Cintāmaṇi fechado, buscou um jeito de pulá-lo. Apesar de todos os perigos, ele chegou à casa de Cintāmaṇi, e a prostituta, muito espantada, disse: “Como é possível que você tenha vindo esta noite? Oh! Como você está apegado a esta pele! Se você tivesse esse mesmo apego por Kṛṣṇa, decerto se beneficiaria muito.” Bilvamaṅgala de imediato deixou a casa da prostituta e foi para Vṛndāvana. A verdade é que, em sua vida anterior, ele executara serviço devocional até o ponto de bhāva-bhakti. E a prostituta Cintāmaṇi tornou-se seu guru. Enquanto estava em Vṛndāvana, Bilvamaṅgala Ṭhākura escreveu um livro chamado Kṛṣṇa-karṇāmṛta, que foi recomendado por Śrī Caitanya Mahāprabhu. Nesse livro, Bilvamaṅgala Ṭhākura escreve: “Se tivermos devoção fixa em Ti, meu Senhor Bhagavān, poderemos ver facilmente Tua forma divina como kaiśora-mūrti, um rapazinho.”

Outro nome de Kṛṣṇa é Kaiśora. A palavra kaiśora se refere à idade antes do casamento, isto é, entre onze e dezesseis anos. Śrī Kṛṣṇa é sempre kaiśora-mūrti. Através do serviço devocional, pode-se ver facilmente a kaiśora-mūrti de Kṛṣṇa.

Enquanto ia para Vṛndāvana, Bilvamaṅgala ainda se sentia atraído por mulheres. Certa noite, ele permaneceu na casa de um comerciante muito rico, e a esposa do mercador disse a seu marido que Bilvamaṅgala Ṭhākura estava atraído por ela. Ela perguntou ao marido o que fazer, e esse disse apenas: “Sirva-o.” Por fim, Bilvamaṅgala Ṭhākura recobrou o juízo e pensou: “Estes olhos são meus inimigos.” Quando a bela mulher se aproximou dele, Bilvamaṅgala Ṭhākura disse: “Mãe, por favor, dê-me os grampos que prendem seus cabelos. Estou louco atrás da beleza feminina. Deixe-me, portanto, arrancar meus olhos.” Dessa maneira, ele ficou cego. Embora não pudesse enxergar, o próprio Kṛṣṇa lhe supria leite em Vṛndāvana. Assim, ele compreendeu Kṛṣṇa através de bhakti e escreveu suas experiências pessoais. Ele escreveu: “Mukti não é algo muito importante. Ela, de mãos postas, está sempre a meu dispor, dizendo: ‘Meu querido mestre, o que posso fazer pelo senhor?’” Logo, o devoto não está muito ansioso por mukti, pois ele já é liberado. Se um homem tem um milhão de dólares, por que deveria ansiar por dez rúpias?

Bhakti deve ser animittā, imotivada. Na realidade, Kṛṣṇa pode satisfazer todos os nossos desejos sem dificuldade, visto que Ele é todo-poderoso e pleno de todas as opulências. Se queremos que Kṛṣṇa nos dê felicidade material, isso decerto não é algo difícil para Ele conceder. Ele também pode nos dar mukti, a liberação, mas é tolice pedir a Kṛṣṇa qualquer coisa com exceção de bhakti. Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura costumava dizer que pedir a Deus mukti ou qualquer outra coisa que não seja bhakti é como ir a um homem rico e pedir cinzas. Há uma história sobre uma senhora idosa que estava carregando um feixe de lenha seca pela floresta. De uma forma ou outra, o feixe, que era muito pesado, caiu no chão. A senhora ficou muito perturbada e pensou: “Quem me ajudará a colocar este fardo de volta em minha cabeça?” Ela, então, começou a chamar por Deus dizendo: “Deus, me ajude!” De repente, Deus apareceu e disse: “O que você deseja?” Ela disse: “Por favor, ajude-me a colocar este fardo de volta sobre minha cabeça.” Essa é a nossa tolice. Quando Deus vem para nos abençoar, o que Lhe pedimos é que nos carregue de novo com todos esses fardos materiais. Pedimos-Lhe mais bens materiais, uma família feliz, uma grande soma em dinheiro, um carro novo ou o que quer que seja.

