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Capítulo 51

A Salvação de Mucukunda

Quando Kṛṣṇa saiu da cidade, Kālayavana, que nunca antes vira Kṛṣṇa, viu-O como sendo extraordinariamente belo, vestido de amarelo. Passando entre sua assembleia de soldados, Kṛṣṇa parecia a Lua no céu passando entre as nuvens reunidas. Kālayavana teve a fortuna de ver as linhas da Śrīvatsa, uma impressão particular no peito de Śrī Kṛṣṇa, e a joia Kaustubha que Ele estava usando. Kālayavana viu-O, porém, em Sua forma de Viṣṇu, com um corpo bem constituído, quatro braços e olhos como as pétalas de um lótus recém-desabrochado. Kṛṣṇa tinha uma aparência bem-aventurada, com uma testa linda e belo rosto, com olhos sorridentes, sobrancelhas inquietas e brincos que balançavam. Antes de ver Kṛṣṇa, Kālayavana ouvira Nārada falar dEle, e, agora, se confirmaram as descrições de Nārada. Kālayavana notou as marcas específicas de Kṛṣṇa e as joias em Seu peito, Sua bela guirlanda de flores de lótus, Seus olhos semelhantes a lótus e características corporais de igual beleza. Ele concluiu que essa bela personalidade devia ser Vāsudeva, pois toda descrição que ele ouvira de Nārada fora comprovada na presença de Kṛṣṇa. Kālayavana ficou atônito ao ver Kṛṣṇa passando por Seu exército sem nenhuma arma na mão e sem quadriga. Ele simplesmente Se locomovia a pé. Kālayavana viera para lutar com Kṛṣṇa, mas ele tinha princípios suficientes para não tomar de nenhuma arma. Decidiu lutar corpo a corpo com Ele. Assim, ele se preparou para capturar Kṛṣṇa e lutar.

Kṛṣṇa, porém, foi adiante sem olhar para Kālayavana. Kālayavana começou a segui-lO, desejando capturá-lO. Mas, apesar de correr com toda a velocidade, ele não conseguia capturar Kṛṣṇa. Kṛṣṇa não pode ser capturado nem pela velocidade da mente alcançada por grandes yogīs. Ele só pode ser capturado pelo serviço devocional, mas Kālayavana não tinha prática no serviço devocional. Ele queria capturar Kṛṣṇa e, como não conseguia fazê-lo, ele O seguia.

Kālayavana começou a correr muito rápido, pensando: “Agora estou mais perto, vou pegá-lO”. Contudo, não conseguia. Kṛṣṇa conduziu-o para longe e entrou na caverna de uma colina. Kālayavana pensou que Kṛṣṇa estava tentando evitar lutar com ele e, por isso, ia Se esconder na caverna. Ele O repreendeu com as seguintes palavras: “Ó Kṛṣṇa, ouvi dizer que Você é um grande herói nascido na dinastia dos Yadus, mas vejo que está correndo da luta como um covarde. Isso não é digno de Seu bom nome nem da tradição de Sua família”. Kālayavana seguia correndo muito rápido, mas, ainda assim, não pôde pegar Kṛṣṇa por não estar livre de todas as contaminações da vida pecaminosa.

Segundo a cultura védica, uma pessoa que não segue os princípios reguladores observados pelas castas superiores, como os brāhmaṇas, kṣatriyas e vaiśyas, e mesmo a classe operária, chama-se mleccha, ou yavana. A situação social védica é planejada de tal forma que pessoas aceitas como śūdras possam ser, aos poucos, elevadas até a posição de brāhmaṇas pelo avanço cultural conhecido como saṁskāra, ou processo purificatório. A versão das escrituras védicas é que ninguém se torna brāhmaṇa ou mleccha pelo simples nascimento; por nascimento, qualquer pessoa é aceita como śūdra. A pessoa deve elevar-se pelo processo purificatório ao nível da vida bramânica. Se não o faz, o sujeito se degrada ainda mais, sendo, então, chamado de mleccha ou yavana. Kālayavana pertencia à classe dos mlecchas ou yavanas. Contaminado por atividades pecaminosas, ele não conseguia aproximar-se de Kṛṣṇa. Os princípios de abstenção seguidos pelos homens das classes mais elevadas, a saber, evitar o gozo sexual ilícito, o consumo de carne, a jogatina e a intoxicação, são partes integrantes da vida dos mlecchas e yavanas. Estando preso por tais atividades pecaminosas, não é possível que alguém avance na compreensão de Deus. O Bhagavad-gītā confirma que somente uma pessoa completamente livre de todas as reações pecaminosas pode ocupar-se no serviço devocional, ou consciência de Kṛṣṇa.

