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CAPÍTULO OITENTA E OITO

O Senhor Śiva É Salvo de Vṛkāsura

Este capítulo descreve como os devotos de Viṣṇu obtêm a liberação, enquanto os devotos de outras deidades obtêm opulências materiais.

O Senhor Viṣṇu possui todas as opulências, ao passo que o senhor Śiva vive em pobreza. Todavia, os devotos de Viṣṇu costumam ser pobres, ao passo que os de Śiva conseguem riquezas abundantes. Quando Mahārāja Parīkṣit pediu a Śukadeva Gosvāmī que explicasse esse fato desconcertante, o sábio respondeu o seguinte: “O senhor Śiva manifesta-se como o falso ego em três variedades, de acordo com os três modos da natureza. A partir desse falso ego, surgem os cinco ele­mentos físicos e as outras transformações da natureza material, totalizando dezesseis. Quando adora sua manifestação em qualquer um desses elementos, um devoto do senhor Śiva obtém toda sorte de opulências desfrutáveis correspondentes. Mas porque o Senhor Śrī Hari é transcendental aos modos da natureza material, Seus devotos também se tornam transcendentais.”

No final da execução de seus sacrifícios Aśvamedha, o rei Yudhiṣṭhira fez esta mesma pergunta ao Senhor Kṛṣṇa, que respondeu: “Quando sinto compaixão especial por alguém, Eu o privo gradualmente de suas riquezas. Então, os filhos, esposa e outros parentes do homem empobrecido, todos o abandonam. Quando ele tenta de novo adquirir riquezas para conquistar a estima de sua família, Eu miseri­cordiosamente o frustro, de modo que ele se enoja do trabalho frui­tivo e faz amizade com Meus devotos. Nesse momento, Eu lhe concedo Minha graça extraordinária; ele, então, pode livrar-se do cativeiro da vida material e alcançar o reino de Deus, Vaikuṇṭha.”

O senhor Brahmā, o Senhor Viṣṇu e o senhor Śiva podem con­ceder ou negar favores, mas, enquanto o senhor Brahmā e o senhor Śiva ficam satisfeitos ou aborrecidos muito depressa, o Senhor Viṣṇu não é assim. A esse respeito, a literatura védica narra o seguinte re­lato: Certa vez, o demônio Vṛka perguntou a Nārada que deus se satisfazia mais depressa, e Nārada respondeu que era o senhor Śiva. Então, Vṛkāsura foi para o lugar sagrado de Kedāranātha e passou a adorar o senhor Śiva oferecendo pedaços de sua própria carne como oblações no fogo. Śiva, porém, não apareceu. Por isso, Vṛka decidiu cometer suicídio decepando a própria cabeça. Bem nesse momento crítico, o senhor Śiva apareceu a partir do fogo de sacrifício e o deteve, oferecendo ao demônio qualquer bênção que ele escolhesse. Vṛka disse: “Que a morte venha para qualquer um cuja cabeça eu tocar com minha mão.” O senhor Śiva foi obrigado a satisfazer esse pedido, e logo o perverso Vṛka tentou testar a bênção pondo sua mão na cabeça do senhor. Aterrorizado, Śiva fugiu para salvar sua vida, correndo até o céu e os limites do mundo mortal. Por fim, o senhor chegou ao pla­neta Śvetadvīpa, onde reside o Senhor Viṣṇu. Vendo de longe o desesperado Śiva, o Senhor disfarçou-Se como um jovem estudante e apareceu diante de Vṛkāsura. Com uma voz suave, dirigiu-Se ao demô­nio: “Meu querido Vṛka, por favor, descansa um pouco e conta-Nos o que pretendes fazer.” Vṛka ficou encantado com as palavras do Senhor e revelou tudo o que acontecera. O Senhor disse: “Desde que foi amaldiçoado pelo Prajāpati Dakṣa, o senhor Śiva tornou-se como um duende carnívoro. Portanto, não deves confiar na palavra dele. É melhor testar a bênção dele pondo tua mão em tua própria cabeça.” Confundido por essas palavras, o tolo demônio tocou a própria ca­beça, que imediatamente se despedaçou e caiu ao chão. Do céu, ou­viram-se brados de “Vitória!”, “Reverências!” e “Magnífico!”, e os semideuses, sábios, antepassados celestiais e Gandharvas, todos congratularam o Senhor Supremo derramando chuvas de flores sobre Ele.

VERSO 1: O rei Parīkṣit disse: Aqueles semideuses, demônios e seres humanos que adoram o senhor Śiva, um renunciante estrito, em geral desfrutam de riquezas e gozo dos sentidos, ao passo que os adoradores do Senhor Supremo, Hari, o esposo da deusa da fortuna, não.

VERSO 2: Queremos entender corretamente este assunto, que nos deixa muito perplexos. De fato, os resultados alcançados pelos adoradores desses dois senhores de índoles opostas são contrários ao que seria de esperar.