Caitanya Mahāprabhu nos ensina que só devemos pedir a Deus serviço a Ele, vida após vida. Esse é o verdadeiro significado do mahā-mantra Hare Kṛṣṇa. Ao cantarmos Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare Hare/ Hare Rāma, Hare Rāma, Rāma Rāma, Hare Hare, estamos nos dirigindo a Deus e Sua energia, Harā. Harā é a potência interna de Kṛṣṇa, Śrīmatī Rādhārāṇī ou Lakṣmī. Jaya rādhe! Ela é daivī prakṛti, e os devotos se abrigam em daivī-prakṛti, Śrīmatī Rādhārāṇī. Por isso, os vaiṣṇavas adoram Rādhā-Kṛṣṇa, Lakṣmī-Nārāyaṇa e Sītā-Rāma. No mahā-mantra Hare Kṛṣṇa, primeiro nos dirigimos à energia interna de Kṛṣṇa, Hare. Assim dizemos: “Ó Rādhārāṇī! Ó Hare! Ó energia do Senhor!” Quando chamamos uma pessoa dessa maneira, ela costuma dizer: “Sim, o que você deseja?” A resposta é: “Por favor, ocupe-me em Seu serviço.” Essa deve ser nossa prece. Não devemos dizer: “Ó energia do Senhor, ó Kṛṣṇa, por favor, dê-me dinheiro. Por favor, dê-me uma bela esposa. Por favor, dê-me muitos seguidores. Por favor, dê-me alguma posição prestigiosa. Por favor, dê-me a presidência.” Todos esses desejos são materiais, os quais devemos abandonar. O senhor Buddha pregava que abandonássemos todos os desejos materiais. Não é possível ficar sem desejos, mas é possível abandonar os desejos materiais. Desejar faz parte da natureza da entidade viva; não é possível ficar sem desejos. Se alguém não tem desejos, está morto. Ausência de desejo significa a purificação dos desejos pessoais, e o desejo purifica-se quando desejamos apenas o serviço a Kṛṣṇa. O Senhor Caitanya Mahāprabhu ensina:

O Senhor Caitanya Mahāprabhu ensina:

na dhanaṁ na janaṁ na sundarīṁ
kavitāṁ vā jagad-īśa kāmaye
mama janmani janmanīśvare
bhavatād bhaktir ahaitukī tvayi

“Ó Senhor todo-poderoso, não tenho desejo de acumular riquezas, nem desejo belas mulheres, nem quero ter seguidores. Somente quero prestar-Te serviço devocional imotivado, nascimento após nascimento.” (Śikṣāṣṭaka 4) Ele pede ao Senhor Kṛṣṇa serviço nascimento após nascimento. Não é que Ele esteja em busca de salvação; ao contrário, Ele só deseja servir a Kṛṣṇa, vida após vida. Os devotos não estão ansiosos por fundirem-se na existência do Supremo. A filosofia budista prega o nirvāṇa, a negação de todos os desejos materiais. Buddha não oferece nada mais que isso. Śaṅkarācārya deu um pouco mais, dizendo que devíamos nos livrar dos desejos neste mundo material e depois entrar na refulgência Brahman. Isso se chama brahma-nirvāṇa. Entretanto, de acordo com a filosofia vaiṣṇava, devemos negar os desejos materiais e nos situar na plataforma Brahman, mas, além disso, devemos nos ocupar em serviço devocional ao Senhor. Isso se chama bhakti. Os filósofos māyāvādīs não conseguem compreender esse ponto, mas Kṛṣṇa diz que esse serviço devocional se encontra na plataforma transcendental.