Quando Kṛṣṇa entrou na caverna da colina, Kālayavana o seguiu, castigando-O com muitas palavras duras. Kṛṣṇa, de repente, desapareceu da visão do demônio, mas Kālayavana o seguiu e também entrou na caverna. A primeira coisa que viu foi um homem deitado adormecido na caverna. Kālayavana estava ansioso para lutar com Kṛṣṇa e, quando não pôde ver Kṛṣṇa, mas apenas um homem deitado, pensou que Kṛṣṇa estivesse dormindo dentro da caverna. Kālayavana era muito arrogante e orgulhoso de sua força e achou que Kṛṣṇa estava evitando a luta. Por isso, ele deu um forte chute no homem adormecido, pensando que era Kṛṣṇa. O homem adormecido estivera deitado durante muito tempo. Quando despertou com o chute de Kālayavana, ele abriu imediatamente os olhos e começou a olhar em todas as direções. Por fim, viu Kālayavana de pé ali ao seu lado. Esse homem fora despertado antes da hora e, por isso, estava muito irado, e, quando olhou para Kālayavana em seu estado de ira, raios de fogo emanaram de seus olhos, queimando Kālayavana até este virar cinzas em um momento.

Quando Mahārāja Parīkṣit ouviu este incidente de Kālayavana ser queimado até virar cinzas, ele perguntou sobre o homem adormecido a Śukadeva Gosvāmī: “Quem era ele? Por que estava dormindo ali? Como é que ele conseguira tanto poder para, com seu olhar, reduzir Kālayavana a cinzas em um instante? Como aconteceu de ele estar deitado na caverna da colina?” Ele fez muitas perguntas a Śukadeva Gosvāmī, e Śukadeva respondeu como segue.

“Meu querido rei, essa pessoa nascera na grande família do rei Ikṣvāku, na qual também nasceu o Senhor Rāmacandra, e era filho do grande rei chamado Māndhātā. Ele era também uma grande alma e era popularmente conhecido como Mucukunda. O rei Mucukunda era um seguidor estrito dos princípios védicos da cultura bramânica, e era fiel à sua promessa. Ele era tão poderoso que mesmo semideuses como Indra costumavam pedir-lhe que ajudasse a combater os demônios e, assim, ele lutou muitas vezes contra os demônios para proteger os semideuses”.

O comandante-chefe dos semideuses, conhecido como Kārttikeya, estava satisfeito com a luta de Mucukunda, mas, certa vez, ele pediu que o rei, tendo tido muito trabalho lutando com os demônios, se retirasse da luta e descansasse. O comandante-chefe Kārttikeya disse ao rei Mucukunda: “Meu querido rei, você sacrificou tudo por causa dos semideuses. Você tinha um belo reino que nenhum inimigo perturbava, mas deixou aquele reino, desprezou sua opulência e bens e nunca se preocupou em realizar suas ambições pessoais. Devido à sua longa ausência de seu reino enquanto lutava com os demônios por causa dos semideuses, sua rainha, seus filhos, seus parentes e seus ministros, todos faleceram no tempo devido. O tempo e a maré não esperam por ninguém. Agora, mesmo que você vá para casa, você não encontrará ninguém morando lá. A influência do tempo é muito forte; todos os seus parentes morreram no devido correr do tempo. O tempo é forte e poderoso por ser o representante da Suprema Personalidade de Deus; por isso, ele é mais forte do que os mais fortes. A influência do tempo pode produzir mudanças em coisas sutis sem dificuldade. Ninguém pode deter o processo do tempo. Assim como um domador doma animais de acordo com sua vontade, o tempo também penetra nas coisas de acordo com sua vontade. Ninguém pode suspender o arranjo feito pelo tempo supremo”.

