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VERSOS 10-11

duḥsaha-preṣṭha-viraha-
tīvra-tāpa-dhutāśubhāḥ
dhyāna-prāptācyutāśleṣa-
nirvṛtyā kṣīṇa-maṅgalāḥ

tam eva paramātmānaṁ
jāra-buddhyāpi saṅgatāḥ
jahur guṇa-mayaṁ dehaṁ
sadyaḥ prakṣīṇa-bandhanāḥ

duḥsaha — intolerável; preṣṭha — de seu amado; viraha — da separação; tīvra — intensa; tāpa — pela dor ardente; dhuta — removidas; aśubhāḥ — todas as coisas inauspiciosas de seus corações; dhyāna — pela meditação; prāpta — obtido; acyuta — do infalível Senhor Śrī Kṛṣṇa; āśleṣa — causada pelo abraço; nirvṛtyā — pela alegria; kṣīṇa — reduzidas a nada; maṅgalāḥ — suas reações kármicas auspiciosas; tam — a Ele; eva — ainda que; parama-ātmānam — a Superalma; jāra — um amante; buddhyā — pensando que Ele era; api — não obstante; saṅgatāḥ — obtendo Sua associação direta; jahuḥ — abandonaram; guṇa­-mayam — constituídos dos modos da natureza material; deham — seus corpos; sadyaḥ — de imediato; prakṣīṇa — completamente anulado; bandhanāḥ — todo o seu cativeiro do karma.

Para aquelas gopīs que não puderam ir ver Kṛṣṇa, a intolerá­vel separação de seu amado causava tamanha agonia que quei­mava todo o karma impiedoso. Por meditarem nEle, elas sentiam Seu abraço, e o êxtase que experimentavam então esgotava sua piedade material. Embora o Senhor Kṛṣṇa seja a Alma Suprema, estas moças simplesmente pensavam nEle como seu amado e se associavam com Ele nesta atitude íntima. Dessa maneira, seu cativeiro kármico foi anulado, e elas abandonaram seus corpos materiais grosseiros.

SIGNIFICADO—Śrīla Viśvanātha Cakravartī elabora o seguinte comentário sobre este verso: “Nesta passagem, Śukadeva Gosvāmī fala de modo peculiar: ele apresenta o objeto íntimo que as gopīs alcançaram como se fosse uma ideia externa, ocultando assim sua verdadeira natureza daqueles que são pro­fanos, ao passo que, ao mesmo tempo, revela aos devotos íntimos e bem versados nas conclusões científicas do serviço devocional o sen­tido interno, que constitui seu verdadeiro significado. Desse modo, para quem é de fora, Śukadeva diz que Kṛṣṇa deu a liberação às gopīs, mas, aos ouvintes confidenciais, Śukadeva revela que, quando as gopīs experimentavam separação de seu amado, surgia nelas tanto uma infelicidade imensurável quanto uma imensurável felicidade e que elas conseguiram, aos poucos, sua meta desejada.

“Pode-se, portanto, compreender o verso da seguinte maneira: Por causa da intolerável separação de seu amado, as gopīs sentiam terrí­vel agonia, devido à qual elas faziam tremer todas as coisas inauspi­ciosas. Em outras palavras, ao ouvirem falar da extrema agonia das gopīs resultante da separação de seu amado, as pessoas em geral abandonam milhares de coisas inauspiciosas – coisas até mesmo tão terríveis como os fogos subterrâneos de milhões de universos ou o poderoso veneno engolido pelo senhor Śiva. Mais especificamente, aqueles que ouvem falar do amor das gopīs em separação abando­nam o terrível falso ego e, considerando-se derrotados, são abalados. Quando as gopīs meditaram no Senhor Acyuta, Ele Se manifestou e veio em pessoa até elas, que então experimentaram grande alegria abraçando Seu corpo, que estava repleto de transcendental amor por elas. As gopīs também experimentaram enorme júbilo exibindo ca­racterísticas pessoais e um sentido de identificação apropriado para tal amor. Esse júbilo fez com que toda a sua boa fortuna, tanto material como espiritual, parecesse desprezível em comparação.

