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Capítulo 6

Devahūti Deseja Conhecimento Transcendental

Verso 7

devahūtir uvāca
nirviṇṇā nitarāṁ bhūmann
asad-indriya-tarṣaṇāt
yena sambhāvyamānena
prapannāndhaṁ tamaḥ prabho

Devahūti disse: Estou muito cansada da perturbação causada por meus sentidos materiais, pois, em virtude desta perturbação sensorial, meu Senhor, caí no abismo da ignorância.

SIGNIFICADO—Aqui, no início das indagações de Devahūti, a expressão asad-indriya-tarṣaṇāt é significativa. Asat significa “impermanente”, “temporário”; indriya significa “sentidos”, e tarṣaṇāt quer dizer “agitação”. Assim, asad-indriya-tarṣaṇāt significa “por ser agitada pelos sentidos temporiamente manifestos do corpo material”. Evoluímos através de diferentes status de existência corpórea materialàs vezes em corpo humano, às vezes em corpo animal, em razão do que as ocupações de nossos sentidos materiais também mudam. Qualquer coisa que se altere chama-se temporária, ou asat. Devemos saber que, além desses sentidos temporários, temos sentidos permanentes, que agora estão cobertos pelo corpo material. Os sentidos permanentes, ao serem contaminados pela matéria, não agem apropriadamente. O serviço devocional, portanto, implica em libertar os sentidos dessa contaminação. Quando se elimina a contaminação por completo e os sentidos agem na pureza da consciência de Kṛṣṇa impoluta, chega-se ao ponto de sad-indriya, ou atividades sensórias eternas. As atividades sensórias eternas se chamam serviço devocional, ao passo que as atividades sensórias temporárias se chamam gozo dos sentidos. A menos que nos cansemos do gozo material dos sentidos, não teremos oportunidade de ouvir as mensagens transcendentais de uma pessoa como Kapila Muni. Devahūti confessou que estava cansada. Agora que seu esposo havia deixado o lar, ela queria aliviar-se ouvindo as instruções do Senhor Kapila.

Os textos védicos descrevem este mundo material como escuridão. Na verdade, ele é escuro, e, assim sendo, necessitamos de luz do Sol, luar e eletricidade. Se não fosse escuro por natureza, por que precisaríamos de tantos arranjos para obter luz artificial? Os Vedas prescrevem que não devemos permanecer na escuridão: tamasi mā jyotir gamaya. Eles instruem que devemos ir para a luz, e essa luz é o mundo espiritual, que é iluminado diretamente pela refulgência, ou raios corpóreos, de Kṛṣṇa. Como se declara na Brahma-saṁhitā (5.40):

yasya prabhā prabhavato jagad-aṇḍa-koṭi-
koṭiṣv aśeṣa-vasudhādi-vibhūti-bhinnam
tad brahma niṣkalam anantam aśeṣa-bhūtaṁ
govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi

“Adoro Govinda, o Senhor primordial, que é dotado de grande poder. A refulgência brilhante de Sua forma transcendental é o Brahman impessoal, que é absoluto, completo e ilimitado e que manifesta as variedades de planetas ilimitados, com suas diferentes opulências, em milhões e milhões de universos.”

Os animais não são capazes de saber que estão em escuridão, mas os seres humanos conseguem entender isso. Assim como Devahūti, alguém que é inteligente deve ficar desgostoso com a escuridão da ignorância. Na hanyate hanyamāne śarīre. Como afirma a Bhagavad-gītā (2.20), não há nascimento nem morte para a alma. A alma não é destruída com a aniquilação do corpo. A alma veste e troca de corpos como se fossem roupas. Esse conhecimento simples é ensinado no começo da Bhagavad-gītā, apesar do que há muitos eruditos e líderes que não conseguem compreender que o corpo é diferente da pessoa. Isso porque não estudam a Bhagavad-gītā de forma apropriada. Por conseguinte, ninguém está cem por cento consciente ou convencido de que a pessoa verdadeira não é o corpo. Isso se chama escuridão, e quando se está desgostoso com essa escuridão é que começa a vida humana.

Quem se desgostou com a existência material necessita das instruções de um guru. Tasmād guruṁ prapadyeta jijñāsuḥ śreya uttamam. Por ser a esposa de um grande yogī, Devahūti compreendeu sua posição constitucional; devido a isso, ela está apresentando o problema a seu filho, Kapiladeva, uma encarnação de Deus. Apesar de Kapiladeva ser seu filho, Devahūti não hesita em aceitar instruções dEle. Ela não diz: “Oh! Ele é meu filho. O que Ele pode me dizer? Sou sua mãe e devo instruí-lO.” Devem-se aceitar instruções de alguém que possui conhecimento. Não interessa em que posição ele se encontre, seja um filho, um menino, um śūdra, um brāhmaṇa, um sannyāsī ou um gṛhastha. Deve-se simplesmente aprender com quem saiba. Essa é a instrução de Caitanya Mahāprabhu. Embora fosse um brāhmaṇa e um sannyāsī, o próprio Caitanya Mahāprabhu aceitou instruções de Rāmānanda Rāya, que era śūdra e gṛhastha, mas tinha muita elevação espiritual. Ao ver que Rāmānanda Rāya hesitava em Lhe dar instruções, Caitanya Mahāprabhu disse: “Por que você está hesitante? Embora você seja um gṛhastha e tenha nascido em família śūdra, estou disposto a aprender com você.”

kibā viprā, kibā nyāsī, śūdra kene naya
yei kṛṣṇa-tattva-vettā, sei ‘guru’ haya

(Caitanya-caritāmṛta, Madhya 8.128)

Este é o ensinamento de Caitanya Mahāprabhu. Qualquer um que se qualifique na consciência de Kṛṣṇa pode se tornar um guru. Sua família ou identidade material não interessa. Ele só tem de conhecer a ciência. Quando consultamos um engenheiro, um médico ou um advogado, não perguntamos se ele é brāhmaṇa ou śūdra. Se é qualificado, ele pode lhe ajudar no assunto em particular. Da mesma forma, se alguém conhece a ciência de Kṛṣṇa, ele pode ser guru. Devahūti está recebendo instruções de seu filho porque Ele conhece a ciência de Kṛṣṇa. Mesmo que encontremos ouro em um lugar imundo, devemos pegá-lo. Também se declara nos Vedas que, se uma moça é altamente qualificada ou bela, ela pode ser aceita em casamento muito embora tenha nascido em família de classe baixa. Logo, não é o nascimento que é importante, mas a qualificação. Caitanya Mahāprabhu queria que todos na Índia conhecessem e pregassem a ciência de Kṛṣṇa. Isso é muito simples. Temos apenas de repetir o que Kṛṣṇa disse ou o que foi dito sobre Kṛṣṇa nas escrituras védicas.