A filosofia sāṅkhya do Kapila ateísta, que é uma filosofia mundana, consiste apenas no estudo dos vinte e quatro elementos. Entretanto, a verdadeira filosofia sāṅkhya, proposta por Kapiladeva, é transcendental aos vinte e quatro elementos e à atividade material. Portanto, nesta filosofia sāṅkhya, que é, na verdade, bhakti-yoga, não existe desejo de benefícios materiais. Na plataforma material, o homem trabalha para seu próprio gozo dos sentidos ou para algum gozo dos sentidos expandido. Ele talvez trabalhe para si mesmo, ou para a família, a esposa, os filhos, a sociedade, a comunidade, a nação ou a humanidade inteira. Isso não passa de gozo dos sentidos expandido. Se alguém rouba para si próprio ou para a família, ou para a comunidade, ele continua sendo um ladrão. Declara-se que quando Alexandre Magno prendeu um ladrão comum, este disse a Alexandre: “Qual a diferença entre nós? Eu sou um pequeno ladrão, e você é um grande ladrão.” Por ser muito sensato, Alexandre o libertou dizendo: “Sim, não há diferença.” Não interessa se o gozo dos sentidos é para si mesmo ou para a família ou para a nação; gozo dos sentidos é sempre gozo dos sentidos. A qualidade só muda quando trabalhamos para o gozo dos sentidos de Kṛṣṇa.

É digno de nota que, na Bhagavad-gītā ou no Śrīmad-Bhāgavatam, jamais se diz que kṛṣṇa uvāca (“Kṛṣṇa disse”) ou kapiladeva uvāca (“Kapiladeva disse”). Em vez disso, afirma-se que bhagavān uvāca (“a Suprema Personalidade de Deus disse”). Isso quer dizer que a versão é perfeita. Se recebermos conhecimento de um homem comum, haverá muitos defeitos. Um homem comum está sujeito à ilusão e, além disso, tem a tendência a enganar. Mesmo que seja um erudito muito avançado, ele não possui conhecimento perfeito. Perfeição é algo totalmente diferente do que encontramos no mundo material. Perfeição significa que não existe erro, nem ilusão, nem enganação, nem imperfeição. Por isso afirma-se que bhagavān uvāca, pois Bhagavān é todo perfeito. Devemos, portanto, receber conhecimento da parte de Bhagavān ou de alguém que fala segundo a versão de Bhagavān.

O movimento da consciência de Kṛṣṇa baseia-se neste princípio. Não estamos apresentando nada inventado. Qualquer coisa que inventemos com certeza terá falhas e deficiências. Qual é o valor de minha filosofia? Qual o valor de meu pensamento? As pessoas costumam dizer: “Na minha opinião”, pensando que a opinião delas quer dizer alguma coisa. Ninguém pensa: “Sou apenas um patife.” Todos valorizam muito suas opiniões pensando que elas são muito importantes. Todos neste mundo material possuem sentidos imperfeitos; logo, qualquer conhecimento obtido através dos sentidos é forçosamente imperfeito. Como ressaltamos repetidas vezes, é necessário receber conhecimento através da sucessão discipular. Deve-se receber conhecimento da parte de Bhagavān, o ser perfeito. Se simplesmente seguimos este sistema, podemos nos tornar gurus do mundo inteiro.