“A dedução é que, quando outras pessoas veem como as gopīs ficaram felizes ao abraçar Kṛṣṇa quando Ele Se manifestou direta­mente diante delas, essas outras pessoas sentem que milhares de obje­tos ditos auspiciosos são insignificantes em comparação, incluídos aí todos os prazeres de gozo dos sentidos encontrados em milhões de universos e até o prazer suprassensorial da bem-aventurança espiri­tual (brahmānanda). Assim ouvindo falar sobre a aflição das gopīs e sobre a alegria que surgiu, respectivamente, de sua separação do Senhor Supremo e de sua união com Ele, qualquer um pode livrar­se de todas as reações de suas atividades passadas, tanto pecaminosas quanto piedosas. Os vaiṣṇavas decerto não acham que as reações pecaminosas e piedosas só podem ser destruídas pela vivência, pois, afinal, nem a separação do Senhor Supremo nem a associação direta com Ele estão na categoria do karma. Essa espécie de eliminação das reações kármicas acontece na fase de bhajana para aqueles que che­garam ao nível de anartha-nivṛtti.

“E assim as gopīs pensavam em Kṛṣṇa – o Paramātmā, ou su­premo objeto digno de todo amor – como seu amante. Mesmo que tal conceito seja comumente desprezível, as gopīs compreendiam Kṛṣṇa em um sentido ainda mais pleno do que Rukmiṇī e Suas outras rainhas, que pensavam nEle muito respeitosamente como seu mari­do. Prova-se que pensar no Senhor como amante é superior a pensar nEle como marido pelo fato de que o amor puro e incontido é superior ao amor domesticado. Confirmam esta ideia as seguintes palavras de Śrī Uddhava, yā dustyajaṁ sva-janam ārya-pathaṁ ca hitvā: ‘Estas damas de Vraja abandonaram suas famílias e seus avançados princípios religiosos, ainda que fazer isso seja muito difícil.’ (Śrīmad-Bhāgavatam 10.47.61)

“Em Seus passatempos na Terra, Kṛṣṇa muitas vezes converte as coisas mais baixas nas mais elevadas. Como disse Bhīṣma, o passatempo em que Kṛṣṇa age como quadrigário de Arjuna é ainda mais elevado do que os passatempos em que Ele agiu como poderoso rei dos reis, vijaya-ratha-kuṭumba ātta-totre/ dhṛta-haya-raśmini tac-chriyeskṣaṇīye: ‘Eu concentro minha mente no quadrigário de Arjuna que Se pôs de pé com um chicote em Sua mão direita e uma rédea em Sua mão esquerda, e que era muito cuidadoso em proteger a qua­driga de Arjuna de todos os modos.’ (Śrīmad-Bhāgavatam 1.9.39) Assim também, no aparecimento do Senhor como Kṛṣṇa, vemos que a normalmente inferior rasa conjugal torna-se melhor do que a atitude normalmente superior de śānta-rasa, bem como a atitude de ter um caso com um amante torna-se superior ao intercâmbio amoroso entre esposos legítimos, e insignificantes colares de guñjā, pasta de óxido vermelho e penas de pavão tornam-se melhores do que as mais excelentes joias.

“Mas talvez alguém objete que não é conveniente que o Senhor Supremo Se divirta com mulheres cujos corpos já foram desfrutados por outros homens. Esta objeção é respondida com as palavras iniciadas por jahuḥ. A palavra deham é usada aqui na forma do singular para indicar unidade de categoria, ainda que as gopīs sejam muitas. Algumas autoridades dizem que, pelo poder de Yogamāyā, os corpos destas gopīs desapareceram de um modo que ninguém notou, mas outras autoridades dizem que o corpo a que se refere neste contexto é o corpo inferior, composto dos modos da natureza material. Assim, pelo destaque do adjetivo guṇa-mayam, entende-se que, antes de ou­virem o som da flauta de Kṛṣṇa, os corpos das gopīs eram de duas espécies, material e espiritual, e, depois de ouvirem a flauta, elas abandonaram os corpos materiais, que seus maridos haviam desfrutado. Podemos analisar isso da seguinte maneira:

“Quando os devotos começam a buscar o serviço devocional de acordo com as instruções de um mestre espiritual autêntico, eles ocupam os ouvidos e outros sentidos em devoção pura, ouvindo falar do Senhor, cantando Suas glórias, lembrando-se dEle, oferecendo-Lhe reverências, dando-Lhe atenção pessoal e assim por diante. Dessa maneira, os devotos fazem das qualidades transcendentais do Senhor os objetos de seus sentidos, como o declarou o próprio Senhor, nirguṇo mad-apāśrayaḥ. (Śrīmad-Bhāgavatam 11.25.26) Deste modo, os corpos dos devotos transcendem os modos materiais. Todavia, às vezes os devotos podem aceitar como objetos de seus sentidos sons mundanos etc., e isso é material. Logo, o corpo do devoto pode ter dois aspectos, o transcendental e o material.