Falando assim com Mucukunda, o semideus rogou-lhe que pedisse qualquer bênção que lhe aprouvesse, exceto a bênção da libertação. Nenhuma entidade viva pode dar a libertação, exceto a Suprema Personalidade de Deus, Viṣṇu. Por isso, outro nome do Senhor Viṣṇu, ou Kṛṣṇa, é Mukunda, “aquele que pode conceder a libertação”.

O rei Mucukunda não dormira durante muitos e muitos anos. Ele estivera ocupado em seu dever de lutar, em decorrência do que estava muito cansado. Então, quando o semideus ofereceu uma bênção, Mucukunda pensou apenas em dormir. Ele respondeu assim: “Meu querido Kārttikeya, melhor dos semideuses, agora quero dormir e quero pedir-lhe a seguinte bênção. Dê-me o poder de reduzir a cinzas, com meu simples olhar, qualquer um que tentar perturbar meu sono e me acordar fora de hora. Por favor, dê-me esta bênção”. O semideus concordou e também lhe deu a bênção de que ele seria capaz de ter um repouso completo. Então, o rei Mucukunda entrou na caverna da montanha.

Pela força da bênção de Kārttikeya, Kālayavana foi queimado até virar cinzas pelo simples fato de Mucukunda lançar seu olhar sobre ele. Quando o incidente terminou, Kṛṣṇa apareceu diante do rei Mucukunda. Kṛṣṇa de fato entrara na caverna para libertar o rei Mucukunda de sua austeridade, mas Kṛṣṇa não apareceu primeiro diante dele. Ele arranjou para que Kālayavana fosse o primeiro a aparecer diante dele. São assim as atividades da Suprema Personalidade de Deus; Ele faz uma atividade de modo a conseguir muitos outros objetivos. Ele queria salvar o rei Mucukunda, que estava dormindo na caverna, e, ao mesmo tempo, queria matar Kālayavana, que havia atacado a cidade de Mathurā. Com essa ação, Ele alcançou todos os objetivos.

Quando o Senhor Kṛṣṇa apareceu diante de Mucukunda, o rei viu-O vestido de amarelo, Seu peito marcado com o símbolo da Śrīvatsa e a joia Kaustubha pendurada em Seu pescoço. Kṛṣṇa apareceu diante dele com quatro mãos, como viṣṇu-mūrti, com uma guirlanda chamada Vaijayantī, que descia de Seu pescoço até o joelho. Ele tinha uma aparência resplandecente, Seu rosto tinha um belo sorriso, e tinha belos brincos com pedras preciosas nas orelhas. Kṛṣṇa tinha uma aparência mais bela do que um ser humano pode conceber. Não apenas Ele apareceu com esse aspecto, mas olhou para Mucukunda com grande esplendor, atraindo a mente do rei. Embora fosse a Suprema Personalidade de Deus, o mais velho de todos, Ele tinha a aparência de um jovem viçoso, e Seus movimentos pareciam os de um veado livre. Parecia extremamente poderoso; Sua influência e Seu vasto poder são tão grandes que cada ser humano deveria ter medo dEle.

Quando o rei Mucukunda viu as características magníficas de Kṛṣṇa, ele ficou curioso sobre quem Kṛṣṇa era e, com grande humildade, perguntou ao Senhor: “Meu querido Senhor, posso perguntar como aconteceu de Você estar dentro desta caverna de montanha? Quem é Você? Posso ver que Seus pés são como macias flores de lótus. Como pôde andar nesta floresta cheia de espinhos e barreiras? Estou simplesmente surpreso de ver isso! Não será Você a Suprema Personalidade de Deus, o mais poderoso dentre os poderosos? Você não é a fonte original de toda iluminação e fogo? Posso considerá-lO um dos grandes semideuses, como o Sol, a Lua ou Indra, o rei do céu? Ou Você é a deidade predominante de algum outro planeta?”