A sociedade humana não pode ser feliz sem a consciência de Kṛṣṇa. Kṛṣṇa é o desfrutador supremo, e nós somos Seus servos. O mestre desfruta e os servos ajudam o mestre a desfrutar. Nós, entidades vivas, somos eternos servos de Deus, e nosso dever é ajudar nosso mestre a desfrutar. Śrīmatī Rādhārāṇī é a principal serva de Kṛṣṇa, e Seu interesse é sempre manter Kṛṣṇa satisfeito. Kṛṣṇa gosta muito de Rādhārāṇī porque Ela presta o melhor serviço. As sessenta e quatro qualificações dEla são mencionadas nos textos védicos. No mundo material, infelizmente, estamos ocupados tentando dar prazer a nossos sentidos. Como afirma a Bhagavad-gītā (3.42):

indriyāṇi parāṇy āhur
indriyebhyaḥ paraṁ manaḥ
manasas tu parā buddhir
yo buddheḥ paratas tu saḥ

“Os sentidos funcionais são superiores à matéria bruta, a mente é superior aos sentidos, por sua vez a inteligência é mais elevada do que a mente, e ela [a alma] é superior à inteligência”. A alma está na plataforma espiritual. Na plataforma material, estamos interessados em gozar os sentidos. Dessa maneira, nós nos enredamos nas leis da natureza. Como se declara nos śāstras:

nūnaṁ pramattaḥ kurute vikarma
yad indriya-prītaya āpṛṇoti
na sādhu manye yata ātmano ’yam
asann api kleśada āsa dehaḥ

“Ao considerar que o gozo dos sentidos é a meta da vida, ela certamente enlouquece na busca por uma vida materialista e ocupa-se em toda espécie de atividades pecaminosas. Ela não sabe que, devido a seus erros passados, já recebeu um corpo que, embora temporário, é a causa de seu sofrimento. Na verdade, a entidade viva não precisaria receber nenhum corpo material, mas, para poder satisfazer seus sentidos, ela ganhou um corpo material. Portanto, acho que não é digno de um homem inteligente envolver-se de novo em atividades de gozo dos sentidos devido às quais continuará perpetuamente recebendo corpos materiais, um após o outro.” (Śrīmad-Bhāgavatam 5.5.4)

As entidades vivas neste mundo material estão muito ocupadas tentando satisfazer os sentidos. Na rua, vemos muitos cães reunidos em busca de gozo sexual. Isso pode parecer muito grosseiro, mas os seres humanos estão ocupados na mesma atividade, talvez de maneira mais refinada. Devemos saber que o gozo dos sentidos se destina aos animais e que o controle dos sentidos é para os seres humanos. Através de tapasya, penitência, podemos nos purificar e recobrar nossa vida eterna.

Na verdade, nossos sentidos materiais não são nossos sentidos verdadeiros. Eles estão cobertos, assim como o corpo está coberto por roupas. Nosso corpo verdadeiro está dentro do corpo material. Dehino ’smin yathā dehe. O corpo espiritual está dentro do corpo material. O corpo material está mudando, passando através da infância, juventude, velhice e, depois, o desaparecimento. Embora este não seja nosso corpo verdadeiro, entregamo-nos ao gozo dos sentidos com ele. Entretanto, para lograrmos nossa própria felicidade máxima, devemos tentar purificar os sentidos. Não é questão de destruir os sentidos ou livrar-se de todos os desejos. Desejo é uma atividade material, e livrar-se de todos os desejos não é possível. Os sentidos devem ser purificados para que possamos agir transcendentalmente através deles. Bhakti-yoga não requer que destruamos os sentidos, mas que os purifiquemos. Quando os sentidos se purificam, podemos servir a Kṛṣṇa:

sarvopādhi-vinirmuktaṁ
tat-paratvena nirmalam
hṛṣīkeṇa hṛṣīkeśa-
sevanaṁ bhaktir ucyate

Bhakti, ou serviço devocional, significa ocupar todos os sentidos no serviço ao Senhor, a Suprema Personalidade de Deus, o mestre de todos os sentidos. Quando a alma espiritual presta serviço ao Supremo, ocorrem dois resultados secundários. Ela se livra de todas as designações materiais, e, pelo simples fato de estarem ocupados no serviço ao Senhor, seus sentidos se purificam.” (Nārada-pañcarātra)

Podemos servir a Hṛṣīkeśa, o mestre dos sentidos, através dos sentidos. Somos partes integrantes de Kṛṣṇa, assim como a mão é parte integrante do corpo. Do mesmo modo, nossos sentidos também são partes integrantes do corpo espiritual de Kṛṣṇa. Ao purificarmos os sentidos, podemos agir em nossa posição constitucional original e servir a Kṛṣṇa. Quando esquecemos nossa posição e tentamos nos satisfazer, tornamo-nos condicionados materialmente. Quando esquecemos que nosso dever é servir a Kṛṣṇa, caímos no mundo material e nos enredamos no gozo pessoal dos sentidos. Enquanto continuamos tentando satisfazer os próprios sentidos, temos de aceitar outro corpo.

Kṛṣṇa é tão bondoso que, se queremos ser tigres, Ele nos dará um corpo de tigre. Se desejamos nos tornar devotos, Ele nos dará um corpo de devoto. Esta vida é uma preparação para a próxima, e, se queremos desfrutar com nossos sentidos transcendentais, temos de nos purificar para voltar ao lar, voltar ao Supremo. Com esse propósito, Devahūti está submetendo-se a seu filho assim como um discípulo se submete a seu mestre.

Verso 8

tasya tvaṁ tamaso ’ndhasya
duṣpārasyādya pāra-gam
sac-cakṣur janmanām ante
labdhaṁ me tvad-anugrahāt

Vossa Onipotência é meu único meio de escapar desta trevosa região de ignorância, pois és meu olho transcendental, o qual obtive apenas por Tua misericórdia, após muitos e muitos nascimentos.

SIGNIFICADO—Este verso é muito instrutivo, já que indica a relação entre o mestre espiritual e o discípulo. O discípulo, ou alma condicionada, é posto na mais escura região da ignorância e, devido a isso, ele se enreda na existência material de gozo dos sentidos. É muito difícil escapar deste cativeiro e alcançar a liberdade, mas, se alguém tem a fortuna de conseguir associar-se com um mestre espiritual como Kapila Muni ou Seu representante, então, por Sua graça, ele pode libertar-se do lodo da ignorância. O mestre espiritual, portanto, é adorado como aquele que liberta o discípulo do lodo da ignorância com a luz do archote do conhecimento. A palavra pāra-gam é muito significativa. Pāra-gam se refere a alguém que pode levar o discípulo para o outro lado. Do lado de cá, encontramos a vida condicionada; do outro lado, está a vida de liberdade.

O mestre espiritual leva o discípulo para o outro lado, abrindo-lhe os olhos com o conhecimento. Sofremos simplesmente por causa da ignorância. A escuridão da ignorância é eliminada pela instrução do mestre espiritual, de modo que o discípulo se torna apto a ir para o lado da liberdade. Afirma-se na Bhagavad-gītā que, após muitos e muitos nascimentos, alguém pode render-se à Suprema Personalidade de Deus. De modo semelhante, se, após muitos e muitos nascimentos, alguém for capaz de encontrar um mestre espiritual genuíno e render-se a esse representante autêntico de Kṛṣṇa, ele poderá ser levado para o lado da luz.

O mestre espiritual genuíno é um vedantista de verdade, visto que ele realmente conhece o Vedānta e os Vedas e compreende a Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa. A palavra veda significa “conhecimento”, e anta significa “última fase”. Existem diferentes classes de conhecimento. Estamos interessados em conhecimento banal, o que nos trará algum benefício econômico, mas isso não é verdadeiro conhecimento. Essa é a arte de ganhar a vida. Alguém pode estudar para ser um eletricista e ganhar a vida consertando fios elétricos. Essa espécie de conhecimento chama-se śilpa-jñāna. Conhecimento verdadeiro, entretanto, é conhecimento védico, conhecer a si mesmo e a Deus e compreender o relacionamento do eu com Deus e o próprio dever.

Quem está buscando conhecimento chama-se jñānavān. Conhecimento começa com a pergunta athāto brahma-jijñāsā: “O que é o Brahman?” Conhecimento também começa com a compreensão acerca das três classes de sofrimentos do mundo material – ādhyātmika, ādhibhautika e ādhidaivika. Sofremos em consequência de problemas causados por outras entidades vivas e forças da natureza, bem como em virtude de problemas que surgem do próprio corpo e da própria mente. A alma é distinta do corpo e da mente, mas sofre devido à contaminação material. Não temos controle sobre essas três classes de sofrimentos. Elas são controladas pela serva de Kṛṣṇa, a deusa Durgā, que é a natureza material. Ela não é independente de Kṛṣṇa. Entretanto, é tão poderosa que pode criar e manter. Prakṛti, ou a natureza, pode ser muito cruel. Costuma-se retratar mãe Durgā levando um tridente, com o qual ela castiga os demônios.

