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CAPÍTULO QUATRO

As Atrocidades do Rei Kaṁsa

Este capítulo descreve como Kaṁsa, seguindo os conselhos de seus amigos demoníacos, considerava a perseguição de pequenas crianças como uma atividade muito diplomática.

Depois que Vasudeva se prendeu com algemas de ferro e ficou como antes, todas as portas da prisão se fecharam por influência de Yogamāyā, que então começou a chorar como uma criança recém­-nascida. Esse choro despertou os porteiros, que imediatamente in­formaram Kaṁsa de que uma criança nascera de Devakī. Ao ouvir essa notícia, Kaṁsa apareceu com grande ímpeto na sala de mater­nidade e, apesar das súplicas de Devakī para que poupasse a criança, o demônio arrancou à força a criança das mãos de Devakī e a atirou contra uma pedra. Infelizmente para Kaṁsa, entretanto, a criança recém-nascida escapuliu de suas mãos, elevou-se acima de sua cabe­ça e apareceu como a forma de Durgā de oito braços. Então, Durgā disse a Kaṁsa: “O inimigo que aguardas nasceu em algum outro lugar. Logo, teu plano que consiste em perseguir todas as crianças será inútil.”

De acordo com a profecia, o oitavo filho de Devakī mataria Kaṁsa, de modo que, ao ver que a oitava criança era uma menina e ao tomar conhecimento de que seu suposto inimigo nascera em outro lugar, Kaṁsa ficou espantado. Ele decidiu libertar Devakī e Vasudeva, e admitiu diante deles que errara ao cometer tantas atrocidades. Caindo aos pés de Devakī e Vasudeva, pediu-lhes perdão e tentou convencê-los de que, como os eventos que aconteceram foram obra do destino, eles não deveriam ficar infelizes com o fato de ele ter matado tantos filhos seus. Devakī e Vasudeva, sendo por natureza muito piedosos, imediatamente perdoaram as atrocidades de Kaṁsa, e Kaṁsa, após ver que sua irmã e seu cunhado estavam bastante felizes, regressou à sua casa.

Passada a noite, entretanto, Kaṁsa convocou seus ministros e in­formou-lhes tudo o que acontecera. Os ministros, que eram todos demônios, aconselharam a Kaṁsa que, como seu inimigo já nascera em algum outro lugar, todas as crianças que nos últimos dez dias haviam nascido nas vilas localizadas dentro do reino de Kaṁsa deveriam ser mortas. Embora os semideuses sempre temessem Kaṁsa, eles não deveriam ser tratados com muita lenidade; uma vez que eles eram inimigos, Kaṁsa deveria envidar todos os esforços para acabar com a existência deles. Continuando, os ministros demoníacos aconselharam que Kaṁsa e os demônios continuassem sua ini­mizade com Viṣṇu porque Viṣṇu é a pessoa original entre todos os semideuses. Os brāhmaṇas, as vacas, os Vedas, a austeridade, a ve­racidade, o controle dos sentidos e da mente, a fidelidade e a mise­ricórdia são algumas das diferentes partes do corpo de Viṣṇu, que é a origem de todos os semideuses, incluindo o senhor Brahmā e o senhor Śiva. Portanto, os ministros aconselharam que os semideu­ses, as pessoas santas, as vacas e os brāhmaṇas deveriam ser siste­maticamente perseguidos. Recebendo este forte conselho de seus amigos, os ministros demoníacos, Kaṁsa aprovou suas instruções e considerou benéfico invejar os brāhmaṇas. Seguindo as ordens de Kaṁsa, portanto, os demônios passaram a cometer suas atrocidades em toda a Vrajabhūmi.

VERSO 1: Śukadeva Gosvāmī prosseguiu: Meu querido rei Parīkṣit, as portas dentro e fora da casa ficaram fechadas como antes. Em seguida, os habitantes da casa, especialmente os vigias, ouviram o choro da criança recém-nascida e, por isso, despertaram em seus leitos.

VERSO 2: Em seguida, todos os vigias muito rapidamente foram ter com o rei Kaṁsa, o governador da dinastia Bhoja, e apresentaram a notícia do nascimento do bebê de Devakī. Kaṁsa, que com muita ansiedade esperava essa notícia, agiu de imediato.