Mucukunda sabia bem que cada sistema planetário superior tem uma deidade predominante. Ele não era ignorante como os homens modernos que acham que este planeta Terra está cheio de entidades vivas e que todos os outros estão vazios. A pergunta de Mucukunda sobre Kṛṣṇa ser a deidade predominante de um planeta que ele desconhecia era muito apropriada. Por ser um devoto puro do Senhor, o rei Mucukunda podia entender imediatamente que o Senhor Kṛṣṇa, que havia aparecido diante dele em um aspecto tão opulento, não podia ser uma das deidades predominantes dos planetas materiais. Ele devia ser a Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa, que tem Suas muitas formas de Viṣṇu. Então, ele achou que Kṛṣṇa era Puruṣottama, o Senhor Viṣṇu. Ele podia ver também que a densa escuridão dentro da caverna da montanha já tinha sido dissipada pela presença do Senhor; portanto, Ele não podia ser senão a Suprema Personalidade de Deus. Ele sabia muito bem que, onde quer que o Senhor estivesse presente em pessoa por meio de Seus transcendentais nome, qualidade, forma, etc., não poderia haver nenhuma escuridão de ignorância. Ele é como uma lâmpada posta nas trevas: ilumina imediatamente o local de escuridão.

O rei Mucukunda estava ansioso para conhecer a identidade do Senhor Kṛṣṇa e, por isso, disse: “Ó melhor dos seres humanos, se Você me acha capaz de conhecer Sua identidade, por favor, diga-me quem é. Qual é Sua ascendência? Qual é Seu dever ocupacional e qual é a tradição de Sua família?” O rei Mucukunda achou prudente, porém, apresentar-se ao Senhor, se não ele não teria nenhum direito de perguntar qual a identidade do Senhor. A etiqueta diz que uma pessoa de menor importância não pode perguntar qual a identidade de uma pessoa de importância superior sem primeiro revelar a própria identidade. Por isso, o rei Mucukunda disse ao Senhor Kṛṣṇa: “Meu querido Senhor, devo informá-lO de minha identidade. Pertenço à famosa dinastia do rei Ikṣvāku, mas, pessoalmente, não sou tão grande como meu antepassado. Meu nome é Mucukunda. O nome de meu pai era Māndhātā, e o nome de meu avô era Yuvanāṣva, o grande rei. Eu estava muito cansado por não descansar durante muitos milhares de anos, e, por causa disso, todos os membros de meu corpo estavam frouxos e quase incapazes de agir. Para reviver minha energia, estava descansando nesta caverna solitária, mas fui despertado por um homem desconhecido, que me forçou a acordar embora eu não quisesse fazê-lo. Por esse ato ofensivo, eu, com meu olhar, queimei essa pessoa até ela virar cinzas. Felizmente, agora posso vê-lO em Suas características grandiosas e belas. Acho, portanto, que Você é a causa de eu ter matado meu inimigo. Meu querido Senhor, devo admitir que, devido à Sua refulgência corporal, insuportável a meus olhos, não posso vê-lO adequadamente. Posso compreender plenamente que a influência de Sua refulgência diminuiu meu poder. Posso entender que Você é muito digno de ser adorado por todas as entidades vivas”.