Aqueles que são inteligentes e eruditos buscam a misericórdia da Suprema Personalidade de Deus para aliviar-se das três classes de sofrimentos da existência material. Embora este mundo material não passe de escuridão, as pessoas têm muito orgulho de seus olhos. Elas costumam desafiar: “Você pode me mostrar Deus?” A resposta é: “Você tem olhos para ver Deus?” Por que tanta ênfase na faculdade de ver? Certamente Deus pode ser visto, como declara a Brahma-saṁhitā (5.38), premāñjana-cchurita-bhakti-vilocanena: “O devoto cujos olhos estão untados com o bálsamo do amor sempre pode ver Govinda [Kṛṣṇa].”

Se somos devotos, amantes de Deus, o bálsamo do amor purificará os nossos olhos. Para vermos a Deus, temos de purificar nossos olhos das cataratas da contaminação material. Embora possamos estar muito ansiosos por ver a Deus, não podemos vê-lO com estes olhos materiais. Não só não podemos vê-lO, como também não podemos compreendê-lO, apesar de Seu nome estar aqui presente. Compreender Deus significa, em primeiro lugar, compreender Seu nome. Portanto, desde o começo, devemos cantar o mahā-mantra Hare Kṛṣṇa. Deus não é diferente de Seu nome. O nome de Kṛṣṇa e a pessoa Kṛṣṇa são o mesmo. “Absoluto” significa que o nome, forma, morada, roupa, passatempos e tudo mais que se refere a Kṛṣṇa não é diferente dEle. Kṛṣṇa está presente em Seu nome, mas, porque não temos amor por Ele, não podemos vê-lO.

Sanātana Gosvāmī era um grande erudito, e costumavam chamá-lo de paṇḍita, que indica que ele era um brāhmaṇa erudito. Ao aproximar-se de Śrī Caitanya Mahāprabhu, Sanātana Gosvāmī disse: “Meus vizinhos me chamam de paṇḍita, mas estou muito infeliz por causa disso.” Caitanya Mahāprabhu perguntou: “Por que estás insatisfeito?” Sanātana Gosvāmī respondeu: “Sou um pobre paṇḍita que nem mesmo sabe qual é o objetivo da vida. Tampouco sei o que é benéfico para mim. Estou apenas sendo arrastado pelas ondas do gozo dos sentidos.” Foi dessa maneira que Sanātana Gosvāmī se aproximou de Śrī Caitanya Mahāprabhu. Ele não se aproximou do Senhor para pedir ouro ou remédio. Ele foi buscar seu verdadeiro interesse próprio. Esse é o verdadeiro propósito de se aproximar de um guru.

Devahūti aproximou-se do Senhor Kapiladeva da mesma maneira. Ela disse: “Meu querido Kapila, vieste como meu filho, mas és meu guru, porque podes me ensinar como posso cruzar este oceano de ignorância, que é o mundo material.” Logo, quem sente a necessidade de cruzar o escuro oceano da ignorância, que é a existência material, precisa de um guru. Não cabe ao guru fornecer ouro ou remédio a ninguém. Hoje em dia, virou moda manter um guru como se ele fosse um cachorro ou um gato. Isso é inútil. Devemos indagar sobre a parte da criação de Deus que está além desta escuridão. As Upaniṣads e a Bhagavad-gītā descrevem um outro mundo, além desta natureza material. De acordo com Kṛṣṇa na Bhagavad-gītā (15.6):

na tad bhāsayate sūryo
na śaśāṅko na pāvakaḥ
yad gatvā na nivartante
tad dhāma paramaṁ mama

“Essa Minha morada não é iluminada nem pelo Sol nem pela Lua, nem pelo fogo nem pela eletricidade. Aqueles que a alcançam jamais retornam a este mundo material.”

Não nos é possível ir para esse paravyoma através de meios materiais. É impossível penetrar no universo espiritual sem antes compreender Kṛṣṇa. Podemos receber iluminação mediante a misericórdia de Deus, porque o próprio Kṛṣṇa vem para nos iluminar. Se Ele mesmo não vem, Ele envia Seu devoto ou deixa a Bhagavad-gītā. Entretanto, somos tão tolos que não tiramos proveito dessas facilidades. Fazemos pouco caso de Seu devoto que anseia por dar este conhecimento, à custa de qualquer sacrifício. Por isso, Śrī Caitanya Mahāprabhu disse:

brahmāṇḍa bhramite kona bhāgyavān jīva
guru-kṛṣṇa-prasāde pāya bhakti-latā-bīja

“A caída entidade viva condicionada está aprisionada pela energia externa e vagueia pelo mundo material, mas se, por alguma boa fortuna, encontra um representante genuíno do Senhor e tira vantagem de semelhante guru, ela recebe a semente do serviço devocional.” (Caitanya-caritāmṛta, Madhya 19.151)

Quem recebe a semente do serviço devocional é a pessoa mais afortunada. Aqueles que estão cultivando bhakti na Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna são os seres mais afortunados do mundo. É pela misericórdia de Kṛṣṇa que se pode receber a bhakti-latā-bīja, a semente do serviço devocional. A menos que a pessoa esteja livre das reações do pecado, não é possível compreender bhakti ou Bhagavān. Portanto, devemos agir piedosamente, ou seja, abandonar o sexo ilícito, a intoxicação, o consumo de carne e os jogos de azar. Quem leva uma vida piedosa pode compreender a Deus. Este movimento para a consciência de Kṛṣṇa presta-se a treinar as pessoas a atingirem esta meta para que suas vidas sejam bem-sucedidas.

Verso 9

ya ādyo bhagavān puṁsām
īśvaro vai bhavān kila
lokasya tamasāndhasya
cakṣuḥ sūrya ivoditaḥ

És a Suprema Personalidade de Deus, a origem e o Senhor Supremo de todas as entidades vivas. Surgiste para disseminar os raios do Sol, a fim de dissipar do universo a escuridão da ignorância.

SIGNIFICADO—Kapila Muni é aceito como encarnação da Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa. Neste contexto, a palavra ādya significa “a origem de todas as entidades vivas”, e puṁsām īśvaraḥ significa “o Senhor (īśvara) das entidades vivas” (īśvaraḥ paramaḥ kṛṣṇaḥ). Kapila Muni é a expansão direta de Kṛṣṇa, que é o Sol do conhecimento espiritual. Assim como o Sol dissipa a escuridão do universo, da mesma forma, quando a luz da Suprema Personalidade de Deus desce, ela dissipa de imediato a escuridão de māyā. Temos olhos, mas, sem a luz do Sol, nossos olhos não têm valor. Analogamente, sem a luz do Senhor Supremo, ou sem a divina graça do mestre espiritual, ninguém pode ver as coisas como elas são.

Neste verso, Devahūti também se dirige a seu filho como Bhagavān. Bhagavān é a Pessoa Suprema. Se utilizássemos apenas um pouco de bom senso, poderíamos entender que uma organização requer um líder. Sem um líder, não se pode organizar nada. Filósofos tolos dizem que o universo veio a existir por acaso. Dizem que havia um amontoado de matéria no começo e que esta manifestação cósmica surgiu desse amontoado de matéria. Mas de onde veio esse amontoado? O fato é que precisa haver um cérebro, um líder, por trás de tudo o que é organizado. Temos informações sobre esse líder através dos Vedas: nityo nityānāṁ cetanaś cetanānām. O Senhor Supremo é eterno, e nós também somos eternos. Mas o Senhor Supremo é um, e nós somos muitos. O Senhor Supremo é muito grande, e nós somos muito pequenos. Ele é onipenetrante e infinito, e nós somos finitos e infinitesimais. Mesmo se analisamos a criação, percebemos que nem todos estão no mesmo nível. Uma pessoa é mais inteligente ou opulenta do que outra. Se analisamos as coisas dessa maneira, chegamos aos semideuses, e, entre esses, descobrimos que o semideus mais importante é o senhor Brahmā. Ele é a criatura original deste universo, apesar do que não é o ser mais inteligente. Afirma-se que, no começo, Brahmā recebeu conhecimento da Suprema Personalidade de Deus.