O devoto nunca se considera um grande bhakta. Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī, o autor do Caitanya-caritāmṛta, declarou que purīṣera kīṭa haite muñi se laghiṣṭha: “Sou inferior aos vermes no excremento.” (Ādi 5.205) Essa é a concepção vaiṣṇava. O vaiṣṇava, por natureza, é muito humilde. Ele nunca diz: “Eu sou o Supremo; tornei-me Deus.” Kṛṣṇa diz: “Eu sou Deus. Adorem-Me.” O vaiṣṇava diz: “Kṛṣṇa é Deus. Adorem a Kṛṣṇa.” Não é difícil tornar-se guru, contanto que repitamos o que Kṛṣṇa diz. Tudo o que Kṛṣṇa declara na Bhagavad-gītā é dharma. Dharma é um só. Não pode ser diferente. Dharma significa obedecer às ordens de Deus. Contudo, se não conhecemos Deus nem Suas ordens, só o que fazemos é inventar tolices e lutar entre nós mesmos. Isso não é dharma, mas sim especulação filosófica. Toda essa especulação e dharma inventado foram chutados para fora do Śrīmad-Bhāgavatam, pois tudo isso é enganação. Bhāgavata-dharma não é enganação, pois está relacionado com o Senhor Supremo. Bhakti aplica-se unicamente a Bhagavān, e, se não há Bhagavān, não há bhakti. Se Bhagavān é zero, onde fica bhakti? Bhakti é o relacionamento entre Bhagavān e o bhakta. Bhagavān existe, e os bhaktas também, e os bhaktas dedicam-se a Bhagavān, alimentam a Bhagavān, cantam os nomes de Bhagavān, convidam todos a ouvir sobre Bhagavān, publicam livros sobre Bhagavān e adoram Bhagavān e, dessa maneira, estão sempre absortos em Bhagavān. Assim é o processo de bhakti.

Verso 33

jarayaty āśu yā kośaṁ
nigīrṇam analo yathā

Bhakti, serviço devocional, dissolve o corpo sutil da entidade viva sem esforço separado, assim como o fogo no estômago digere tudo o que comemos.

SIGNIFICADO—Bhakti está em uma posição muito superior a mukti porque o esforço que alguém faz para libertar-se do encarceramento material está automaticamente contido no serviço devocional. Declara-se aqui o exemplo de que o fogo no estômago pode digerir qualquer coisa que comamos. Se a capacidade digestiva é suficiente, qualquer coisa que comermos será digerida pelo fogo no estômago. Analogamente, o devoto não precisa esforçar-se separadamente para alcançar a liberação. O próprio serviço à Suprema Personalidade de Deus é o processo de sua liberação, porque se ocupar a serviço do Senhor é libertar-se do enredamento material. Śrī Bilvamaṅgala Ṭhākura explicou muito bem essa posição, dizendo: “Se tenho devoção inabalável pelos pés de lótus do Senhor Supremo, então mukti, ou a liberação, serve-me como uma criada. Mukti, a criada, está sempre disposta a fazer tudo o que eu lhe peça.”

Para o devoto, a liberação não é um problema de modo algum. A liberação acontece sem esforço separado. Bhakti, portanto, é muito melhor do que mukti, ou a posição impersonalista. Os impersonalistas submetem-se a rigorosas penitências e austeridades para alcançar mukti. O bhakta, porém, simplesmente por se dedicar ao processo de bhaktiespecialmente ao cantar de Hare Kṛṣṇa, Hare Kṛṣṇa, Kṛṣṇa Kṛṣṇa, Hare Hare/ Hare Rāma, Hare Rāma, Rāma Rāma, Hare Hare, desenvolve imediatamente controle sobre a língua, ocupando-a em cantar e aceitar os restos de alimentos oferecidos à Personalidade de Deus. Logo que a língua é controlada, naturalmente todos os outros sentidos são controlados. O controle dos sentidos é a perfeição do princípio do yoga, e nossa liberação começa tão logo nos ocupemos a serviço do Senhor. Kapiladeva confirma que bhakti, ou serviço devocional, é garīyasi, mais glorioso do que siddhi, a liberação.