Vendo o rei Mucukunda ansioso por conhecer Sua identidade, o Senhor Kṛṣṇa, sorrindo, respondeu como segue: “Meu querido rei, é praticamente impossível contar sobre Meu nascimento, aparecimento, desaparecimento e atividades. Talvez você saiba que Minha encarnação Anantadeva tem ilimitadas bocas e, por um tempo ilimitado, Ele tem tentado narrar completamente Meus nome, fama, qualidades, atividades, aparecimento, desaparecimento e encarnações, mas, ainda assim, Ele não consegue terminar. Portanto, não é possível saber quantos nomes e formas Eu possuo. Talvez um cientista material consiga calcular o número de partículas atômicas que compõem este planeta Terra, mas o cientista não pode enumerar Meus ilimitados nomes, formas e atividades. Muitos grandes sábios e pessoas santas tentaram listar Minhas diferentes formas e atividades, mas não conseguiram fazer uma lista completa. Já que você está tão ansioso por saber sobre Mim, entretanto, posso informar-Lhe que agora apareci neste planeta somente para aniquilar os princípios demoníacos das pessoas em geral e restabelecer os princípios religiosos prescritos nos Vedas. Fui convidado com esta finalidade por Brahmā, a deidade superintendente deste universo, e, assim, agora apareci na dinastia dos Yadus como membro de sua família. Nasci especificamente como filho de Vasudeva, na dinastia Yadu, e as pessoas, por isso, Me conhecem como Vāsudeva, filho de Vasudeva. Saiba também que matei Kaṁsa, que, em uma vida anterior, era conhecido como Kālanemi, bem como Pralambāsura e muitos outro demônios. Eles agiram como Meus inimigos, e Eu os matei. O demônio que estava presente diante de você também agiu como Meu inimigo, e você fez o favor de queimá-lo até virar cinzas, olhando para ele. Meu querido rei Mucukunda, você é Meu grande devoto, e apareci nesta caverna apenas para mostrar-lhe Minha misericórdia imotivada. Tenho inclinação muito afetuosa para com Meus devotos, e, em sua vida anterior, antes de seu estado atual, você agiu como Meu grande devoto e orou por Minha misericórdia imotivada. Vim, por isso, para vê-lO e satisfazer seu desejo. Agora, pode ver-Me até satisfazer-se. Agora, Meu querido rei, pode Me pedir qualquer bênção que desejar que estou preparado para satisfazer seu desejo. É Meu princípio eterno que qualquer um que se abrigue em Mim deve ter todos os seus desejos satisfeitos por Minha graça”.

Quando o Senhor Kṛṣṇa ordenou ao rei Mucukunda que Lhe pedisse uma bênção, o rei ficou muito contente e lembrou-se imediatamente da predição que Garga Muni fizera há muito tempo de que, no vigésimo oitavo milênio de Vaivasvata Manu, o Senhor Kṛṣṇa apareceria neste planeta. Logo que se lembrou dessa predição, ele começou a entender que a Pessoa Suprema, Nārāyaṇa, estava presente diante dele como o Senhor Kṛṣṇa. Ele se prostrou imediatamente a Seus pés de lótus e se colocou a orar como segue.

“Meu querido Senhor, ó Suprema Personalidade de Deus, posso entender que todas as entidades vivas neste planeta estão iludidas por Sua energia externa e apaixonadas pela satisfação ilusória do gozo dos sentidos. Estando totalmente ocupadas em atividades ilusórias, elas relutam em adorar os Seus pés de lótus e, por não terem consciência dos benefícios de se renderem a Seus pés de lótus, estão sujeitas a várias condições miseráveis da existência material. Tais pessoas se apegam tolamente à assim chamada sociedade, amizade e amor, que apenas produzem diferentes espécies de miséria. Iludidas por Sua energia externa, todos, homens e mulheres, apegam-se a esta existência material e se põem a enganar uns aos outros em uma grande sociedade de enganadores e enganados. Essas pessoas tolas, sem reconhecerem a boa fortuna de terem obtido esta forma de vida humana, relutam em adorar Seus pés de lótus. Pela influência de Sua energia externa, elas se apegam ao brilho das atividades materiais, as assim chamadas sociedade, amizade e amor, como se fossem animais estúpidos que caíram em um poço escuro”. Dá-se este exemplo do poço escuro porque, nos campos, há muitos poços fora de uso durante anos e escondidos pela relva, e os pobres animais que não sabem deles caem dentro dos mesmos e, se não forem retirados, morrem. Sendo cativados por algumas folhas de relva, os animais caem em um poço escuro e encontram a morte. De modo semelhante, as pessoas tolas que não conhecem a importância da forma de vida humana, desperdiçam-na simplesmente para o gozo dos sentidos e morrem sem nenhum objetivo útil.