VERSO 3: Śrī Śukadeva Gosvāmī disse: O senhor Śiva está sempre unido com sua energia pessoal, a natureza material. Manifestando-se em três aspectos em resposta aos apelos dos três modos da natu­reza, ele incorpora o princípio tríplice do ego material em bondade, paixão e ignorância.

VERSO 4: Os dezesseis elementos se desenvolveram como transformações daquele falso ego. Quando um devoto do senhor Śiva adora sua manifestação em algum desses elementos, o devoto obtém todas as espécies de opulências agradáveis correspondentes.

VERSO 5: O Senhor Hari, porém, não tem ligação alguma com os modos materiais. Ele é a Suprema Personalidade de Deus, a testemunha eterna de tudo, que é transcendental à natureza material. Quem O adora torna-se igualmente livre dos modos materiais.

VERSO 6: Teu avô, o rei Yudhiṣṭhira, depois de completar seus sacrifícios Aśvamedha, fez ao Senhor Acyuta essa mesma pergunta enquan­to ouvia a explicação do Senhor sobre os princípios religiosos.

VERSO 7: Essa pergunta agradou a Śrī Kṛṣṇa, o Senhor e mestre do rei, que aparecera na família de Yadu com a finalidade de conceder o mais elevado bem a todos os homens. O Senhor respondeu o seguinte enquanto o rei ouvia avidamente.

VERSO 8: A Personalidade de Deus disse: Se concedo favor especial a alguém, Eu o privo aos poucos de sua riqueza. Então, os parentes e amigos de tal homem empobrecido o abandonam. Desse modo, ele sofre uma aflição atrás da outra.

VERSO 9: Quando ele se frustra em suas tentativas de ganhar dinheiro e, em vez disso, faz amizade com Meus devotos, Eu lhe concedo Minha misericórdia especial.

VERSO 10: Alguém que assim se tornou sóbrio realiza plenamente o Absoluto como a verdade máxima, a manifestação mais sutil e perfeita do espírito, a existência transcendental sem fim. Compreendendo dessa maneira que a Verdade Suprema é o fundamento de sua própria existência, ele se livra do ciclo da vida material.

VERSO 11: Porque sou difícil de adorar, as pessoas em geral Me evitam e, em vez disso, adoram outras deidades, que se satisfazem rapidamente. Ao receberem opulências régias dessas deidades, elas ficam arrogantes, inebriadas pelo orgulho e negligentes no cumprimento de seus deveres. E ousam ofender até os semideuses que lhes concederam bênçãos.

VERSO 12: Śukadeva Gosvāmī disse: O senhor Brahmā, o Senhor Viṣṇu, o senhor Śiva e outros são capazes de amaldiçoar ou abençoar alguém. O senhor Śiva e o senhor Brahmā muito rapidamente amaldiçoam ou concedem bênçãos, meu querido rei, mas o infalível Senhor Supremo não é assim.

VERSO 13: A esse respeito, conta-se uma antiga narração histórica sobre como o senhor do monte Kailāsa foi posto em perigo por ofere­cer uma bênção ao demônio Vṛka.

VERSO 14: O demônio chamado Vṛka, filho de Śakuni, certa vez encon­trou-se na estrada com Nārada. O sujeito perverso perguntou-lhe qual dos três principais deuses era possível satisfazer mais depressa.

VERSO 15: Disse-lhe Nārada: Adora o senhor Śiva e logo alcançarás o sucesso. Ele se satisfaz depressa ao ver as mínimas boas qualidades de seu adorador – e logo se zanga ao ver seu menor erro.

VERSO 16: Ele ficou satisfeito com o Rāvaṇa de dez cabeças, e também com Bāṇa, quando estes cantaram suas glórias como bardos em uma corte real. O senhor Śiva, então, concedeu a cada um deles poder sem precedentes, mas, em ambos os casos, ele foi, em con­sequência disso, assediado por grande dificuldade.

VERSO 17: [Śukadeva Gosvāmī continuou:] Assim aconselhado, o demô­nio, com a finalidade de adorar o senhor Śiva, dirigiu-se a Kedāranātha e lá passou a tirar pedaços de carne de seu próprio corpo e oferecê-los como oblações no fogo sagrado, que é a boca do senhor Śiva.

VERSOS 18-19: Vṛkāsura ficou frustrado por não conseguir ter a audiência com o senhor. Por fim, no sétimo dia, depois de molhar o cabe­lo nas águas sagradas de Kedāranātha e deixá-lo molhado, ele apanhou uma machadinha e preparou-se para decepar sua cabe­ça. Porém, naquele exato momento, o misericordiosíssimo senhor Śiva ergueu-se do fogo do sacrifício, parecendo o próprio deus do fogo, e agarrou ambos os braços do demônio para impedi-lo de se matar, assim como nós o faríamos. Ao toque do senhor Śiva, Vṛkāsura recobrou-se.