Neste verso, declara-se que bhakti dissolve o corpo sutil. A alma espiritual possui duas coberturasa sutil e a grosseira. O corpo grosseiro é composto de terra, água, fogo, ar e éter. O corpo sutil é composto de mente, inteligência e ego. Dos oito elementos materiais, cinco são grosseiros e três são sutis. Não podemos ver os elementos sutis, e a alma é ainda mais sutil. Qualquer um que tenha olhos pode ver o corpo, mas nem todos podem perceber a alma, a pessoa verdadeira. Quando entendemos que a alma, ou a pessoa, abandonou o corpo, choramos: “Oh! Meu amigo foi embora.” Podemos perceber que o corpo está lá, mas decerto algo está faltando. Logo, esse amigo é, na realidade, diferente do corpo. No momento presente, quando dizemos: “Este é meu amigo”, nós nos referimos ao corpo, mas isso não passa da visão de um animal. Os animais pensam: “Este é meu amigo cão e esta é minha mãe cadela.” Eles não podem ver além do corpo grosseiro. Do mesmo modo, não podemos ver a alma. E se não podemos ver a alma diminuta, como podemos esperar ver Deus com estes olhos embotados? Na verdade, não podemos ver nem uns aos outros. Como, então, esperamos ver Deus? Declara-se que ataḥ śrī-kṛṣṇa-nāmādi na bhaved grāhyam indriyaiḥ: “Os sentidos materiais não podem apreciar o santo nome, forma, qualidades e passatempos de Kṛṣṇa.”

Nossos sentidos atuais são incapazes de ver a Deus. Em geral, quando alguém morre, podemos compreender que algo foi embora. Podemos compreender que o que estávamos vendo não era de fato o nosso amigo, senão que era apenas um monte de matéria. Isso é conhecimento. Entretanto, aquele que, antes da morte, compreende que o corpo é um mero amontoado de matéria é um homem sábio. Ele vê a alma através dos olhos do conhecimento. Aqueles que se encontram na plataforma grosseira, que são como animais, não conseguem ver nem a alma nem Bhagavān. Os karmīs, trabalhadores fruitivos grosseiros, não compreendem a diferença entre o corpo e a alma. Dentre muitos milhões de karmīs, talvez haja um jñānī, um homem sábio, que entende que não é o corpo. Dentre muitos milhões de jñānīs, talvez um seja realmente liberado. Os māyāvādīs pensam que, como são almas espirituais, eles são unos com o Supremo. Ser igual em qualidade não significa ser a Alma Suprema. Porque pensam que se tornaram unos com Nārāyaṇa, os māyāvādīs chamam uns aos outros de Nārāyaṇa. Eles dizem: “Você é Nārāyaṇa, eu sou Nārāyaṇa, todos são Nārāyaṇa.” Em decorrência dessa falsa concepção, surge a ideia de daridra-nārāyaṇa (Nārāyaṇa pobre). Os devotos cem por cento ocupados no serviço aos pés de lótus do Senhor Supremo não pensam dessa maneira. Eles pensam: “Se sou uno com o Supremo, por que caí nesta posição?” Eles sabem que uma gota de água do oceano é una em qualidade com o vasto oceano, mas também sabem que uma gota de água nunca pode ser igual ao próprio oceano.

Às vezes, os māyāvādīs adoram o Senhor Viṣṇu, mas, na verdade, não acreditam na forma do Senhor Viṣṇu. Eles consideram que Sua imagem é alguma forma imaginária utilizada como um meio para se atingir a autorrealização. Os māyāvādīs dizem que a Verdade Absoluta não possui rūpa, ou forma, mas declara-se que īśvaraḥ paramaḥ kṛṣṇaḥ sac-cid-ānanda-vigrahaḥ: “Kṛṣṇa, que é conhecido como Govinda, é o controlador supremo. Ele tem um corpo eterno, bem-aventurado e espiritual.”

A palavra vigraha refere-se à forma suprema, mas os māyāvādīs não compreendem isso. Há também muitos ditos vaiṣṇavas que adoram o Senhor Viṣṇu com o objetivo de tornarem-se unos com o Supremo. Às vezes, eles dão o exemplo da gota d’água que se funde no oceano. Tudo isso é mera insensatez. O oceano é uma combinação de inumeráveis moléculas de água, e é impossível que uma molécula se funda na totalidade. O brilho do Sol é uma combinação de incontáveis trilhões de pequenas partículas brilhantes, e cada partícula possui sua identidade individual como um átomo. Porque não temos olhos para ver as diminutas divisões atômicas, pensamos que elas são uma coisa só, mas, na verdade, não são homogêneas. De forma semelhante, embora sejamos partículas minúsculas da Suprema Personalidade de Deus, todos nós temos identidades diferentes. Na Bhagavad-gītā (2.12), Śrī Kṛṣṇa diz:

na tv evāhaṁ jātu nāsaṁ
na tvaṁ neme janādhipāḥ
na caiva na bhaviṣyāmaḥ
sarve vayam ataḥ param