“Meu querido Senhor, não sou exceção a esta lei universal da natureza material. Também sou uma pessoa tola que desperdiçou seu tempo em troca de nada. E minha posição é especialmente difícil. Por eu estar na ordem real, eu era mais arrogante que as pessoas comuns. Um homem comum julga-se proprietário de seu corpo ou de sua família, mas eu comecei a pensar dessa maneira em escala maior. Eu queria ser o senhor do mundo inteiro, e, à medida que eu me envaidecia com ideias de autossatisfação, meu conceito de vida corpórea se fortalecia mais e mais. Meu apego a lar, esposa e filhos, ao dinheiro e à supremacia sobre o mundo, tornou-se cada vez mais agudo; de fato, não tinha limites. Então, sempre me apegava aos pensamentos da minha condição material de vida”.

“Portanto, meu querido Senhor, gastei tanto de meu precioso tempo de vida sem nenhum benefício. Enquanto se intensificava minha noção equivocada sobre a vida, comecei a pensar neste corpo material, que não passa de um saco de carne e ossos, como o que existe de mais importante e, em minha vaidade, achei que me tornara o rei da sociedade humana. Nesse conceito errado de vida corpórea, comecei a viajar por todo o mundo, acompanhado por minha força militar – soldados, quadrigários, elefantes e cavalos. Ajudado por muitos comandantes e envaidecido pelo poder, não fui capaz de descobrir Sua Onipotência, que sempre está sentado em meu coração como o amigo mais íntimo. Eu não me importava com Você, e esse é o erro de minha condição material, que diziam ser elevada. Acho que, como eu, todas as entidades vivas se descuidam da compreensão espiritual e estão sempre cheias de ansiedade pensando: ‘O que se deve fazer? E agora, o que acontecerá?’ Porém, como estamos fortemente atados pelos desejos materiais, permanecemos na insanidade”.

“Contudo, apesar de estarmos tão absortos em pensamento material, o tempo inevitável, que não é senão uma de Suas formas, é sempre diligente no cumprimento de seu dever, e, tão logo termina o tempo determinado, Sua Onipotência imediatamente finda todas as atividades de nossos sonhos materiais. Como o fator tempo, Você termina todas as nossas atividades, assim como uma cobra preta e faminta engole um ratinho sem contemplação. Devido à ação do tempo cruel, o corpo real que estava sempre enfeitado com ornatos de ouro durante a vida e que se movia em uma quadriga puxada por belos cavalos ou no dorso de um elefante belamente decorado com enfeites de ouro, e que era anunciado como o rei da sociedade humana – esse mesmo corpo real se decompõe sob a influência do tempo inevitável e se torna apto a ser comido por vermes e insetos ou transformado em cinzas ou excremento de um animal. Esse belo corpo pode ser reconhecido como corpo real enquanto está vivo, mas, depois da morte, mesmo o corpo de um rei é comido por um animal e, então, torna-se excremento, ou é reduzido a cinzas em um crematório ou é posto em um túmulo de terra, onde muitas diferentes espécies de vermes e insetos se produzem a partir dele”.

“Meu querido Senhor, ficamos sob o controle completo desse tempo inevitável não apenas depois da morte, mas também, de forma diferente, enquanto vivemos. Por exemplo, posso ser um rei poderoso e, mesmo assim, quando volto para casa depois de conquistar o mundo, fico sujeito a muitas condições materiais. Quando volto vitorioso, todos os reis subordinados podem vir oferecer seus respeitos, mas, logo que entro na parte interior do palácio, eu mesmo me torno um instrumento nas mãos das rainhas e, para obter gozo dos sentidos, tenho de cair aos pés das mulheres. O modo de vida material é tão problemático que, antes de receber o prazer da vida material, é preciso trabalhar tanto que raramente há oportunidade de desfrutar em paz. E, para alcançar todas as facilidades materiais, é preciso passar por severas austeridades e penitências e ser elevado aos planetas celestes. Ainda que alguém tenha a oportunidade de nascer em uma família muito rica ou real, estará sempre ansioso por manter sua posição atual e se preparar para a próxima vida executando vários sacrifícios e distribuindo caridade. Mesmo na vida real, o indivíduo está cheia de ansiedades, não só por causa da administração política, mas também por causa da elevação aos planetas celestes”.