“Segundo o nível de serviço devocional de alguém, os aspectos transcendentais de seu corpo se destacam e os aspectos materiais diminuem. Essa transformação é descrita no seguinte verso do Bhāgavatam (11.2.42):

bhaktiḥ pareśānubhavo viraktir
anyatra caiṣa trika eka-kālaḥ
prapadyamānasya yathāśnataḥ syus
tuṣṭiḥ puṣṭiḥ kṣud-apāyo ’nu-ghāsam

‘A devoção, a experiência direta do Senhor Supremo, e o desapego de outras coisas – estas três ocorrem ao mesmo tempo para quem se abrigou na Suprema Personalidade de Deus, da mesma forma que o prazer, a nutrição e o alívio da fome vêm simultânea e crescente­mente, a cada mordida, para alguém que está comendo.’ Quando alguém alcança amor totalmente puro por Deus, as porções materiais do corpo desaparecem e o corpo se espiritualiza por completo. Não obstante, a fim de não perturbar as opiniões falsas dos ateus e a fim de proteger o caráter confidencial do serviço devocional, o Senhor Supremo em geral determina que Sua energia ilusória exiba a morte do corpo grosseiro. Um exemplo disso é o desaparecimento dos Yādavas durante a mauṣala-līlā.

“Algumas vezes, porém, para proclamar a excelência do bhakti­-yoga, Kṛṣṇa permite que um devoto regresse ao Supremo em seu próprio corpo, como no caso de Dhruva Mahārāja. Podemos citar uma evidência para este ponto do capítulo vinte e cinco do décimo primeiro canto, verso 32:

yeneme nirjitāḥ saumya
guṇā jīvena citta-jāḥ
bhakti-yogena man-niṣṭho
mad-bhāvāya prapadyate

‘Uma entidade viva que vence os modos da natureza material, que se manifestam da mente, pode dedicar-se a Mim [Kṛṣṇa] pelo processo do serviço devocional e assim alcançar amor puro por Mim.’ Nesta passagem, o Senhor afirma que a derrota e destruição daquilo que se compõe dos modos da natureza material só podem ser provocadas pelo processo do serviço devocional.

“Portanto, o que devemos entender a partir do presente verso do Bhāgavatam é que as gopīs que não puderam ir ver Kṛṣṇa tiveram seus inauspiciosos corpos materiais retirados ou queimados, enquanto seus auspiciosos corpos espirituais, longe de serem destruídos, apenas se destacaram ainda mais por causa do êxtase que as gopīs sentiram ao abraçar Kṛṣṇa em meditação. Portanto, seu cativeiro foi completa­mente destruído: pela ajuda de Yogamāyā, elas se livraram da igno­rância e também das proibições de seus maridos e de outros parentes.

“Não devemos cometer o erro de explicar esta queda dos corpos das gopīs como resultado de sua morte. Como o declara o próprio Senhor:

yā mayā krīḍatā rātryāṁ
vane ’smin vraja āsthitāḥ
alabdha-rāsāḥ kalyāṇyo
māpur mad-vīrya-cintayā

‘Algumas daquelas auspiciosíssimas gopīs não puderam vir ter coMi­go diretamente para desfrutar a dança da rāsa naquela noite nesta flo­resta de Vṛndāvana; ainda assim, elas obtiveram Minha associação através da lembrança de Meus passatempos transcendentais.’ (Śrīmad-Bhāgavatam 10.47.37) Ao usar a palavra kalyāṇyaḥ neste verso, o Senhor indica: ‘Ainda que essas gopīs quisessem abandonar seus corpos devido às proibições de seus maridos e ao tormento da separação de Mim, sua morte bem no início do auspiciosíssimo festival da dança da rāsa teria sido desagradável para Mim e, deste modo, inauspiciosa. Então, elas não mor­reram.’

