VERSO 26
kvāhaṁ rajaḥ-prabhava īśa tamo ’dhike ’smin
jātaḥ suretara-kule kva tavānukampā
na brahmaṇo na tu bhavasya na vai ramāyā
yan me ’rpitaḥ śirasi padma-karaḥ prasādaḥ
kva — onde; aham — eu (estou); rajaḥ-prabhavaḥ — tendo nascido em um corpo cheio de paixão; īśa — ó meu Senhor; tamaḥ — o modo da ignorância; adhike — excedendo em; asmin — neste; jātaḥ — nascido; sura-itara-kule — em família de ateístas ou demônios (que são subordinados aos devotos); kva — onde; tava — Vossa; anukampā — misericórdia imotivada; na — não; brahmaṇaḥ — do senhor Brahmā; na — não; tu — mas; bhavasya — do senhor Śiva; na — nem; vai — mesmo; ramāyāḥ — da deusa da fortuna; yat — que; me — minha; arpitaḥ — oferecidas; śirasi — sobre a cabeça; padma-karaḥ — mãos de lótus; prasādaḥ — o símbolo da misericórdia.
Ó meu Senhor, ó Supremo, porque nasci em família cheia de qualidades materiais e infernais manifestas através da paixão e da ignorância, qual a minha posição? E o que dizer de Vossa imotivada misericórdia, que jamais foi oferecida nem mesmo ao senhor Brahmā, ao senhor Śiva ou à deusa da fortuna, Lakṣmī? Embora nunca tenhais colocado Vossas mãos de lótus sobre suas cabeças, puseste-la sobre a minha.
SIGNIFICADO—Prahlāda Mahārāja estava surpreso com a imotivada misericórdia do Senhor Supremo, a Personalidade de Deus, pois, embora Prahlāda tivesse nascido em família demoníaca e embora o Senhor jamais tivesse posto Sua mão de lótus sobre a cabeça de Brahmā, Śiva ou da deusa da fortuna, Sua companheira constante, o Senhor Nṛsiṁhadeva bondosamente colocou Sua mão sobre a cabeça de Prahlāda. Este é o significado da misericórdia imotivada. A imotivada misericórdia da Suprema Personalidade de Deus pode ser outorgada a qualquer pessoa, não importando qual seja a sua posição neste mundo material. Todos podem reunir condições de adorar o Senhor Supremo, qualquer que seja sua posição material. Confirma isso a Bhagavad-gītā (14.26):
māṁ ca yo ’vyabhicāreṇa
bhakti yogena sevate
sa guṇān samatītyaitān
brahma-bhūyāya kalpate
“Aquele que se ocupa em serviço devocional pleno e não falha em circunstância alguma, transcende de imediato os modos da natureza material e chega, então, ao nível de Brahman.” Todo aquele que se ocupa no contínuo serviço devocional ao Senhor está situado no mundo espiritual e nada tem a ver com as qualidades materiais (sattva-guṇa, rajo-guṇa e tamo-guṇa).
Como estava situado na plataforma espiritual, Prahlāda Mahārāja nada tinha a ver com o seu corpo, que nascera dos modos da paixão e da ignorância. As características da paixão e da ignorância são especificadas no Śrīmad-Bhāgavatam (1.2.19) como luxúria e anseio (tadā rajas tamo-bhāvāḥ kāma-lobhādayaś ca ye). Prahlāda Mahārāja, sendo um grande devoto, julgava que o corpo que recebera de seu pai nascera da paixão e da ignorância, mas, como Prahlāda estava inteiramente ocupado a serviço do Senhor, seu corpo não pertencia ao mundo material. Mesmo nesta vida, o corpo do vaiṣṇava puro já é espiritualizado. Por exemplo, posto em contato com o fogo, o ferro se torna incandescente e, deixando de ser ferro, passa a ser fogo. Igualmente, os aparentes corpos materiais dos devotos que se ocupam em pleno serviço devocional ao Senhor, estando constantemente no fogo da vida espiritual, nada têm a ver com a matéria, senão que são espiritualizados.
Śrīla Madhvācārya enfatiza que a deusa da fortuna, a mãe do universo, não pôde obter misericórdia semelhante àquela oferecida a Prahlāda Mahārāja, pois, embora a deusa da fortuna seja a companheira inseparável do Senhor Supremo, o Senhor é mais propenso aos Seus devotos. Em outras palavras, o serviço devocional é tão imponente que, mesmo quando oferecido por pessoas nascidas de famílias inferiores, o Senhor o aceita como sendo mais valioso do que o serviço prestado pela deusa da fortuna. O senhor Brahmā, o rei Indra e os outros semideuses, que vivem nos sistemas planetários superiores, estão situados em um espírito de consciência diferente, de modo que, às vezes, são afligidos pelos demônios, mas o devoto, mesmo que esteja situado nos planetas inferiores, goza da vida em consciência de Kṛṣṇa em quaisquer circunstâncias. Parataḥ svataḥ karmataḥ: à medida que ele age, à medida que é instruído pelos outros ou à medida que executa suas atividades materiais, ele goza da vida sob todos os aspectos. Com relação a isso, Madhvācārya cita os seguintes versos, que são mencionados no Brahma-tarka.
śrī-brahma-brāhmīvīndrādi-
tri-katat strī-puru-ṣṭutāḥ
tad anye ca kramādeva
sadā muktau smṛtāv api
hari-bhaktau ca taj-jñāne
sukhe ca niyamena tu
parataḥ svataḥ karmato vā
na kathañcit tad anyathā