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VERSO 37

niṣkiñcano nanu bhavān na yato ’sti kiñcid
yasmai baliṁ bali-bhujo ’pi haranty ajādyāḥ
na tvā vidanty asu-tṛpo ’ntakam āḍhyatāndhāḥ
preṣṭho bhavān bali-bhujām api te ’pi tubhyam

nikiñcana — sem posses; nanu — de fato; bhavān — Tu; na — não; yata — além do qual; asti — há; kiñcit — algo; yasmai — a quem; balim — tributo; bali — do tributo; bhuja — os desfrutadores; api — mesmo; haranti — carregam; aja-ādyā — encabeçados por Brahmā; na — não; tvā — Te; vidanti — conhecem; asu-tpa — pessoas satisfeitas no corpo; antakam — como a morte; āhyatā — por sua condição de riqueza; andhā — cegados; preṣṭha — o mais querido; bhavān — Tu; bali-bhujām — para os grandes desfrutadores de tributo; api — mesmo; te — eles; api — também; tubhyam — (são queridos) a Ti.

Nada possuis porque nada existe além de Ti. Até mesmo os grandes desfrutadores de tributo – Brahmā e outros semideuses – pagam tributo a Ti. Aqueles que estão cegos devido à sua riqueza e absortos em satisfazer os sentidos não Te reconhecem sob a forma da morte. Para os deuses, os desfrutadores de tributo, no entanto, és o mais querido, assim como eles o são para Ti.

SIGNIFICADO—Aqui, Śrīmatī Rukmiṇī-devī responde ao que disse o Senhor Kṛṣṇa no verso 14:

niṣkiñcanā vayaṁ śaśvan
niṣkiñcana-jana-priyāḥ
tasmāt prāyeṇa na hy āḍhyā
māṁ bhajanti su-madhyame

“Não temos bens materiais e temos a benquerença daqueles que igualmente nada possuem. Portanto, ó dama esbelta, é muito difícil que os ricos Me adorem.”

A rainha Rukmiṇī inicia suas palavras dizendo nikiñcano nanu: “Tu és de fato nikiñcana.” A palavra kiñcana significa “algo”, e o prefixo nir — ou, como ele aparece aqui, ni — indica negação. Dessa maneira, no sentido comum, nikiñcana quer dizer “quem não possui algo”, ou, em outras palavras, “quem nada possui”.

No presente verso, entretanto, a rainha Rukmiṇī afirma que o Senhor Kṛṣṇa “nada possui” não porque Ele seja um indigente, mas porque Ele mesmo é tudo. Em outras palavras, uma vez que Kṛṣṇa é a Verdade Absoluta, tudo o que existe está dentro dEle. Não há uma segunda coisa, algo fora da existência do Senhor, para Ele possuir. Por exemplo, um homem pode possuir uma casa, ou um carro, ou um filho ou dinheiro, mas essas coisas não se tornam o homem: elas existem fora dele. Dizemos que ele as possui apenas no sentido de ter controle sobre elas. Mas o Senhor não apenas controla Sua criação: Sua criação, na realidade, existe dentro dEle. Logo, nada existe fora dEle para Ele poder possuir do modo como possuímos objetos externos.

Os ācāryas explicam nikiñcana da seguinte maneira: Afirmar que alguém possui algo implica dizer que ele não possui tudo.

Em outras palavras, se dizemos que um homem possui alguma propriedade, subentendemos que ele não possui toda propriedade, mas sim alguma propriedade específica. Um dicionário clássico define a palavra “algo” como “um certo número, quantidade etc. indefinido ou não especificado, ao mesmo tempo que distinto do resto”. A palavra sânscrita kiñcana transmite esse sentido de uma quantidade parcial do total. Assim, o Senhor Kṛṣṇa é chamado nikiñcana para refutar a ideia de que Ele possua apenas certa quantidade de beleza, fama, riqueza, inteligência e outras opulências. Em vez disso, Ele possui beleza infinita, inteligência infinita, riqueza infinita e assim por diante. Isso é assim porque Ele é a Verdade Absoluta.