VERSO 20: O senhor Śiva disse-lhe: Meu amigo, para! Por favor, para! Pede-me qualquer coisa que desejares, e eu te concederei essa bênção. Que lástima! Submeteste teu corpo a um grande tormento sem razão alguma, pois eu me satisfaço com uma simples oferenda de água daqueles que buscam refúgio em mim.

VERSO 21: [Śukadeva Gosvāmī continuou:] A bênção que o pecador Vṛka pediu ao senhor aterrorizaria todos os seres vivos. Vṛka disse: “Que a morte venha a toda pessoa cuja cabeça eu tocar com minha mão.”

VERSO 22: Ao ouvir isso, o senhor Rudra pareceu um tanto perturbado. Não obstante, ó descendente de Bharata, ele vibrou o om para indicar sua aquiescência e concedeu a bênção a Vṛka com um sorriso irônico, como se estivesse dando leite a uma cobra venenosa.

VERSO 23: Para testar a bênção do senhor Śambhu, o demônio tentou colocar a mão na cabeça do senhor. Assim, Śiva se amedrontou pelo que ele mesmo fizera.

VERSO 24: Enquanto o demônio o perseguia, o senhor Śiva fugiu logo de sua morada no Norte, tremendo de terror. Ele correu até os li­mites da Terra e do céu e chegou até os confins do universo.

VERSOS 25-26: Sem saberem como anular a bênção, os grandes semideuses nada podiam fazer senão ficar em silêncio. O senhor Śiva, então, chegou ao luminoso reino de Vaikuṇṭha, além de toda a escuri­dão, onde o Supremo Senhor Nārāyaṇa Se manifesta. Aquele reino é o destino dos renunciantes que alcançaram a paz e abandonaram toda violência contra outras criaturas. Chegando lá, não se regressa jamais.

VERSOS 27-28: O Senhor Supremo, que alivia a aflição de Seus devotos, havia visto de longe que o senhor Śiva estava em perigo. Por isso, mediante Sua potência mística yogamāyā, Ele assumiu a forma de um estudante brahmacārī, com cinto, pele de veado, vara e contas de rezar característicos, e apareceu diante de Vṛkāsura. A refulgência do Senhor reluzia como o brilho do fogo. Levando grama kuśa na mão, Ele saudou humildemente o demônio.

VERSO 29: O Senhor Supremo disse: Meu querido filho de Śakuni, pare­ces cansado. Por que vieste até tão longe? Por favor, descansa um minuto. Afinal, é o corpo da pessoa que satisfaz todos os seus desejos.

VERSO 30: Ó poderoso, se somos qualificados para ouvi-lo, por favor, dize­-Nos o que pretendes fazer. Em geral, a pessoa realiza seus propósitos aceitando a ajuda de outros.

VERSO 31: Śukadeva Gosvāmī disse: Interrogado assim pela Personalidade de Deus em uma linguagem que caía sobre ele como doce néctar, Vṛka sentiu-se aliviado de sua fadiga. Ele descreveu ao Senhor tudo o que havia feito.

VERSO 32: O Senhor Supremo disse: Se for este o caso, não podemos acreditar no que Śiva diz. Śiva é o mesmo senhor dos pretas e piśācas que Dakṣa amaldiçoou a se tornar como um duende carnívoro.

VERSO 33: Ó melhor dos demônios, se tens alguma fé nele por ser ele o mestre espiritual do universo, então, sem demora, coloca tua mão em tua própria cabeça e vê o que acontece.

VERSO 34: Se as palavras do senhor Śambhu de algum modo forem fal­sas, ó melhor dos demônios, mata o mentiroso para que ele nunca mais possa mentir.

VERSO 35: [Śukadeva Gosvāmī continuou:] Assim, desnorteado pelas palavras encantadoras e ardilosas da Personalidade de Deus, o tolo Vṛka, sem se dar conta do que estava fazendo, colocou sua mão em sua própria cabeça.

VERSO 36: No mesmo instante, sua cabeça despedaçou-se como se atin­gida por um raio, e o demônio caiu morto. Do céu, ouviram-se brados de “Vitória!”, “Reverências!” e “Magnífico!”

VERSO 37: Sábios celestiais, pitas e gandharvas lançaram chuvas de flores para celebrar o extermínio do pecaminoso Vṛkāsura. Agora, o senhor Śiva estava fora de perigo.

VERSOS 38-39: Então, a Suprema Personalidade de Deus disse ao senhor Giri­śa, que agora estava fora de perigo: “Vê bem, ó Mahādeva, Meu senhor, como este homem perverso foi morto por suas próprias reações pecaminosas. De fato, que ser vivo pode esperar boa for­tuna após ofender santos elevados, e o que se dizer de ofender o senhor e mestre espiritual do universo?”

VERSO 40: O Senhor Hari é a Verdade Absoluta diretamente manifesta, a Alma Suprema e o oceano ilimitado de inconcebíveis energias. Qualquer um que recitar ou ouvir este passatempo sobre como Ele salvou o senhor Śiva ficará livre de todos os inimigos e da repetição de nascimentos e mortes.

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