Recentemente, publicou-se em um jornal que a fé em um Deus pessoal está diminuindo. Isso significa que os homens estão ficando cada vez mais tolos. Tal fato é natural em Kali-yuga, pois, à medida que a era de Kali avança, a força corpórea, a memória e a misericórdia diminuem. Vê-se de fato que a atual geração não é tão forte como a anterior. Os homens também têm memória curta. Também se sabe que às vezes pessoas são assassinadas enquanto outras passam do lado e não demonstram nenhuma preocupação. Portanto, a misericórdia está diminuindo. Já que tudo está diminuindo, a consciência de Deus também está diminuindo; logo, é natural receber notícias de que a fé em um Deus pessoal está decrescendo. Na Bhagavad-gītā (7.15), aquele que não aceita um Deus pessoal é descrito como mūḍha, tolo.

na māṁ duṣkṛtino mūḍhāḥ
prapadyante narādhamāḥ
māyayāpahṛta-jñānā
āsuraṁ bhāvam āśritāḥ

“Os canalhas que são grosseiros e tolos, que são os mais baixos da humanidade, cujo conhecimento é roubado pela ilusão e que compartilham da natureza ateísta dos demônios, não se rendem a Mim.”

Na realidade, hoje em dia, ninguém sequer sabe o que significa Deus, de maneira que fica afastada qualquer hipótese de rendição. Existem aqueles que são eruditos e cultos, mas māyā, a ilusão, rouba o conhecimento deles. Embora possam ter títulos acadêmicos, não possuem conhecimento verdadeiro. Além disso, são asuras, demônios, que vivem desafiando a Deus, dizendo: “Eu sou Deus, você é Deus. Por que vocês buscam por Deus? Há muitos Deuses perambulando pelas ruas. Cuide deles.” Portanto, não é de se admirar que os jornais noticiem que a fé em um Deus pessoal esteja diminuindo. Apesar disso, Deus é uma pessoa. Ya ādyo bhagavān. O senhor Brahmā também adora a Kṛṣṇa com a prece: govindam ādi-puruṣaṁ tam ahaṁ bhajāmi. Ele diz: “Adoro aquela pessoa original, Govinda.” Ādi-puruṣam, Kṛṣṇa, não tem ninguém que O preceda, daí Ele ser chamado de original. Declara-se que Kṛṣṇa nasceu de Vasudeva, mas isso quer dizer apenas que Kṛṣṇa aceitou Vasudeva como Seu pai. Śrī Kṛṣṇa lida com Seus devotos de acordo com diferentes relacionamentos, ou rasas – śānta, dāsya, sakhya, vātsalya e mādhurya.

Todos temos alguma relação com Kṛṣṇa, mas, no momento, ela está encoberta. Devemos, portanto, revivê-la. O mero apreço pelo Supremo chama-se śānta-rasa. Quando o devoto desenvolve seu apreço pelo Senhor plenamente, ele deseja prestar algum serviço, e isso se chama dāsya. Ao ficar mais íntimo, ele se torna amigo de Kṛṣṇa, e isso se chama sakhya. Ao avançar ainda mais, ele deseja prestar serviço a Kṛṣṇa como pai ou mãe, e isso é vātsalya. Ser pai ou mãe significa servir ao filho. A concepção cristã de Deus como o Pai Supremo não é muito perfeita, pois, se O concebemos como pai, nossa posição será a de pedir-Lhe coisas. Todos querem tirar algo do pai. O filho vive dizendo: “Pai, me dê isso. Pai, me dê aquilo.” Entretanto, aceitar o Senhor Supremo como filho significa prestar serviço. Yaśodā-mayī teve Kṛṣṇa como seu filho, em virtude do que vivia preocupada em resguardá-lO. Assim, ela sempre O estava protegendo. Na verdade, Kṛṣṇa protege o universo inteiro, mas Yaśodā protegia Kṛṣṇa. Essa é a filosofia vaiṣṇava. Yaśodā enlouqueceu ao ver o demônio Tṛṇāvarta sequestrar Kṛṣṇa. Kṛṣṇa, entretanto, ficou tão pesado que o demônio não pôde voar pelo céu e, dessa maneira, caiu por terra e morreu. Yaśodā disse imediatamente: “Deus salvou meu Kṛṣṇa!” Ela, então, começou a agradecer a algum outro deus, algum devatā. Ela não sabia que Kṛṣṇa é a Suprema Personalidade de Deus. Se ela pensasse em Kṛṣṇa como a Suprema Personalidade de Deus, a relação entre mãe e filho se romperia. Portanto, Kṛṣṇa agia tal qual uma criança qualquer, e mãe Yaśodā O tratava como seu filho. Tampouco os amigos de Kṛṣṇa, os vaqueirinhos, consideravam-nO o Senhor Supremo. As gopīs costumavam até mesmo castigar Kṛṣṇa. Se o devoto pode ter tal relação com Kṛṣṇa, por que desejaria se tornar uno com Deus? É melhor ser pai de Deus, controlador de Deus. Isso é bhakti-mārga, a senda do serviço devocional. O devoto não deseja ser igual a Deus ou uno com Ele. Deseja apenas prestar serviço.

Para se entender a Verdade Absoluta, é necessário compreender o significado de Bhagavān. Devahūti não era uma mulher comum. Era a esposa de Kardama Muni, um grande yogī. É evidente que ela aprendera algo com seu marido, pois, se não fosse muito elevada, como Bhagavān Kapiladeva teria Se tornado seu filho? Todos devem saber o que é Bhagavān e receber instruções dEle. O Senhor Kapila é Bhagavān e Ele pessoalmente instruiu Sua mãe sobre a filosofia sāṅkhya. Através deste conhecimento, podemos desenvolver ou despertar nosso amor adormecido por Deus. Então, quando nossos olhos estiverem untados com amor por Deus, poderemos vê-lO. Na verdade, podemos ver Deus em toda parte e sempre. Iremos ver Deus e nada mais. Não veremos Deus só em nossos corações. Se formos ao oceano, veremos Deus. Quem for um pouco dado a reflexões, verá que o enorme oceano fica sempre no mesmo lugar. O oceano recebeu ordens para não passar de certo limite. Qualquer homem inteligente pode ver Deus enquanto caminha pela praia. Entretanto, isso requer um pouco de inteligência. Pessoas que são asnos, mūḍhas, duṣkṛtīs, não podem ver Deus, mas aquelas que são inteligentes podem vê-lO em toda parte porque Ele é onipresente. Ele está dentro do universo e dentro de nosso coração, e está até mesmo dentro do átomo. Por que dizem que não conseguem vê-lO? Deus diz: “Tente Me ver desta forma, mas, se você é tão obtuso, tente Me ver de outra forma.”

Qual é a forma mais fácil? Kṛṣṇa afirma na Bhagavad-gītā: “Sou o sabor da água.” Existe alguém que nunca bebeu água? Ele também diz: “Sou a luz do Sol.” Existe alguém que nunca viu o brilho do Sol? Então, por que há quem diga: “Não vejo Deus”? Primeiramente devemos tentar ver Deus. É tão fácil como o abecê. Quando enxergarmos Deus em toda parte, veremos o Deus pessoal. Então, teremos compreensão completa.

