CAPÍTULO NOVE
O Caráter Exímio de Jaḍa Bharata
Neste capítulo, descreve-se como Bharata Mahārāja obteve um corpo de brāhmaṇa. Nesse corpo, ele permanecia como um tolo surdo e mudo, de modo que, quando foi levado diante da deusa Kālī para ser imolado em sacrifício, nem mesmo protestou, senão que ficou calado. Após ter abandonado o corpo de veado, ele nasceu do ventre da mais jovem esposa de um brāhmaṇa. Nessa vida, ele também pôde lembrar-se das atividades de sua vida passada, e, para evitar as influências da sociedade, agia como se fosse surdo-mudo. Era muito zeloso para evitar uma nova queda. Não se associava com ninguém que não fosse um devoto. Esse processo deve ser adotado por todos os devotos. Como aconselha Śrī Caitanya Mahāprabhu, asat-saṅga-tyāga, — ei vaiṣṇava-ācāra. Devemos evitar estritamente a companhia de não-devotos, mesmo que eles sejam membros familiares. Quando Bharata Mahārāja obteve um corpo de brāhmaṇa, as pessoas circunvizinhas pensavam que se tratava de um louco embotado, mas, em seu íntimo, ele estava sempre cantando sobre Vāsudeva, a Suprema Personalidade de Deus, de quem se lembrava sem interrupção. Embora seu pai lhe quisesse instruí-lo e purificá-lo como um brāhmaṇa, oferecendo-lhe o cordão sagrado, ele comportava-se de tal maneira que deixava seu pai e sua mãe com a ideia de que ele era destituído de racionalidade e não estava interessado no processo reformativo. Contudo, mesmo sem se submeter a essas cerimônias oficiais, ele permanecia em plena consciência de Kṛṣṇa. Devido ao seu silêncio, algumas pessoas, que não passavam de animais, começaram a importuná-lo de diversas maneiras, mas ele tolerava isso. Depois que seu pai e sua mãe morreram, sua madrasta e seus irmãos consanguíneos começaram a tratá-lo muito mal. Muito embora lhe dessem os alimentos mais detestáveis, ele não se importava; permanecia completamente absorto em consciência de Kṛṣṇa. Certa noite, seus irmãos consanguíneos e sua madrasta designaram-no a vigiar o campo de arroz; foi então que o líder de um grupo de salteadores o sequestrou e tentou matá-lo oferecendo-o em sacrifício diante de Bhadra Kālī. Quando os salteadores colocaram Bharata Mahārāja diante da deusa Kālī e levantaram o cutelo para matá-lo, ela imediatamente se alarmou com os maus-tratos infligidos a um devoto. Saindo da deidade, ela agarrou o cutelo com suas próprias mãos e, ali mesmo, matou todos os salteadores. Assim, um devoto puro da Suprema Personalidade de Deus pode permanecer silencioso mesmo quando atormentado pelos não-devotos. Ladrões e salteadores que insultam um devoto recebem a impreterível punição que lhes é reservada por intermédio dos arranjos da Suprema Personalidade de Deus.
VERSOS 1-2: Śrīla Śukadeva Gosvāmī continuou: Meu querido rei, após abandonar o corpo de veado, Bharata Mahārāja nasceu em uma família brāhmaṇa muito pura. Havia um brāhmaṇa pertencente à dinastia de Aṅgirā. Ele possuía as qualificações bramânicas em plenitude. Ele podia controlar sua mente e sentidos, e havia estudado os textos védicos e a literatura subsidiária. Ele era muito hábil em dar caridades e era sempre satisfeito, tolerante, muito cortês, erudito e livre de inveja. Era autorrealizado e estava ocupado no serviço devocional ao Senhor. Sempre permanecia em transe. Teve, com sua primeira esposa, nove filhos igualmente qualificados, e, com sua segunda esposa, ele gerou gêmeos – um filho e uma filha, sendo que o menino era tido como o mais elevado e principal devoto dentre os reis santos – Bharata Mahārāja. Esta, portanto, é a história do seu nascimento depois que ele abandonou o corpo de veado.