“Portanto, é muito difícil sair do enredamento material, mas se, de uma forma ou de outra, Você favorece alguém, ele, por Sua misericórdia somente, recebe a oportunidade de se associar com um devoto puro. Esse é o começo da libertação do envolvimento com a vida material condicionada. Meu querido Senhor, apenas pela associação com devotos puros é possível que alguém se aproxime de Você, que é o controlador da existência espiritual e da existência material. Você é a meta suprema de todos os devotos puros, e, pela associação com os devotos puros, a pessoa é capaz de desenvolver seu amor adormecido por Você. Perante isso, o desenvolvimento da consciência de Kṛṣṇa na associação dos devotos puros é a causa da libertação deste enredamento material”.

“Meu querido Senhor, apesar de relutar em me associar com Seus grandes devotos, Você mostra Sua extrema misericórdia comigo como resultado de meu leve contato com um devoto puro como Garga Muni. Só por Sua misericórdia imotivada, perdi todas as minhas opulências materiais, meu reino e minha família. Não creio que poderia me livrar de todos esses enredamentos sem Sua misericórdia imotivada. Reis e imperadores, às vezes, aceitam uma vida de austeridade para esquecer sua vida real, mas, por Sua misericórdia especial e sem causa, já fui privado da realeza. Outros reis esforçam-se para se livrar do apego ao reino e à família aceitando as privações da renúncia, mas, por Sua misericórdia, não preciso tornar-me mendicante ou praticar renúncias”.

“Por isso, meu querido Senhor, suplico que eu apenas me ocupe em prestar serviço transcendental amoroso a Seus pés de lótus. Essa é a ambição dos devotos puros, livres de toda a contaminação material. Você é a Suprema Personalidade de Deus e pode oferecer-me qualquer coisa que eu deseje, inclusive a libertação, mas quem é tão tolo que, depois de satisfazê-lO, pediria algo que causasse mais envolvimento com o mundo material? Não creio que um homem sensato pediria uma bênção dessas a Você. Em razão disso, eu me rendo a Você, porque Você é a Suprema Personalidade de Deus, a Superalma que mora no coração de todos e a refulgência Brahman impessoal. Além disso, Você é também este mundo material, porque este mundo material é apenas a manifestação de Sua energia externa. Por isso, de qualquer abordagem, Você é o abrigo supremo para todos. Quer no plano material, quer no espiritual, todos devem se abrigar a Seus pés de lótus. Eu, devido a isso, me submeto a Você, meu Senhor.”

“Por muitos e muitos nascimentos, tenho sofrido as três misérias desta existência material e, agora, estou cansado delas. Tenho sido impelido apenas por meus sentidos e nunca fiquei satisfeito. Eu, por isso, me abrigo a Seus pés de lótus, que são a fonte de toda a vida serena e que podem erradicar toda a lamentação causada pela contaminação material. Meu querido Senhor, Você é a Superalma de todos e pode compreender tudo. Agora, estou livre de toda a contaminação do desejo material. Não desejo gozar este mundo material, nem quero aproveitar para me fundir em Sua refulgência espiritual, nem desejo meditar em Seu aspecto localizado como Paramātmā, pois sei que, simplesmente me abrigando em Você, ficarei completamente pacífico e imperturbado.”

Ao ouvir esse discurso do rei Mucukunda, o Senhor Kṛṣṇa respondeu: “Meu querido rei, estou muito satisfeito com seu discurso. Você foi o rei de todos os países neste planeta, mas estou surpreso ao descobrir que sua mente agora está livre de toda a contaminação material. Agora, você está apto a prestar serviço devocional. Estou muito contente de ver que, embora Eu tenha lhe oferecido a oportunidade de Me pedir qualquer espécie de bênção, você não se valeu dela para pedir benefícios materiais. Posso entender que sua mente agora está fixa em Mim e não se perturba por nenhum problema material”.