Bhagavān puṁsām īśvaraḥ. Bhagavān é īśvara, o controlador. Nós não somos independentes. Ninguém pode de fato dizer: “Sou independente.” Embora estejamos fortemente atados pelos modos da natureza material, ainda julgamos ser independentes. Isso é mera tolice. Por isso se diz que todos neste mundo material estão cegos pela escuridão da ignorância. Quando estão cegos, os homens, devido à sua ignorância, costumam dizer: “Deus não existe. Não consigo vê-lO.” Então, Deus vem como Kṛṣṇa ou Kapiladeva e diz: “Aqui estou. Veja Minha forma. Sou uma pessoa. Toco flauta e Me divirto em Vṛndāvana. Por que você não pode Me ver?” Desse modo, Deus vem, explica quem Ele é e deixa Sua instrução, a Bhagavad-gītā. Os homens, todavia, são tão tolos que afirmam não compreender Deus. Se tentarmos ver Deus através das instruções que o Senhor Kapila oferece a Devahūti, nossa vida será bem-sucedida.

Verso 10

atha me deva sammoham
apākraṣṭuṁ tvam arhasi
yo ’vagraho ’haṁ mametīty
etasmin yojitas tvayā

Agora, meu Senhor, faze o obséquio de dissipar minha grande ilusão. Devido a meu sentimento de falso ego, tenho sido ocupada por Tua māyā e tenho me identificado com o corpo e consequentes relações corpóreas.

SIGNIFICADO—O falso ego de identificar o corpo com o eu e de reivindicar direito sobre coisas possuídas em relação a este corpo chama-se māyā. Na Bhagavad-gītā, décimo quinto capítulo, o Senhor diz: “Estou sentado no coração de todos, e de Mim vêm sua lembrança e seu esquecimento.” Devahūti afirma que a falsa identificação do corpo com o eu e o apego a posses em relação ao corpo também estão sob a direção do Senhor. Isso significa que o Senhor discrimina ao ocupar alguém em Seu serviço devocional e outrem no gozo dos sentidos? Se isso fosse verdade, seria uma incongruência da parte do Senhor Supremo, mas esse não é o fato real. Logo que a entidade viva se esquece de sua verdadeira posição constitucional de servo eterno do Senhor e deseja, ao invés disso, desfrutar mediante o gozo dos sentidos, ela é capturada por māyā. Essa captura por parte de māyā é a consciência de falsa identificação com o corpo e de apego às posses do corpo. Essas são as atividades de māyā, e, já que māyā também é uma agente do Senhor, essa é uma ação indireta do Senhor. O Senhor é misericordioso: se alguém quer esquecê-lO e gozar deste mundo material, Ele lhe dá todas as facilidades, não diretamente, mas por intermédio de Sua potência material. Portanto, como a potência material é energia do Senhor, indiretamente é o Senhor quem dá as facilidades para se esquecê-lO. Devahūti, então, disse: “Minha ocupação no gozo dos sentidos também se deveu a Ti. Agora, por favor, liberta-me deste cativeiro.”

Pela graça do Senhor, alguém recebe permissão de gozar deste mundo material, mas, ao se esgotar do gozo material e cair na frustração, e ao render-se sinceramente aos pés de lótus do Senhor, o Senhor é tão bondoso que o liberta do cativeiro. Portanto, Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā: “Antes de qualquer coisa, rende-tedepois Me encarregarei de ti e te livrarei de todas as reações às atividades pecaminosas.” Atividades pecaminosas são aquelas atividades executadas em esquecimento de nossa relação com o Senhor. Neste mundo material, as atividades que visam ao gozo material e são consideradas piedosas também são pecaminosas. Por exemplo, às vezes alguém faz caridade a uma pessoa necessitada, com vistas a conseguir em troca que seu dinheiro aumente quatro vezes. Dar com o objetivo de ganhar algo se chama caridade no modo da paixão. Tudo o que se faz aqui se faz sob os modos da natureza, daí todas as atividades, além do serviço ao Senhor, serem pecaminosas. Por causa de atividades pecaminosas, sentimo-nos atraídos pela ilusão do apego material, pensando: “Sou este corpo.” Penso que o corpo sou eu mesmo e que as posses do corpo são “minhas”. Devahūti pediu ao Senhor Kapila que a libertasse desse enredamento da falsa identificação e falsa propriedade.

Ao fazer esse pedido, Devahūti está aceitando seu filho, Kapila, como guru. Por conseguinte, Ele lhe explica como resolver todos os problemas materiais. Vida material nada mais é que atração sexual. Puṁsaḥ striyā mithunī-bhāvam etam (Śrīmad-Bhāgavatam 5.5.8). Vida material significa que os homens buscam as mulheres e as mulheres buscam os homens. Encontramos essa situação não apenas na sociedade humana, mas também na sociedade dos pássaros, cachorros, gatos e semideuses. Logo que as pessoas se associam para satisfazer o desejo sexual, a atração fica cada vez maior. Necessita-se de um apartamento para manter a privacidade, após o que é preciso lutar para ganhar a vida e conseguir alguma terra. Sem filhos, frustra-se a vida de casado, e os filhos, evidentemente, têm de ser educados. Desse modo, a pessoa se enreda na vida material através de muitas situações, mas, no momento da morte, Kṛṣṇa vem e leva tudo emboracasa, terra, esposa, filhos, amigos, reputação e o que quer que seja. Então, temos de iniciar outra vida. Não é que apenas morremos e tudo se acaba. Vivemos para sempre; o corpo acaba, mas temos de aceitar outro corpo dentre as 8.400.000 formas. Dessa maneira, a vida passa, mas o homem tolo pensa em termos de esposa, filhos e assim por diante. Tudo isso é ilusão.

De qualquer forma, não nos será permitido permanecer aqui, e, embora estejamos apegados a essas coisas, tudo será levado embora na hora da morte. Qualquer que seja o posto que ocupemosquer o de presidente, quer o do senhor Brahmā –, ele é temporário. Podemos ficar aqui cinco anos, dez anos, cem anos ou cinco milhões de anos. Nossa posição, contudo, é limitada. Nossa posição no mundo material não é eterna, mas nós somos eternos. Por que, então, nós nos deixamos iludir com o que não é eterno? Por natureza, somos partes integrantes de Kṛṣṇa, e Kṛṣṇa é sac-cid-ānanda-vigraha. Para transcender a escuridão da vida material e ir para o mundo de luz, precisamos nos aproximar de um guru. É por essa razão que Devahūti está se aproximando do Senhor Kapiladeva.

De manhã, quando o Sol nasce, a escuridão da noite se dissipa de imediato. Analogamente, quando Deus ou Sua encarnação vem, a escuridão da vida material é dissipada. Quando Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, veio, a ilusão de Arjuna desapareceu. Ele estava pensando: “Por que devo lutar com meus parentes?” Na realidade, o mundo inteiro está sob esta concepção de “eu” e “meu”. Acontecem lutas entre nações, sociedades, comunidades e famílias. As pessoas pensam: “Por que você interfere em meus negócios?” Então, sobrevém a luta. Devido à ilusão, não vemos que essas situações são temporárias. Em um trem, os passageiros às vezes discutem e brigam por um assento, mas aquele que sabe que ficará no trem por apenas duas ou três horas pensa: “Por que devo discutir? Ficarei aqui apenas por algum tempo.” Um indivíduo pensa dessa forma, enquanto outro está pronto para brigar, pensando que seu assento é permanente. Ninguém receberá a permissão de permanecer neste mundo material; todos terão de mudar de corpo e posição, mas, enquanto permanecem aqui, terão de lutar pela existência. A vida material é assim. Podemos conseguir algum alívio temporário, mas, em última análise, o mundo material é cheio de sofrimentos.