VERSO 3: Por ter recebido a misericórdia especial do Senhor, Bharata Mahārāja podia lembrar-se dos incidentes de sua vida passada. Embora tivesse recebido um corpo de brāhmaṇa, ficava muito temeroso em relação a seus parentes e amigos que não eram devotos. Ele sempre se mantinha muito precavido contra essa associação, pois temia recair. Em consequência disso, ele se manifestava diante dos olhares públicos como um louco – estúpido, cego e surdo – para que os outros não tentassem falar com ele. Dessa maneira, ele se livrava das más companhias. Em seu íntimo, estava sempre pensando nos pés de lótus do Senhor e cantando as glórias do Senhor, que nos liberta do cativeiro da ação fruitiva. Assim, ele se salvada das investidas da associação com não-devotos.
VERSO 4: A mente do pai brāhmaṇa estava sempre repleta de afeição por seu filho, Jaḍa Bharata [Bharata Mahārāja]. Portanto, ele estava sempre apegado a Jaḍa Bharata. Como não conseguia entrar no gṛhastha-āśrama, Jaḍa Bharata simplesmente executou o processo purificatório até o final do brahmacarya-āśrama. Embora Jaḍa Bharata não quisesse aceitar as instruções de seu pai, o brāhmaṇa o instruía sobre como manter-se limpo e como lavar-se, julgando pertinente que ao pai cabe ensinar o filho.
VERSO 5: Apesar de seu pai lhe dar as devidas instruções quanto ao conhecimento védico, Jaḍa Bharata comportava-se diante dele como se fosse um tolo. Ele procedia dessa maneira para que seu pai entendesse que ele não tinha condições de receber instruções e, assim, abandonasse os esforços de continuar educando-o. Ele sempre se comportava de maneira completamente rebelde. Sendo instruído a lavar suas mãos após defecar, ele as lavava antes. Entretanto, durante a primavera e o verão, seu pai queria partilhar instruções védicas com ele. Tentava ensinar-lhe o mantra Gāyatrī juntamente com o oṁkāra e o vyāhṛti, porém, depois de quatro meses, seu pai ainda não havia conseguido instruir Jaḍa Bharata.
VERSO 6: O brāhmaṇa que era pai de Jaḍa Bharata considerava seu filho como sua vida e alma, de maneira que estava muito apegado a ele. Julgava sábio educar seu filho apropriadamente e, estando absorto nessa tarefa malograda, tentava ensinar a seu filho as regras e regulações de brahmacarya – incluindo a execução dos votos védicos, limpeza, estudo dos Vedas, os métodos reguladores, serviço ao mestre espiritual e o processo de oferecer sacrifícios de fogo. Empenhou-se ao máximo por ensinar tudo isso a seu filho, mas todos os seus esforços falharam. Dentro de seu coração, alimentava a esperança de que seu filho seria um estudioso erudito, mas todas as suas tentativas foram malsucedidas. Como todos, esse brāhmaṇa estava apegado ao seu lar, e havia se esquecido de que um dia morreria. A morte, contudo, não se esqueceu dele e, no momento adequado, ela apareceu e o levou.
VERSO 7: Em seguida, a mais jovem esposa do brāhmaṇa, após confiar seus filhos gêmeos – o menino e a menina – à esposa mais velha, partiu rumo a Patiloka, morrendo voluntariamente com seu esposo.
VERSO 8: Após a morte do pai, os nove irmãos consanguíneos de Jaḍa Bharata, que o consideravam estúpido e descerebrado, abandonaram a tentativa do pai de dar-lhe uma educação completa. Os irmãos consanguíneos de Jaḍa Bharata eram eruditos nos três Vedas – o Ṛg Veda, o Sāma Veda e o Yajur Veda –, os quais estimulam muito fortemente a realização de atividades fruitivas. Com efeito, os nove irmãos não eram espiritualmente esclarecidos em serviço devocional ao Senhor. Diante disso, não podiam entender a elevadíssima posição de Jaḍa Bharata.