As qualidades materiais são três, a saber, bondade, paixão e ignorância. Quando alguém se coloca nas qualidades materiais mistas da paixão e da ignorância, várias espécies de cobiças e desejos luxuriosos impelem-no a tentar encontrar conforto neste mundo material. Quando na qualidade material da bondade, a pessoa tenta se purificar pela execução de várias penitências e austeridades. Quando alcança a plataforma de um verdadeiro brāhmaṇa, ela aspira a se fundir na existência do Senhor. Quando, no entanto, deseja apenas prestar serviço aos pés de lótus do Senhor, ela é transcendental a todas essas três qualidades. A pessoa puramente consciente de Kṛṣṇa é, portanto, sempre livre de todas as qualidades materiais.

“Meu querido rei”, continuou o Senhor Kṛṣṇa, “Eu Me ofereci para lhe dar qualquer sorte de bênção apenas para testar o quanto você avançou em serviço devocional. Agora posso ver que você está na plataforma dos devotos puros, pois sua mente não se perturba com desejos cobiçosos ou luxuriosos deste mundo material. Os yogīs que tentam se elevar pelo controle dos sentidos e que meditam em Mim pela prática do exercício respiratório do prāṇāyāma não estão tão completamente livres dos desejos materiais. Testemunhou-se em diversos casos que, tão logo há atração, tais yogīs descem novamente para a plataforma material”.

O exemplo vívido que confirma essa afirmação é o exemplo de Viśvāmitra Muni. Viśvāmitra Muni foi um grande yogī praticante de prāṇāyāma, um exercício respiratório, mas, quando foi visitado por Menakā, uma mulher de sociedade do planeta celeste, ele perdeu todo o controle e gerou nela uma filha chamada Śakuntalā. O devoto puro Haridāsa Ṭhākura, em contraste, nunca se perturbou, mesmo quando todas as tentações foram oferecidas por uma prostituta.

“Meu querido rei”, o Senhor Kṛṣṇa continuou, “Eu, portanto, dou-lhe a bênção especial de sempre pensar em Mim. Deste modo, você poderá atravessar livremente este mundo material, sem se contaminar pelas qualidades materiais”. Essa declaração do Senhor confirma que uma pessoa em verdadeira consciência de Kṛṣṇa, ocupada no transcendental serviço amoroso ao Senhor sob a direção do mestre espiritual, nunca se sujeita à contaminação das qualidades materiais.

“Meu querido rei”, o Senhor disse, “porque você é kṣatriya, você cometeu a ofensa de matar animais, tanto caçando como em atividades políticas. Para purificar-se, basta que se ocupe na prática de bhakti-yoga e mantenha sua mente sempre absorta em Mim. Muito em breve, você será libertado de todas as reações a essas atividades sórdidas”. Nesta afirmação, parece que, embora se permita aos kṣatriyas matar animais caçando, eles não estão livres da contaminação dessas reações pecaminosas. Por isso, não importa se alguém é kṣatriya, vaiśya ou brāhmaṇa: recomenda-se a todos que tomem sannyāsa no fim da vida para que se ocupem completamente no serviço ao Senhor e, assim, se libertem de todas as reações pecaminosas de sua vida passada.

O Senhor, então, garantiu ao rei Mucukunda: “Em sua próxima vida, você nascerá como um vaiṣṇava de primeira classe, o melhor dos brāhmaṇas, e, nessa vida, sua única função será ocupar-se a Meu serviço transcendental”. O vaiṣṇava é o brāhmaṇa de primeira classe, porque quem não adquiriu a qualificação de um brāhmaṇa autêntico não pode chegar à plataforma de vaiṣṇava. Quando alguém se torna vaiṣṇava, ele se ocupa completamente em atividades para o bem de todas as entidades vivas. A atividade mais benéfica para todas as entidades vivas é a pregação da consciência de Kṛṣṇa. Aqui se diz que aqueles que são especificamente favorecidos pelo Senhor podem tornar-se absolutamente conscientes de Kṛṣṇa e pregar a filosofia vaiṣṇava.

Neste ponto, encerram-se os significados Bhaktivedanta do capítulo cinquenta e um de Kṛṣṇa, intitulado “A Salvação de Mucukunda”.

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