Estamos muito apegados a este mundo material, mas, de acordo com o sistema védico, a renúncia é compulsória, pois, quando o homem chega aos cinquenta anos, ele deve renunciar a vida familiar. A natureza dá o aviso: “Você agora passou dos cinquenta. Tudo bem. Você lutou no mundo material. Agora, pare com isso.” As crianças brincam na praia e fazem castelos na areia, mas, depois de algum tempo, o pai vem e diz: “Meus queridos filhos, agora já chega. Chega de brincadeira e vamos para casa.” Esse é o dever do guruensinar o desapego a seus discípulos. Este mundo não é nosso lar; nosso lar é Vaikuṇṭha-loka. Kṛṣṇa também vem para nos lembrar disso. O dharma, ou a ordem, da Pessoa Suprema é que nos tornemos Seus devotos e sempre pensemos nEle. Kṛṣṇa diz:

man-manā bhava mad-bhakto
mad-yājī māṁ namaskuru

“Ocupa tua mente sempre em pensar em Mim, oferece-Me reverências e Me adora.” (Bhagavad-gītā 9.34)

Dessa maneira, Kṛṣṇa abre a porta, mas, infelizmente, não O aceitamos. Kṛṣṇa diz a Arjuna: “Porque és Meu amigo, estou te revelando o dharma mais confidencial.” Qual é esse dharma? “Simplesmente rende-te a Mim.” Esse é o dharma que a Suprema Personalidade de Deus ensinou e que a encarnação de Kṛṣṇa e Seu devoto também ensinarão.

Todos estamos em busca de felicidade, mas não sabemos como ser felizes. Queremos experimentar prazer através dos sentidos, mas isso não é possível com nossos sentidos cobertos e falsos. Os verdadeiros sentidos devem ser despertados através do processo de purificação. Pensamos em nós mesmos de acordo com muitas identificações materiais falsas, mas deveríamos aceitar o conselho de Śrī Caitanya Mahāprabhu: jīvera ‘svarūpa’ hayakṛṣṇera ‘nitya-dāsa’. Todos devemos entender que somos servos eternos de Kṛṣṇa. Afinal, sempre usamos os sentidos ou para a satisfação própria, ou para a de outrem. Isso é kāma, krodha, lobha e matsaryailusão. Se não servimos a nossos próprios desejos luxuriosos (kāma), servimos à ira (krodha). Se sou o amo da ira, posso controlar minha ira, e se sou o amo de meus desejos, posso controlar meus desejos. De qualquer forma, sou servo e devo transferir meu serviço para Kṛṣṇa. Essa é a perfeição da vida.

Quem se situa na posição transcendental (bhakti), pode compreender Kṛṣṇa. Ninguém consegue entender Kṛṣṇa através da especulação mental, ou Ele teria dito que é possível compreendê-lO através de jñāna, karma ou yoga. Entretanto, Ele diz claramente que bhaktyā mām abhijānāti: “Apenas através do serviço devocional é que posso ser compreendido.” Se alguém quer conhecer Kṛṣṇa como Ele é, tem de aceitar o processo de bhakti. É esse processo de bhakti que Kapiladeva revelará a Devahūti.

Verso 11

taṁ tvā gatāhaṁ śaraṇaṁ śaraṇyaṁ
sva-bhṛtya-saṁsāra-taroḥ kuṭhāram
jijñāsayāhaṁ prakṛteḥ pūruṣasya
namāmi sad-dharma-vidāṁ variṣṭham

Devahūti continuou: Refugio-me a Teus pés de lótus porque és a única pessoa em quem posso me abrigar. És o machado que pode cortar a árvore da existência material. Portanto, presto minhas reverências a Ti, que és o maior de todos os transcendentalistas, e pergunto-Te sobre a relação entre homem e mulher e entre espírito e matéria.

SIGNIFICADO—A filosofia sāṅkhya, como é bem conhecida, trata de prakṛti e puruṣa. Puruṣa é a Suprema Personalidade de Deus ou qualquer pessoa que imite a Suprema Personalidade de Deus como desfrutador, e prakṛti significa “natureza”. Neste mundo material, os puruṣas, ou as entidades vivas, exploram a natureza material. As complexidades, no mundo material, da relação entre prakṛti e puruṣa, ou entre desfrutado e desfrutador, chamam-se saṁsāra, ou enredamento material. Devahūti queria cortar a árvore do enredamento material e encontrou a arma adequada em Kapila Muni. A árvore da existência material é explicada no décimo quinto capítulo da Bhagavad-gītā como sendo uma árvore aśvattha cuja raiz está para cima e os ramos estão para baixo. Recomenda-se, portanto, que devemos cortar a raiz dessa árvore da existência material com o machado do desapego. O que é o apego? O apego envolve prakṛti e puruṣa. As entidades vivas vivem tentando assenhorear-se da natureza material. Uma vez que a alma condicionada toma a natureza material como objeto de seu desfrute e assume a posição de desfrutador, ela é, então, chamada de puruṣa.

Devahūti interrogou Kapila Muni, pois sabia que somente Ele poderia cortar seu apego a este mundo material. As entidades vivas, disfarçadas de homens e mulheres, tentam desfrutar da energia material; por isso, em um sentido, todos são puruṣas, porque puruṣa significa “desfrutador”, e prakṛti, “desfrutado”. Neste mundo material, tanto o dito homem quanto a dita mulher vivem imitando o verdadeiro puruṣa. A Suprema Personalidade de Deus é realmente o desfrutador no sentido transcendental, ao passo que todos os demais são prakṛti.

Na Bhagavad-gītā, analisa-se a matéria como aparā, ou natureza inferior, ao passo que, além desta natureza inferior, há outra naturezasuperior, ou seja, as entidades vivas. As entidades vivas também são prakṛti, ou desfrutadas, porém, sob o encanto de māyā, as entidades vivas tentam falsamente tomar a posição de desfrutadores. Essa é a causa de saṁsāra-bandha, ou vida condicionada. Devahūti queria escapar da vida condicionada e render-se plenamente. O Senhor é śaraṇya, que significa “a única pessoa digna de receber nossa plena rendição”, pois Ele é pleno de todas as opulências. Se alguém quer realmente alívio, o melhor a se fazer é render-se à Suprema Personalidade de Deus. Nesta passagem, também se descreve o Senhor como sad-dharma-vidāṁ variṣṭham. Isso indica que, de todas as ocupações transcendentais, a melhor é o serviço amoroso eterno à Suprema Personalidade de Deus. Às vezes, traduz-se dharma como “religião”, mas não é esse exatamente o significado. Dharma realmente significa “aquilo que não se pode abandonar”, “aquilo que é inseparável de alguém”. O calor do fogo é inseparável do fogo, mas o calor é considerado o dharma, ou natureza, do fogo. Analogamente, sad-dharma significa “ocupação eterna”. Essa ocupação eterna é dedicar-se ao transcendental serviço amoroso ao Senhor. O objetivo da filosofia sāṅkhya de Kapiladeva é propagar serviço devocional puro e impoluto, daí Ele ser chamado aqui de a mais importante personalidade entre aqueles que conhecem a ocupação transcendental da entidade viva.

Conforme salienta este verso, Bhagavān, a Suprema Personalidade de Deus, é o verdadeiro refúgio de todos (śaraṇaṁ śaraṇyam). Todos buscamos abrigo, pois todos nós, por constituição, somos servos. Originalmente, somos servos de Deus, em consequência do que faz parte de nossa natureza buscar Seu refúgio. Alguns buscam emprego como servo de um grande homem; outros procuram servir ao governo ou ao que quer que seja. Mas, em última análise, o único abrigo verdadeiro é Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus. Por ser uma encarnação de Kṛṣṇa, Kapiladeva também é um abrigo. Kṛṣṇa tem ilimitadas formas e encarnações. Afirma-se no Śrīmad-Bhāgavatam que Suas encarnações Se expandem continuamente, como as ondas do oceano. Na verdade, nem mesmo podemos contá-las. Na Brahma-saṁhitā, afirma-se que advaitam acyutam anādim ananta-rūpam. Na Índia, existem muitos milhares de templos e, nesses templos, encontram-se arcā-vigrahas, Deidades. Todos esses Kṛṣṇas não são diferentes; são apenas um. Kṛṣṇa reside tanto em Vaikuṇṭha quanto no templo. Todos esses Kṛṣṇas não são diferentes, embora sejam ananta, ilimitados. Kṛṣṇa também é a testemunha dentro do coração de todos e está vendo todas as atividades. Não podemos esconder nada dEle, e recebemos os resultados de nosso karma porque a testemunha é o próprio Kṛṣṇa dentro do coração. Como, então, pode alguém esquecê-lO? Sem a permissão de Kṛṣṇa, não se pode fazer nada. Por que Kṛṣṇa confere à alma condicionada a permissão para fazer algo errado? Ele permite porque ela insiste.