VERSO 3: Kaṁsa imediatamente levantou-se da cama, pensando: “Eis Kāla, o supremo fator tempo, que nasceu para matar-me!” Sentindo essa opressão, Kaṁsa, ainda com o cabelo despenteado, logo chegou ao lugar onde a criança nascera.

VERSO 4: Desamparada, Devakī apelou a Kaṁsa de maneira muito comovente: Meu querido irmão, desejo-te toda a boa fortuna. Não mates esta menininha. Ela será tua nora. Na verdade, não é nada condizente matares uma mulher.

VERSO 5: Meu querido irmão, por influência do destino, já mataste muitos bebês, cada um deles tão brilhante e belo como o fogo. Mas, por favor, poupa esta filha. Deixa-me recebê-la como um presente teu.

VERSO 6: Meu senhor, meu irmão, sou muito pobre, pois fiquei sem meus filhos, mas, mesmo assim, sou tua irmã caçula, e, portanto, quão digno seria que me desses de presente esta última criança.

VERSO 7: Śukadeva Gosvāmī continuou: Ternamente abraçando sua filha e chorando, Devakī implorou a Kaṁsa a criança, mas ele era tão cruel que a castigou e arrancou a criança de suas mãos.

VERSO 8: Tendo rompido todas as relações com sua irmã devido ao intenso egoísmo, Kaṁsa, que estava de joelhos dobrados e sentado sobre seus tornozelos, agarrou pelas pernas a criança recém-nascida e tentou arre­messá-la contra uma pedra.

VERSO 9: A criança, Yogamāyā-devī, a irmã caçula do Senhor Viṣṇu, esca­puliu das mãos de Kaṁsa e, tendo subido, apareceu no céu como Devī, a deusa Durgā, com oito braços e inteiramente equipada com armas.

VERSOS 10-11: A deusa Durgā estava decorada com guirlanda de flores, untada com polpa de sândalo e vestida com roupas esmeradas e adornos feitos de joias preciosas. Portando em suas mãos um arco, um tri­dente, flechas, um escudo, uma espada, um búzio, um disco e uma maça, e sendo louvada pelos seres celestiais, como as Apsarās, os Kinnaras, os Uragas, os Siddhas, os Cāraṇas e os Gandharvas, que a adoravam com toda classe de presentes, ela falou as seguintes palavras.

VERSO 12: Ó Kaṁsa, ó grande tolo, que adiantará matar-me? A Suprema Perso­nalidade de Deus, que, desde o princípio, tem sido teu inimigo e que decerto te matará, já nasceu em outra parte. Portanto, não mates desnecessariamente outras crianças.

VERSO 13: Após dirigir a Kaṁsa essas palavras, a deusa Durgā, Yogamāyā, apareceu em diferentes lugares, tais como Vārāṇasī, e tornou-se conhe­cida por diferentes nomes, como Annapūrṇā, Durgā, Kālī e Bhadrā.

VERSO 14: Após ouvir as palavras da deusa Durgā, Kaṁsa ficou espantado. Assim, aproximou-se de sua irmã Devakī e de seu cunhado Vasudeva, libertou-os imediatamente de suas algemas, e muito humildemente falou o seguinte.

VERSO 15: Ai de mim, minha irmã! Ai de mim, meu cunhado! Na verdade, sou tão pecaminoso que, exatamente como um canibal [Rākṣasa] que come seu próprio filho, matei muitos filhos nascidos de vós.

VERSO 16: Sendo inclemente e cruel, preteri todos os meus parentes e amigos. Portanto, igual a alguém que matou um brāhmaṇa, não sei a que planeta irei, seja após a morte, seja enquanto estiver respirando.

VERSO 17: Oh! Não apenas os seres humanos, mas às vezes até mesmo a providência mente. E sou tão pecaminoso que acreditei no presságio da providência e matei tantos filhos da minha irmã.

VERSO 18: Ó grandes almas, vossos filhos sofreram seu próprio infortúnio. Portanto, por favor, não vos lamenteis por eles. Todas as entidades vivas estão sob o controle do Supremo e não podem viver juntas para sempre.

