Capítulo Oito
Orações da Rainha Kuntī e a Salvação de Parīkṣit
VERSO 1: Sūta Gosvāmī disse: Em seguida, os Pāṇḍavas, querendo oferecer água aos parentes mortos que a haviam desejado, foram até o Ganges com Draupadī. As damas caminhavam na frente.
VERSO 2: Tendo os pranteado e oferecido suficiente água do Ganges, todos se banharam no Ganges, cuja água é santificada devido a ser misturada com a poeira dos pés de lótus do Senhor.
VERSO 3: Ali, sentou-se o rei dos Kurus, Mahārāja Yudhiṣṭhira, juntamente com seus irmãos mais novos e Dhṛtarāṣṭra, Gāndhārī, Kuntī e Draupadī, todos acabrunhados de pesar. O Senhor Kṛṣṇa também estava ali.
VERSO 4: Citando as estritas leis do Todo-poderoso e suas reações sobre os seres vivos, o Senhor Śrī Kṛṣṇa e os munis começaram a consolar aqueles que estavam traumatizados e aflitos.
VERSO 5: O sagaz Duryodhana e seu grupo usurparam astutamente o reino de Yudhiṣṭhira, que não tinha inimigos. Pela graça do Senhor, a recuperação realizou-se, e os reis inescrupulosos que se aliaram a Duryodhana foram mortos por Ele. Outros também morreram, com sua duração de vida reduzida em razão do ato incivilizado de mexerem no cabelo da rainha Draupadī.
VERSO 6: O Senhor Śrī Kṛṣṇa motivou Mahārāja Yudhiṣṭhira a conduzir três aśvamedha-yajñas [sacrifícios de cavalos] bem executados, e, dessa maneira, fez com que sua virtuosa fama fosse glorificada em todas as direções, assim como a de Indra, que havia executado uma centena de tais sacrifícios.
VERSO 7: O Senhor Śrī Kṛṣṇa preparou-Se, então, para Sua partida. Ele chamou os filhos de Pāṇḍu, após ter sido adorado pelos brāhmaṇas, encabeçados por Śrīla Vyāsadeva. O Senhor também retribuiu as saudações.
VERSO 8: Logo que Ele Se sentou na quadriga para partir rumo a Dvārakā, viu Uttarā precipitar-se temerosa em Sua direção.
VERSO 9: Uttarā disse: Ó Senhor dos senhores, Senhor do universo! Sois o maior entre os místicos. Por favor, protegei-me, pois não há ninguém mais que me possa salvar das garras da morte neste mundo de dualidade.
VERSO 10: Ó meu Senhor, sois todo-poderoso! Uma incandescente flecha de ferro está vindo rapidamente em minha direção. Meu Senhor, deixai-a queimar-me pessoalmente, se assim o desejais, mas, por favor, não a deixeis queimar e abortar meu embrião. Por bondade, fazei-me este favor, meu Senhor.
VERSO 11: Sūta Gosvāmī disse: Tendo ouvido pacientemente suas palavras, o Senhor Śrī Kṛṣṇa, que é sempre muito afetuoso com Seus devotos, pôde entender de imediato que Aśvatthāmā, o filho de Droṇācārya, tinha lançado o brahmāstra para dar fim à última vida na família Pāṇḍava.
VERSO 12: Ó principal [Śaunaka] entre os grandes pensadores [munis]! Vendo o incandescente brahmāstra precipitando-se em direção a eles, os Pāṇḍavas tomaram de suas cinco respectivas armas.
VERSO 13: A todo-poderosa Personalidade de Deus, Śrī Kṛṣṇa, tendo observado que um grande perigo estava ameaçando Seus devotos imaculados, que eram almas completamente rendidas, tomou imediatamente de Seu disco Sudarśana para protegê-los.
VERSO 14: O Senhor do misticismo supremo, Śrī Kṛṣṇa, reside dentro do coração de todos como o Paramātmā. Como tal, simplesmente para proteger a progênie da dinastia Kuru, Ele encobriu o embrião de Uttarā através de Sua energia pessoal.
VERSO 15: Ó Śaunaka, embora a suprema arma brahmāstra lançada por Aśvatthāmā fosse irresistível e sem defesa ou revide, ela foi neutralizada e derrotada quando se confrontou com a força de Viṣṇu [o Senhor Kṛṣṇa].
VERSO 16: Ó brāhmaṇas, não penseis que isso seja especialmente admirável nas atividades da misteriosa e infalível Personalidade de Deus. Através de Sua própria energia transcendental, Ele mantém e aniquila todas as coisas materiais, embora Ele mesmo seja não-nascido.