Na verdade, Ele não diz a ninguém outra coisa senão que Se renda a Ele. Às vezes, desejamos fazer algo, e Kṛṣṇa pode não sancionar, mas vamos adiante e o fazemos por nossa própria conta. Kṛṣṇa não é o responsável. Entretanto, é preciso saber que, sem a sanção de Kṛṣṇa, ninguém pode fazer nada. Isso é um fato. Na verdade, somos por natureza servos de Kṛṣṇa. Embora nos julguemos independentes, não o somos. Ao contrário, somos servos que erroneamente se julgam independentes. Autorrealização significa compreender que somos dependentes da Suprema Personalidade de Deus. Como Caitanya Mahāprabhu diz:

ayi nanda-tanuja kiṅkaraṁ
patitaṁ māṁ viṣame bhavāmbudhau
kṛpayā tava pāda-paṅkaja-
sthita-dhūlī-sadṛśaṁ vicintaya

“Meu querido Senhor Kṛṣṇa, filho de Mahārāja Nanda, sou Teu servo eterno, porém, caí de alguma forma no oceano de nascimentos e mortes. Resgata-me, por favor, deste oceano de mortes e coloca-me como um dos átomos a Teus pés de lótus.” (Śikṣāṣṭaka 5) Porque estamos iludidos, Devahūti diz: sva-bhṛtya-saṁsāra-taroḥ kuṭhāram. A Bhagavad-gītā (15.1-4), compara a existência material a uma figueira-de-bengala com as raízes para cima e os ramos para baixo. As raízes desta figueira-de-bengala são muito fortes, mas um machado (kuṭhāram) pode cortá-las. Quem se abriga aos pés de lótus de Kṛṣṇa pode cortar a forte raiz da existência material. Porque abandonamos o serviço a Kṛṣṇa, passamos a ser servos de muitas coisas. Somos forçados a servir nossos parentes, esposa, filhos, pais e assim por diante. Temos dívidas com muitas pessoas e com os semideuses que nos proporcionam luz e calor. Apesar de não pagarmos a conta, tiramos proveito da luz e do calor do Sol. Se usamos a eletricidade, temos de pagar a conta, mas não pagamos a conta do Sol. Isso quer dizer que estamos em débito com o deus do Sol, Vivasvān. Do mesmo modo, Indra, o rei dos céus, está suprindo água sob a forma de chuva. Os patifes dizem que tudo isso se deve à natureza, mas eles não sabem que a natureza é controlada. Se não pagarmos nossas contas mediante a execução de sacrifícios, decerto haverá escassez. Todas essas coisas são supridas pelo Pai Supremo, a Suprema Personalidade de Deus, mas pensamos que elas surgem da natureza e, por isso, as utilizamos sem nos preocupar se pagamos a conta ou não. É perfeitamente correto utilizar a propriedade de nosso pai, mas, no momento, não estamos agindo como filhos de nosso pai, mas sim como filhos de māyā. Não nos importamos com nosso Pai; entretanto, a natureza age sob Sua direção. Se não nos interessarmos por Ele, a natureza reduzirá seu fornecimento, pois ela não permitirá que os demônios floresçam. Como declara a Bhagavad-gītā (16.19):

tān ahaṁ dviṣataḥ krūrān
saṁsāreṣu narādhamān
kṣipāmy ajasram aśubhān
āsurīṣv eva yoniṣu

“Aqueles invejosos e canalhas, que são os mais baixos entre os homens, Eu perpetuamente os arrojo no oceano da existência material, onde assumirão várias espécies de vida demoníaca.”

Os demônios estão sempre sujeitos à punição, e grandes demônios como Rāvaṇa e Hiraṇyakaśipu são pessoalmente punidos pelo Senhor. Em geral, os demônios comuns são punidos pelas leis da natureza material. Kṛṣṇa não precisa vir para punir demônios insignificantes, mas, quando grandes demônios como Rāvaṇa, Hiraṇyakaśipu e Kaṁsa estão presentes, então o Senhor vem como o Senhor Rāmacandra, o Senhor Nṛsiṁhadeva ou Śrī Kṛṣṇa para puni-los. Se não queremos ser punidos, devemos seguir as regras e regulações (sad-dharma). Dharma significa “as leis dadas por Deus”. Dharmaṁ tu sākṣād bhagavat-praṇītam. As leis são dadas por Bhagavān e escritas em livros como a Manu-saṁhitā e outros textos védicos. De acordo com a lei, devemos obedecer ao governo, e, de acordo com o dharma, devemos obedecer a Kṛṣṇa, Deus. Assim como não podemos inventar nossas leis em casa, não podemos inventar o dharma. Quem tenta fazer tal coisa está apenas enganando o público. O Śrīmad-Bhāgavatam (1.1.2) rejeita tais dharmas falsos: dharmaḥ projjhita. O verdadeiro dharma é apresentado por Śrī Kṛṣṇa quando Ele diz: sarva-dharmān parityajya mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja (Bhagavad-gītā 18.66). Todos os outros dharmas não passam de enganação. Devemos aceitar os princípios da Bhagavad-gītā, que constituem o abecê do dharma. Na verdade, temos apenas de aceitar o princípio de rendição a Kṛṣṇa, mas essa aceitação ocorre depois de muitos e muitos nascimentos. Não é fácil, pois apenas depois de muitos nascimentos de luta é que se alcança a verdadeira perfeição da vida: a rendição a Kṛṣṇa. Somente então é que se compreende perfeitamente que Vāsudeva, Kṛṣṇa, é tudo. Essa é a maior lição da Bhagavad-gītā. Tudo é energia de Kṛṣṇa, e o que quer que vemos não passa de uma exibição de dois tipos de energia. Todos sabem que o Sol tem dois tipos de energiacalor e luz. Do mesmo modo, Kṛṣṇa tem uma energia externa e uma energia interna, e tem também uma energia marginal, que é uma mistura das outras duas. A energia externa é este mundo material, a energia interna é o mundo espiritual, e a energia marginal é a entidade viva. A entidade viva é marginal porque pode permanecer no mundo material ou no mundo espiritual. A Bhagavad-gītā descreve duas classes de entidades vivas, kṣara e akṣara, as que vivem no mundo material e aquelas que vivem no mundo espiritual. Aquelas que caíram no mundo material deixam-se atrair pela árvore do saṁsāra, a figueira-de-bengala da existência material descrita na Bhagavad-gītā (décimo quinto capítulo).

É essencial que nos separemos dessa árvore através do desapego. Derrubar essa árvore é muito difícil, mas é possível com a arma do desapego. Há um provérbio bengali que diz: “Pescarei o peixe, mas não tocarei na água.” É preciso esse tipo de inteligência. Nos Estados Unidos, vemos na praia muitos velhos aposentados que passam o tempo tentando pescar peixes. Eles não são muito cuidadosos e, por isso, tocam na água. Entretanto, temos de viver neste mundo material de tal maneira que façamos tudo para Kṛṣṇa sem tocar na água do mundo material. Dessa maneira, perderemos o apego às coisas deste mundo material. Podemos ter muitos templos enormes, mas não devemos nos apegar a eles. É para o benefício de Kṛṣṇa que construímos templos, mas devemos entender que os templos são propriedade de Kṛṣṇa. Nossa missão é ensinar ao mundo que tudo pertence a Kṛṣṇa. Somente um ladrão irá apossar-se de algo que pertence a outrem e afirmar que é seu.