VERSOS 9-10: Com efeito, homens degradados não são melhores do que animais. A única diferença é que os animais são quadrúpedes e esses homens são bípedes. Esses animalescos homens bípedes costumavam chamar Jaḍa Bharata de louco, estúpido, surdo e mudo. Eles o maltratavam, e Jaḍa Bharata comportava-se diante deles como um louco, surdo, cego e estúpido. Ele não protestava nem tentava convencê-los de que ele não era nada disso. Se outros queriam vê-lo fazer algo, ele agia de acordo com esses desejos. Toda a comida que obtinha esmolando ou como pagamento, ou qualquer alimento advindo sem nenhum esforço de sua parte – fosse em pequena quantidade, saboroso, rançoso ou insípido –, ele o aceitava e comia. Ele jamais comia algo para satisfazer os sentidos, pois já estava liberado do conceito corpóreo, que nos induz a discriminar entre alimentos saborosos e insípidos. Estava em plena consciência transcendental do serviço devocional e, portanto, não se deixava influenciar pelas dualidades provenientes do conceito corpóreo. Na verdade, seu corpo era tão forte como o de um touro, e seus membros, muito musculosos. Não se importava em saber se era inverno ou verão, se ventava ou chovia, e jamais se agasalhava. Deitava-se no chão e nunca passava óleo em seu corpo nem se banhava. Porque seu corpo era sujo, sua refulgência e conhecimento espirituais mantinham-se ocultos, assim como a poeira encobre o esplendor de uma pedra preciosa. Ele usava apenas uma tanga suja e seu cordão sagrado, que era enegrecido. Compreendendo que ele nascera em uma família brāhmaṇa, as pessoas costumavam chamá-lo de brahma-bandhu e outros nomes. Sendo assim insultado e desprezado pelas pessoas materialistas, ele vagava de um lugar a outro.
VERSO 11: Jaḍa Bharata costumava trabalhar apenas a troco de comida. Seus irmãos consanguíneos aproveitavam-se disso e, em troca de algum alimento, ocupavam-no em trabalhos agrícolas, mas, na verdade, ele não tinha nenhum conhecimento de como fazer um bom trabalho no campo. Ele não sabia onde despejar a terra ou onde deixar o solo nivelado ou irregular. Seus irmãos costumavam lhe dar arroz quebrado, ração de gado, casca de arroz, cereais carunchosos e grãos queimados que estavam grudados na panela, mas ele alegremente aceitava tudo isso como se fosse néctar. Não resmungava e, muito satisfeito, comia tudo isso.
VERSO 12: Foi então que, desejando obter um filho, um líder de salteadores, que nasceu em família śūdra, desejou adorar a deusa Bhadra Kālī, oferecendo-lhe, em sacrifício, um homem obtuso, que não se estima como melhor do que um animal.
VERSO 13: Para o sacrifício, o líder dos salteadores capturou um homem animalesco, mas esse escapou, e o líder mandou seus seguidores encontrá-lo. Eles percorreram diferentes direções, mas não conseguiram achá-lo. Andando de um lado a outro no meio da noite, cobertos por densa escuridão, chegaram a um campo de arroz onde viram o nobre filho da família Āṅgirā [Jaḍa Bharata], que estava sentado em um lugar alto vigiando o campo contra os ataques de veados e javalis.
VERSO 14: Os seguidores e servos do chefe dos salteadores consideraram Jaḍa Bharata possuidor de qualidades que se encaixavam muito bem em um homem-animal, e decidiram que ele era uma escolha perfeita para o sacrifício. Com seus rostos radiantes de felicidade, pegaram das cordas, amarraram-no e levaram-no ao templo da deusa Kālī.
VERSO 15: Depois disso, todos os ladrões, de acordo com seus rituais imaginativos de que se valiam para matar homens animalescos, banharam Jaḍa Bharata, vestiram-no com roupas novas, decoraram-no com adornos apropriados para um animal, untaram seu corpo com essências aromáticas e decoraram-no com tilaka, polpa de sândalo e guirlandas. Eles o alimentaram suntuosamente e, então, colocaram-no diante da deusa Kālī, a quem ofereceram incenso, lamparinas, guirlandas, cereais tostados, ramos tenros, brotos, frutas e flores. Dessa maneira, antes de matar o homem-animal, eles adoraram a deidade, e entoaram canções e orações, tocando tambores e cornetas. Então, fizeram Jaḍa Bharata sentar-se diante da deidade.