“Outra prova de que as gopīs que foram impedidas de ir ver Kṛṣṇa não morreram fisicamente é dada por uma declaração de Śrī Śuka­deva mais adiante neste canto (10.47.38), tā ūcur uddhavaṁ prītās tat-sandeśāgata-smṛtīḥ: ‘Então, elas [as gopīs] responderam a Uddha­va sentindo-se satisfeitas porque a mensagem dEle fizera com que se lembrassem de Kṛṣṇa.’ Entendemos nesta passagem que as gopīs que falavam com Uddhava eram as que não tiveram a oportunidade de partici­par diretamente na dança da rāsa por terem ficado presas em casa. Conclui-se, portanto, que elas abandonaram seus corpos materiais sem morrer. Queimados pelo intenso calor da separação, seus corpos materiais abandonaram sua materialidade e tornaram-se puramente espirituais, assim como os corpos de grandes devotos, tais como Dhruva Mahārāja. Este é o significado de as gopīs ‘abandonarem seus corpos’.

“A seguinte analogia ilustra as posições das diversas gopīs: Atra­vés da observação de sete ou oito mangas maduras em uma mangueira, podemos verificar que todas as frutas daquela árvore estão maduras. Então, podemos colhê-las todas e levar para casa, onde, no devido tempo, os raios solares e outros agentes vão deixá-las com belo as­pecto, fragrantes e deliciosas – boas para serem oferecidas ao rei para o seu prazer. Quando chega a hora do rei fazer sua refeição, um servo inteligente pode escolher as frutas que estão no ponto para serem oferecidas a ele. Pela aparência das frutas, o servo pode saber quais estão maduras por dentro, mas ainda verdes por fora e, portanto, ainda impróprias para o rei. Através da aplicação de um processo especial de aquecimento, essas frutas restantes amadurecerão em dois ou três dias, momento no qual também estarão prontas para se oferecer ao rei.

“De modo semelhante, dentre as gopīs muni-cārī que nasceram em Gokula, aquelas que abandonaram por completo a materialidade de seus corpos e bem cedo na vida obtiveram corpos puramente espirituais foram capazes de permanecer intocadas por qualquer outro homem; assim, Yogamāyā permitiu-lhes juntarem-se às nitya-siddha e outras gopīs avançadas quando estas foram ao encontro de Kṛṣṇa. “Outras gopīs muni-cārī ainda retiveram alguma ligação com o corpo material externo, mas até elas, depois de serem queimadas pelo calor da saudade de Śrī Kṛṣṇa, abandonaram a materialidade de seus corpos e assumiram corpos perfeitamente transcendentais, purificados de todo vestígio de contato com outros homens. Na noite da dança da rāsa, Yogamāyā mandou algumas dessas gopīs saírem atrás da­quelas que já haviam saído; outras, que Yogamāyā via terem ainda uma pequena quantidade de contaminação, ela manteve para trás para purificá-las mais com o calor da separação e, então, mandou-as sair em alguma outra noite.

“Depois de desfrutarem os prazeres da dança da rāsa e outros passatempos com Kṛṣṇa, as gopīs muni-cārī que haviam participado voltaram para casa quando a noite acabou, como fizeram as nitya-siddha e outras gopīs avançadas. Mas agora Yogamāyā protegeu aquelas gopīs muni-cārī da associação mundana com seus maridos; em outras palavras, essas gopīs não tinham nenhum apego egoísta a marido, filhos etc. Como essas gopīs estavam imersas por completo no grande oceano de amor por Kṛṣṇa, seus seios secaram-se e elas não podiam amamentar seus bebês, e, a seus familiares, elas pareciam assombradas por fantasmas. Em suma, não é impróprio que as gopīs que antes estavam em associação material participassem da dança da rāsa.

“Algumas autoridades, contudo, sustentam que as gopīs que foram retidas em casa não tinham filhos. Segundo essas autoridades, sempre que apare­cem palavras como apatya (“filhos”) nos versos que ainda estão por vir, essas palavras referem-se a filhos de co-esposas, a filhos adotivos ou a sobrinhos e sobrinhas.”

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