O movimento para a consciência de Kṛṣṇa prega que tudo pertence a Kṛṣṇa e que se deve utilizar tudo para o benefício de Kṛṣṇa. Ele é o beneficiário de tudo, e é nosso benefício ter este conhecimento. Īśāvāsyam idaṁ sarvam. Se alguém compreende que tudo pertence a Kṛṣṇa, ele se torna o maior mahātmā. Ser um mahātmā não significa ter uma barba longa e usar alguma roupa diferente. Não. Deve-se ter esta consciência. Tudo o que temos deve ser oferecido a Kṛṣṇa. Se temos alimentos de primeira classe, devemos oferecê-los a Ele. Se não temos nada, podemos oferecer-Lhe uma folha, uma flor, um pouco d’água ou uma fruta. Qualquer um, em qualquer lugar, pode conseguir tais oferendas sem ter que gastar dinheiro algum. Como Śrī Kṛṣṇa diz na Bhagavad-gītā (9.26):

patraṁ puṣpaṁ phalaṁ toyaṁ
yo me bhaktyā prayacchati
tad ahaṁ bhakty-upahṛtam
aśnāmi prayatātmanaḥ

“Se alguém Me oferecer, com amor e devoção, uma folha, uma flor, frutas ou água, Eu as aceitarei.”

O ponto é que devemos oferecer algo a Kṛṣṇa com devoção. Não é que Kṛṣṇa esteja com fome ou pedindo comida. Não. Ele está alimentando a todos, fornecendo-lhes tudo o que é necessário: eko bahūnāṁ yo vidadhāti kāmān (Kaṭha Upaniṣad 2.2.13). O que, então, Ele está pedindo? Ele está nos pedindo bhakti, devoção, porque quer que O amemos. Estamos sofrendo neste mundo material, enredados na árvore da existência material, pulando de um galho para outro, e, por causa disso, sofremos. Kṛṣṇa não quer que soframos, pulando como macacos de galho em galho. Devemos nos aproximar dEle e nos render a Ele. Ao atingirmos este conhecimento, teremos conhecimento perfeito. Quando nos abrigamos aos pés de lótus de Kṛṣṇa, não temos mais dívidas com ninguém. Na kiṅkaro nāyam ṛṇī. (Śrīmad-Bhāgavatam 11.5.41) Kṛṣṇa nos assegura que ahaṁ tvāṁ sarva-pāpebhyo mokṣayiṣyāmi: “Eu te darei completo alívio.” (Bhagavad-gītā 18.66) Isso é o que de fato queremos. Portanto, aqui Devahūti se refugia em Kapiladeva e Lhe diz: “És o machado capaz de me fazer desapegar.” Depois de cortarmos nosso apego pelo mundo material, ficamos livres. Bhakti é o meio pelo qual podemos desenvolver esse apego. Vairāgya-vidyā-nija-bhakti-yoga. Bhakti-yoga é a ciência do desapego. Sārvabhauma Bhaṭṭācārya compôs este verso ao compreender que o Senhor Caitanya Mahāprabhu era a Suprema Personalidade de Deus. Sārvabhauma Bhaṭṭācārya era um eminente lógico e compôs uma centena de versos em louvor a Caitanya Mahāprabhu, nos quais ele diz ao Senhor:

vairāgya-vidyā-nija-bhakti-yoga-
śikṣārtham ekaḥ puruṣaḥ purāṇaḥ
śrī-kṛṣṇa-caitanya-śarīra-dhari
kṛpāmbudhir yas tam ahaṁ prapadye

“Que eu me refugie na Suprema Personalidade de Deus, Śrī Kṛṣṇa, que desceu sob a forma do Senhor Caitanya Mahāprabhu para ensinar-nos o conhecimento verdadeiro, o Seu serviço devocional e o desapego de tudo que não promova a consciência de Kṛṣṇa. Ele desceu porque é um oceano de misericórdia transcendental. Que eu me renda a Seus pés de lótus.” (Caitanya-caritāmṛta, Madhya 6.254)

Quando alguém avança em bhakti-yoga, automaticamente se desapega de atrações materiais. Há muitos rapazes e moças americanos e europeus neste movimento para a consciência de Kṛṣṇa, que nasceram em países onde todos podem desfrutar de enorme variedade de bens materiais, mas eles consideram toda esta felicidade e riqueza mundanas como lixo na rua. Porque são devotos de Vāsudeva, eles não estão mais apegados a essas coisas materiais. Isso é um resultado de bhakti-yoga, que capacita o praticante a desapegar-se do desfrute material. Esse desapego é o sinal de que ele está avançando em bhakti-yoga. Bhaktiḥ pareśānubhavo viraktir anyatra ca. (Śrīmad-Bhāgavatam 11.2.42) Esse é o teste do avanço em bhakti. Se somos avançados, perdemos o apego ao desfrute material. Não é que nos consideramos grandes devotos e continuamos a desfrutar de coisas materiais. Como se declara na Bhagavad-gītā (5.22):

ye hi saṁsparśa-jā bhogā
duḥkha-yonaya eva te
ādy-antavantaḥ kaunteya
na teṣu ramate budhaḥ

“A pessoa inteligente não participa das fontes de sofrimento, que se devem ao contato com os sentidos materiais. Ó filho de Kuntī, esses prazeres têm um começo e um fim, e, por isso, o homem sábio não se deleita com eles.” Ao descobrir algo superior, a pessoa de imediato rejeita o que é inferior. Na realidade, não podemos fazer com que isso aconteça através de nosso próprio esforço; portanto, temos de nos abrigar em Kṛṣṇa e Ele nos ajudará. Já que nosso único dever é buscar o refúgio de Kṛṣṇa, Devahūti diz: “Refugio-me em ti para que cortes meu apego por esta vida material. Por que Tu deverias fazer isso? Porque sou Tua serva eterna.”

Bhaktivinoda Ṭhākura diz: anādi karama-phale, paḍi’ bhavārṇava-jale, taribāre nā dekhi upāya. Se formos jogados no oceano, empreenderemos uma grande luta, mesmo que sejamos exímios nadadores. Não importa quão peritos sejamos em lidar com o mundo; não há paz neste mundo material. Não há nada além de uma grande luta. Não podemos viver em paz aqui. Não é possível. Mesmo se não formos violentos nem ferirmos ninguém, os problemas acontecerão. Entretanto, se de uma forma ou outra tentarmos chegar à praia, encontraremos a paz. Se estivermos um centímetro fora d’água, já estaremos em paz. Tava pāda-paṅkaja-sthita-dhūlī-sadṛśaṁ vicintaya (Śikṣāṣṭaka 5). Se, de uma forma ou outra, nós nos tornarmos uma das partículas de poeira aos pés de lótus de Kṛṣṇa, seremos liberados.

Talvez alguém seja hindu ou muçulmano ou cristão por cinquenta ou sessenta anos, ou no máximo por cem anos, mas ele terá de voltar a nascer em outra forma. As pessoas pensam em termos dessas designações religiosas chamadas de asad-dharma, que significa que podem mudar a qualquer momento. Mas qual é o nosso verdadeiro dharma? Verdadeiro dharma é sad-dharma, ou seja, aquilo que não vai mudar, e esse sad-dharma implica em rendição a Kṛṣṇa. Esse dharma continuará para sempre. Há muita gente que propõe o sad-dharma, mas, na verdade, a Suprema Personalidade de Deus é quem melhor apresenta o sad-dharma, pois conhece a realidade. Portanto, Narottama Dāsa Ṭhākura diz a respeito dos Gosvāmīs: nānā-śāstra-vicāraṇaika-nipuṇau sad-dharma-saṁsthāpakau. Os discípulos diretos de Śrī Caitanya Mahāprabhu, os Gosvāmīs, tentaram estabelecer o sad-dharma, e estamos tentando seguir seus passos estabelecendo o verdadeiro dharma pelo mundo afora através deste movimento para a consciência de Kṛṣṇa.

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