Śrīla Prabhupāda começa sua introdução ao primeiro canto, primeiro volume, do Śrīmad-Bhāgavatam com a seguinte declaração, que é muito pertinente à nossa presente discussão: “O conceito de Deus e o conceito da Verdade Absoluta não estão no mesmo nível. O Śrīmad-Bhāgavatam tem como objetivo a Verdade Absoluta. O conceito de Deus indica o controlador, ao passo que o conceito da Verdade Absoluta indica o summum bonum, ou a fonte última de todas as energias.” Aqui, Śrīla Prabhupāda toca em um ponto filosófico fundamental. Deus é comumente definido como “o ser supremo”, e o dicionário define supremo como (1) o mais elevado em posição, poder, autoridade etc.; (2) o mais elevado em qualidade, empreendimento, desempenho etc.; (3) o mais elevado em grau, e (4) final, último. Nenhuma destas definições dá uma indicação adequada da existência absoluta.

Por exemplo, podemos dizer que determinado americano é supremamente rico no sentido de que ele é mais rico do que qualquer outro americano, ou podemos falar do Supremo Tribunal Federal como o mais elevado tribunal do país, embora ele decerto não tenha autoridade absoluta em todas as questões sociais e políticas, pois divide sua autoridade nesses campos com o legislativo e o presidente. Em outras palavras, o termo “supremo” indica o melhor em uma hierarquia, de modo que se pode entender o ser supremo meramente como o melhor ou maior de todos os seres, mas não como a fonte de todos os outros seres e, de fato, de tudo o que existe. Por isso, Śrīla Prabhupāda especificamente salienta que o conceito da Verdade Absoluta, Kṛṣṇa, é mais elevado do que o conceito de um ser supremo, e esse ponto é essencial para uma clara compreensão da filosofia vaiṣṇava.

O Senhor Kṛṣṇa não é um mero ser supremo: Ele é o ser absoluto, e é justamente a partir deste ponto que Sua esposa está falando. Portanto, a palavra nikiñcana indica não que Kṛṣṇa não possui nenhuma opulência, senão que possui toda opulência. Neste sentido é que ela aceita a definição que Kṛṣṇa apresenta de Si mesmo como nikiñcana.

No verso 14, o Senhor Kṛṣṇa também afirmou que nikiñcana-jana-priyā: “Sou querido por aqueles que nada têm.” Aqui, todavia, a rainha Rukmiṇī ressalta que os semideuses, as almas mais ricas do universo, fazem oferendas regulares ao Senhor Supremo. Podemos pressupor que os semideuses, sendo os representantes nomeados do Senhor, sabem que tudo Lhe pertence no sentido de que tudo faz parte dEle, como se explicou acima. Portanto, a declaração nikiñcana-jana-priyā é correta no sentido de que, como nada existe exceto o Senhor e Suas potências, não importa quão ricos pareçam ser os adoradores do Senhor, eles de fato não estão Lhe oferecendo nada senão Sua própria energia, como um ato de amor. Exemplifica-se a mesma ideia quando alguém adora o rio Ganges oferecendo-lhe a água do Ganges, ou quando um filho consegue dinheiro do pai no dia do aniversário deste e compra-lhe um presente. O pai está pagando seu próprio presente, mas o que deveras lhe interessa é o amor do filho. Analogamente, o Senhor Supremo manifesta o cosmos, após o que as almas condicionadas reúnem para si vários objetos da criação do Senhor. As almas piedosas oferecem alguns dos melhores objetos de sua coleta de volta ao Senhor como sacrifício e, dessa forma, purificam-se. Como todo o cosmos e tudo o que nele existe não passa da energia do Senhor, podemos dizer que aqueles que adoram o Senhor nada possuem.

Em termos mais convencionais, aqueles que têm orgulho de sua grande riqueza não se prostram diante de Deus. A rainha Rukmiṇī também menciona esses tolos. Satisfeitos com seus corpos temporários, eles não compreendem o divino poder da morte, que os espreita. Os semideuses, porém, que são, sem termos de comparação, os seres vivos mais ricos, oferecem com regularidade sacrifícios ao Senhor Supremo, daí o Senhor ser muito querido a eles, como aqui se afirma.

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