VERSO 16: Naquele instante, um dos ladrões, agindo como sacerdote principal, preparava-se para oferecer o sangue de Jaḍa Bharata, que eles imaginavam ser um homem animal, para que a deusa Kālī o consumisse como uma bebida alcóolica. Portanto, pegou de uma espada assustadora e afiadíssima e, consagrando-a com o mantra de Bhadra Kālī, ergueu-a para matar Jaḍa Bharata.
VERSO 17: Todos os ladrões e assaltantes que se prepararam para adorar a deusa Kālī tinham uma mentalidade rasteira e estavam atados aos modos da paixão e da ignorância. Dominava-os o desejo de tornarem-se ricos; portanto, tiveram a audácia de desobedecer aos preceitos dos Vedas, a ponto de organizarem-se para matar Jaḍa Bharata, uma alma autorrealizada nascida em família brāhmaṇa. Devido à sua inveja, esses assaltantes levaram Jaḍa Bharata para ser sacrificado diante da deusa Kālī. Semelhantes pessoas vivem entregues a atividades invejosas e, portanto, ousaram tentar matar Jaḍa Bharata. Jaḍa Bharata era o melhor amigo de todas as entidades vivas. Ele não era inimigo de ninguém, e estava sempre absorto em meditar na Suprema Personalidade de Deus. Ele nascera de um bom pai brāhmaṇa, e matá-lo era proibido, mesmo que ele fosse um inimigo ou uma pessoa perigosa. Em todo caso, não havia razão alguma para se matar Jaḍa Bharata, e a deusa Kālī não podia tolerar isso. Ela percebeu de imediato que esses assaltantes pecaminosos estavam prestes a matar um grande devoto do Senhor. Subitamente, o corpo da deidade se rompeu em dois, e a deusa Kālī emergiu pessoalmente em um corpo incandescente e que apresentava uma intensa e ofuscante refulgência.
VERSO 18: Não conseguindo tolerar as ofensas cometidas, a enfurecida deusa Kālī lançou chamas pelos olhos e exibiu seus ferozes dentes curvos. Seus olhos vermelhos brilhavam, e ela apresentou suas feições amedrontadoras. Ela assumiu um corpo assustador, como se estivesse pronta para destruir toda a criação. Pulando violentamente do altar, ela decapitou de imediato todos os ladrões e canalhas com a mesma espada com que eles haviam intencionado matar Jaḍa Bharata. Então, ela começou a beber o sangue quente que escorria do pescoço dos ladrões e patifes decapitados, como se esse sangue fosse uma bebida alcóolica. Na verdade, ela bebia esse líquido embriagador com suas associadas, que eram bruxas e demônias. Intoxicadas com o sangue, todas elas passaram a cantar bem alto e a dançar como se estivessem preparadas para aniquilar todo o universo. Ao mesmo tempo, elas começaram a divertir-se com as cabeças dos ladrões e assaltantes, jogando-as como se fossem bolas.
VERSO 19: Quando um invejoso comete uma ofensa perante uma grande personalidade, ele é sempre punido da maneira mencionada acima.
VERSO 20: Então, Śukadeva Gosvāmī disse a Mahārāja Parīkṣit: Ó Viṣṇudatta, aqueles que já sabem que a alma é distinta do corpo, que cortaram o nó invencível do coração, que sempre se ocupam em atividades de bem-estar para todas as entidades vivas e que nem mesmo pensam em fazer mal a alguém recebem contínua proteção da Suprema Personalidade de Deus, que carrega Seu disco [o cakra Sudarśana] e age como o tempo supremo para matar os demônios e proteger Seus devotos. Os devotos sempre se refugiam aos pés de lótus do Senhor. Portanto, em qualquer situação, mesmo quando ameaçados de serem decapitados, eles permanecem imperturbáveis. Para eles, não há espanto algum nisso.