VERSO 19: Neste mundo, podemos ver que os potes, bonecos e outros produ­tos feitos de barro aparecem, quebram-se e, então, desaparecem, mis­turando-se com a terra. Igualmente, os corpos de todas as entidades vivas condicionadas são aniquilados, mas as entidades vivas, como a própria terra, são imutáveis e nunca são aniquiladas [na hanyate hanyamāne śarīre].

VERSO 20: Aquele que não entende a posição constitucional do corpo e da alma [ātmā] torna-se demasiadamente apegado ao conceito de vida corpórea. Em consequência disso, devido ao apego ao corpo e a seus subprodutos, ele se sente afetado pelo convívio com sua famí­lia, sociedade e nação, dos quais ele não deseja separar-se. Enquanto isso continuar, ele dará andamento à sua vida material. [Caso con­trário, ele é liberado.]

VERSO 21: Minha querida irmã Devakī, desejo-te toda boa fortuna. Sob o controle da providência, todos sofrem e desfrutam os resultados de seu próprio trabalho. Portanto, embora teus filhos desafortuna­damente tenham sido mortos por mim, por favor, não te lamentes por eles.

VERSO 22: No conceito de vida corpórea, a pessoa permanece nas trevas, sem auto­rrealização, pensando: “Estou sendo morto” ou “Matei meus inimi­gos”. Enquanto pessoas tolas considerarem o eu como o matador ou como o morto, elas continuarão responsáveis pelas obrigações materiais e, consequentemente, sofrerão as reações da felicidade e infelicidade.

VERSO 23: Kaṁsa suplicou: “Minha querida irmã e meu querido cunhado, visto que sois pessoas santas, por favor, tende misericórdia de alguém como eu, cujo coração é tão pobre. Por favor, perdoai minhas atro­cidades.” Tendo falado essas palavras, Kaṁsa caiu aos pés de Vasu­deva e Devakī, com os olhos cheios de lágrimas de arrependimento.

VERSO 24: Acreditando plenamente nas palavras da deusa Durgā, Kaṁsa manifestou sua afeição familiar por Devakī e Vasudeva, libertando-os imediatamente das algemas de ferro.

VERSO 25: Ao ver seu irmão deveras arrependido enquanto explicava os acon­tecimentos fatídicos, Devakī livrou-se de toda a ira. Igualmente, Vasudeva também se viu liberto da ira. Sorrindo, ele falou a Kaṁsa as seguintes palavras.

VERSO 26: Ó grande personalidade Kaṁsa, apenas por influência da ignorân­cia alguém pode aceitar o corpo material e o ego corpóreo. O que disseste sobre esta filosofia está correto. As pessoas no conceito de vida corpórea, desprovidas de autorrealização, usam termos distinti­vos, tais como “Isto é meu” e “Isso pertence a outrem”.

VERSO 27: As pessoas que fazem essa diferenciação são imbuídas de qualida­des materiais – lamentação, júbilo, medo, inveja, cobiça, ilusão e loucura. Elas são influenciadas pela causa imediata, a qual se esforçam por anular, porque não conhecem a suprema causa remota, a Personalidade de Deus.

VERSO 28: Śukadeva Gosvāmī prosseguiu: Tendo então ouvido as palavras puras de Devakī e Vasudeva, que estavam muito apaziguados, Kaṁsa se sentiu satisfeito e, com a permissão deles, entrou em seu próprio lar.

VERSO 29: Passada a noite, Kaṁsa convocou seus ministros e informou-lhes tudo o que fora dito por Yogamāyā [a qual revelara que aquele que deveria matar Kaṁsa já nascera em algum outro lugar].

VERSO 30: Após ouvirem a afirmação de seu mestre, os asuras invejosos, que eram inimigos dos semideuses e não procediam com muita habilidade, deram o seguinte conselho a Kaṁsa.

VERSO 31: Se isso é verdade, ó rei da dinastia Bhoja, a partir de hoje mata­remos todas as crianças em todas as vilas, cidades e campos de pastagem nascidas dentro dos últimos dez dias ou um pouco antes desse período.

VERSO 32: Os semideuses sempre temem o som da corda do teu arco. Eles estão em constante ansiedade, com medo de lutar. Portanto, que iniciativa eles podem tomar para prejudicar-te?

VERSO 33: Enquanto eram trespassados por tuas flechas, que disparaste em todas as direções, alguns deles, feridos pela saraivada de flechas, mas desejosos de viver, fugiram do campo de batalha, tentando escapar.