“Nunca houve um tempo em que Eu não existisse, nem tu, nem todos esses reis, e, no futuro, nenhum de nós deixará de existir.”

Kṛṣṇa nunca diz que Ele, Arjuna e todos os soldados por fim se tornarão unos. Ao contrário, Ele diz que todos manterão sua individualidade.

Aqueles que têm conhecimento completo nunca pensam que se tornarão unos com o Supremo no futuro. Eles só desejam permanecer em suas posições constitucionais como partes integrantes de Kṛṣṇa. Apesar de estarmos agora cobertos pelo corpo material, este pode ser facilmente dissolvido através do processo de bhakti-yoga. Se estamos fortes em bhakti-yoga, já não temos um corpo material, mas sim um corpo espiritual. Estamos livres.

Quando estamos frustrados, desejamos nos tornar o esposo da deusa Lakṣmī. O esposo da deusa Lakṣmī é Nārāyaṇa, o próprio Deus. Neste mundo material, estamos buscando por Lakṣmī, a deusa da fortuna, mas acabamos frustrados em nossas tentativas. Nós pensamos: “Agora, eu serei o esposo de Lakṣmī.” Na verdade, ninguém pode desfrutar de Lakṣmī, exceto Nārāyaṇa. Até mesmo eminentes semideuses como o senhor Brahmā e o senhor Śiva são inferiores ao Senhor Nārāyaṇa, mas somos tão tolos que pensamos em assumir a posição de Nārāyaṇa, ou transformar Nārāyaṇa em daridra-nārāyaṇa, o mendigo de rua. Os śāstras nunca equiparam Nārāyaṇa com ninguém, nem mesmo com o senhor Brahmā ou o senhor Śiva, e o que se dizer de patifes tolos.

Alguém pode perguntar por que Nārāyaṇa nos criou, por que somos partes integrantes de Nārāyaṇa. Eko bahu-syām. Por que Nārāyaṇa se transformou em muitos? Ele nos criou para Seu desfrute. Ānanda-mayo ’bhyāsāt. Ele nos criou da mesma maneira que um cavalheiro aceita uma esposa. Se alguém aceita uma esposa, ele gerará filhos. Um homem aceita a responsabilidade de manter uma esposa e filhos porque pensa que poderá desfrutar da vida através deles. Neste mundo material, vemos que um homem tenta desfrutar a vida com sua esposa, filhos e amigos. Dessa maneira, ele aceita diversas responsabilidades. Tal atividade deveria ser ānanda, bem-aventurança, mas, porque acontece no mundo material, ānanda converte-se em algo desagradável. Podemos, todavia, desfrutar desse ānanda quando estamos com nosso Pai Supremo, Kṛṣṇa. Todos somos filhos do Pai Supremo, e, na Bhagavad-gītā (14.4), Kṛṣṇa afirma que todas as espécies de vida são Seus filhos:

sarva-yoniṣu kaunteya
mūrtayaḥ sambhavanti yāḥ
tāsāṁ brahma mahad yonir
ahaṁ bīja-pradaḥ pitā

“Ó filho de Kuntī, deve-se compreender que é com o nascimento nesta natureza material que todas as entidades vivas, em todas as espécies de vida, tornam-se possíveis, e que Eu sou o pai que dá a semente.”