VERSO 34: Derrotados e privados de todas as armas, alguns semideuses desis­tiram de lutar e louvaram-te com mãos postas, e alguns deles apare­ceram diante de ti com roupas e cabelos soltos e disseram: “Ó senhor, temos muito medo de ti.”

VERSO 35: Quando os semideuses ficam privados de suas quadrigas, quando não conseguem usar armas, quando têm medo ou estão apegados a algo diferente da luta, ou quando seus arcos se quebram e, por isso, eles perdem a habilidade para lutar, Vossa Majestade não os mata.

VERSO 36: Os semideuses se vangloriam em vão quando estão longe do campo de batalha. Somente quando não há luta eles sabem ostentar o seu poder. Portanto, nada temos a temer desses semideuses. Quanto ao Senhor Viṣṇu, Ele está recluso no âmago do coração dos yogīs. Quanto ao senhor Śiva, ele foi para a floresta. E quanto ao senhor Brahmā, ele está sempre ocupado em austeridades e meditação. Os outros semideuses, encabeçados por Indra, não são poderosos. Portanto, nada tens a temer.

VERSO 37: Entretanto, devido à inimizade deles, temos a opinião de que os semideuses não devem ser subestimados. Portanto, para derrotá-los completamente, ocupa-nos em lutar contra eles, pois estamos prontos para seguir-te.

VERSO 38: Assim como uma doença, se inicialmente negligenciada, torna-se aguda e incurável, ou assim como os sentidos, se não controlados no início, mais tarde se tornam incontroláveis, um inimigo, se relegado no começo, mais tarde se torna insuperável.

VERSO 39: O alicerce de todos os semideuses é o Senhor Viṣṇu, que vive e é adorado onde quer que haja princípios religiosos, cultura tradicio­nal, os Vedas, as vacas, os brāhmaṇas, austeridades e sacrifícios com remuneração adequada.

VERSO 40: Ó rei, nós, que em todos os sentidos somos teus adeptos, mataremos, portanto, os brāhmaṇas védicos, as pessoas ocupadas em ofere­cer sacrifícios e austeridades, e as vacas que fornecem leite, do qual se obtém a manteiga clarificada que se usa nos ingredientes do sacrifício.

VERSO 41: Os brāhmaṇas, as vacas, o conhecimento védico, a austeridade, a veracidade, o controle da mente e dos sentidos, a fé, a misericór­dia, a tolerância e o sacrifício são diferentes partes do corpo do Senhor Viṣṇu, e são a parafernália de uma civilização piedosa.

VERSO 42: O Senhor Viṣṇu, a Superalma no âmago do coração de todos, é o inimigo último dos asuras, daí ser conhecido como asura-­dviṭ. Ele é o líder de todos os semideuses porque todos os semideuses, incluindo o senhor Śiva e o senhor Brahmā, estão sempre sob Sua prote­ção. As grandes pessoas santas, os sábios e vaiṣṇavas também de­pendem dEle. Perseguir os vaiṣṇavas, portanto, é a única maneira de matar Viṣṇu.

VERSO 43: Śukadeva Gosvāmī continuou: Assim, tendo ponderado as instru­ções de seus ministros malévolos, Kaṁsa, que estava atado às leis de Yamarāja e era privado de boa inteligência porque era um demô­nio, decidiu perseguir as pessoas santas, os brāhmaṇas, pois via nisso a única maneira de alcançar sua própria boa fortuna.

VERSO 44: Esses demônios, os seguidores de Kaṁsa, eram hábeis em perseguir pessoas, especialmente os vaiṣṇavas, e podiam assumir qualquer forma que desejassem. Após dar a esses demônios permissão para irem a qualquer parte e perseguirem as pessoas santas, Kaṁsa entrou em seu palácio.

VERSO 45: Transbordando de paixão e ignorância e não sabendo o que era bom ou ruim para eles, os asuras, por quem esperava a morte imi­nente, começaram a perseguição às pessoas santas.

VERSO 46: Meu querido rei, quando um homem persegue grandes almas, todas as suas bênçãos, sob a forma de longevidade, beleza, fama, religião, dádivas e promoção aos planetas superiores, são destruídas.

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