O Pai Supremo, Śrī Kṛṣṇa, nos criou para o Seu desfrute, e não para criar aflição. Apesar de sermos filhos de Kṛṣṇa, abandonamos nosso Pai Supremo porque desejamos desfrutar de maneira independente. Por isso estamos sofrendo. Se o filho de um rico abandona sua casa e tenta desfrutar a vida de maneira independente, ele não faz nada além de sofrer. É nosso benefício, portanto, voltarmos ao lar, voltarmos ao Supremo, para desfrutar com nosso pai original, Kṛṣṇa. Isso nos dará felicidade. Kṛṣṇa é pleno de toda opulência. Ele possui riqueza, força, beleza, fama, conhecimento e renúncia em plenitude. Ele possui tudo em quantidade ilimitada. Se retornarmos para nosso pai original, poderemos desfrutar com Ele sem limites. Não é possível desfrutar independentemente de Kṛṣṇa. Tampouco se pode dizer que, para desfrutar, é necessário tornar-se uno com Kṛṣṇa. No mundo material, nosso pai nos proporciona a vida, e somos uma entidade separada dele. Se estamos sofrendo, será que dizemos: “Meu querido pai, estou sofrendo. Por favor, faça-me voltar a ser uno com o senhor”? Será que essa é uma boa proposta? O pai dirá: “Eu gerei você separadamente para que você desfrute. Você permanece separado, e eu permaneço separado, e assim desfrutaremos. Agora você está me pedindo para se tornar uno comigo. Que insensatez é essa?”

Os māyāvādīs desejam tornar-se unos com o Supremo porque estão sofrendo no mundo material. Kṛṣṇa nos criou para que desfrutássemos em Sua companhia, mas, devido a nosso desejo de desfrute independente, não estamos fazendo isso. Por conseguinte, sofremos neste mundo material e, porque sofremos, pensamos em nos tornar unos com nosso pai. É dever de māyā tentar enganar o ser vivo, deixando-o orgulhoso, e a última armadilha de māyā é fazer o ser vivo pensar que pode se tornar uno com Deus. Os māyāvādīs pensam que se tornar uno com o Supremo é a perfeição máxima, mas essa não é a perfeição, porque nossa posição constitucional original é desfrutar a companhia de Kṛṣṇa. Amigos sentam-se juntos em uma sala para desfrutar a companhia uns dos outros. Que desfrute alguém pode ter sozinho? A variedade é a mãe do prazer, e verdadeiro prazer consiste em estar na companhia de Kṛṣṇa. Os devotos, portanto, jamais desejam tornar-se unos com o Supremo. A esse respeito, Caitanya Mahāprabhu diz:

mama janmani janmanīśvare
bhavatād bhaktir ahaitukī tvayi

“Meu querido Senhor, não desejo colocar um fim ao processo de nascimentos e mortes. Tampouco estou ansioso por mukti. Que eu continue nascendo repetidas vezes. Isso não importa. Simplesmente me ocupe em Seu serviço, nascimento após nascimento.” (Śikṣāṣṭaka 4) Esse é o verdadeiro ānanda. Sem sermos devotos completamente qualificados, não podemos entrar nos planetas Vaikuṇṭha. Teremos de ficar de fora, no brahmajyoti. Se desejarmos isso, Kṛṣṇa nos dará essa oportunidade. Afinal, Kṛṣṇa é tudo. Ele é o brahmajyoti e também Paramātmā. Se desejarmos nos tornar unos com o Supremo, teremos a permissão de viver fora dos planetas Vaikuṇṭha, no brahmajyoti. Essa posição, entretanto, não é eterna. Como explicamos antes, não é possível viver eternamente no brahmajyoti porque o ser vivo quer variedade. Sem variedade, não há desfrute.

Em todas as condições, o devoto puro permanece liberado. Ele pode se ocupar em alguma atividade ou negócio, mas está sempre pensando em como servir a Kṛṣṇa e, dessa maneira, ele se libera automaticamente. Não é que ele pense em se tornar uno com o Supremo e obter a liberação. Ao contrário, sua liberação repousa em sua relação pessoal com o próprio Senhor Supremo.

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