VERSO 17: Assim salva da radiação do brahmāstra, Kuntī, a casta devota do Senhor, e seus cinco filhos e Draupadī, dirigiram-se ao Senhor Kṛṣṇa quando Ele começou a partir para casa.
VERSO 18: Śrīmatī Kuntī disse: Ó Kṛṣṇa, ofereço-Vos minhas reverências porque sois a personalidade original e não sois afetado pelas qualidades do mundo material. Vós existis tanto dentro como fora de tudo e, ainda assim, sois invisível para todos.
VERSO 19: Estando além do alcance da limitada percepção sensorial, sois o fator eternamente impecável, coberto pela cortina da energia ilusória. Sois invisível para o observador tolo, exatamente como um ator caracterizado como um personagem não é reconhecido.
VERSO 20: Vós mesmo desceis para propagar a ciência transcendental do serviço devocional aos corações dos transcendentalistas avançados e especuladores mentais, que estão purificados por serem capazes de discriminar entre matéria e espírito. Como, então, podemos nós, as mulheres, conhecer-Vos com perfeição?
VERSO 21: Ofereço minhas respeitosas reverências ao Senhor, que Se tornou o filho de Vasudeva, o prazer de Devakī, o garotinho de Nanda e dos outros vaqueiros de Vṛndāvana, e o vivificador das vacas e dos sentidos.
VERSO 22: Minhas respeitosas reverências são para Vós, ó Senhor, cujo abdômen é marcado com uma depressão semelhante a uma flor de lótus, que estais sempre decorado com guirlandas de flores de lótus, cujo olhar é tão refrescante como o lótus e cujos pés estão gravados com flores de lótus.
VERSO 23: Ó Hṛṣīkeśa, mestre dos sentidos e Senhor dos senhores! Vós libertastes Vossa mãe, Devakī, que ficou por muito tempo presa e atormentada pelo invejoso rei Kaṁsa, e também libertastes a mim e a meus filhos de uma série de constantes perigos.
VERSO 24: Meu querido Kṛṣṇa, Vossa Onipotência nos protegeu de um bolo envenenado, de um grande fogo, dos canibais, da assembleia viciosa, dos sofrimentos durante nosso exílio na floresta e da batalha onde grandes generais lutaram. E agora nos salvais da arma de Aśvatthāmā.
VERSO 25: Desejo que todas essas calamidades aconteçam repetidamente, para que possamos ver-Vos repetidamente, pois ver-Vos significa que não veremos mais repetidos nascimentos e mortes.
VERSO 26: Meu Senhor, ó Onipotente, podeis facilmente ser alcançado, mas apenas por aqueles que estão materialmente esgotados. A pessoa que está no caminho do progresso material, tentando aprimorar-se com parentesco respeitável, grande opulência, educação elevada e beleza corpórea, não pode aproximar-se de Vós com sentimento sincero.
VERSO 27: Minhas reverências são para Vós, que sois a propriedade dos materialmente empobrecidos. Nada tendes a ver com as ações e reações dos modos materiais da natureza. Vós sois autossatisfeito e, portanto, sois o mais amável e sois o mestre dos monistas.
VERSO 28: Meu Senhor, considero que Vossa Onipotência é o tempo eterno, o controlador supremo, sem começo nem fim, o onipenetrante. Sois igual para com todos ao distribuir Vossa misericórdia. As dissensões entre os seres vivos se devem ao convívio social.
VERSO 29: Ó Senhor, ninguém pode entender Vossos passatempos transcendentais, que parecem ser humanos e são tão desconcertantes! Ninguém é para Vós objeto especial de favorecimento, nem tendes objeto algum de inveja. As pessoas apenas imaginam que sois parcial.
VERSO 30: É realmente desconcertante, ó alma do universo, que Vós trabalheis, embora sejais inativo, e que Vós nasçais, embora sejais a força vital e o não-nascido. Vós desceis em pessoa entre os animais, homens, sábios e seres aquáticos. Realmente, isso é desconcertante.
VERSO 31: Meu querido Kṛṣṇa, Yaśodā pegou uma corda para Vos atar quando fizestes uma travessura, e Vossos olhos perturbados se inundaram de lágrimas, que lavaram o rímel de Vossos olhos. E Vós estáveis temeroso, embora o medo personificado tenha medo de Vós. Essa visão é desconcertante para mim.
VERSO 32: Alguns dizem que o Não-nascido nasce para a glorificação de reis piedosos, e outros dizem que Ele nasce para comprazer o rei Yadu, um de Seus devotos mais queridos. Vós apareceis em sua família assim como o sândalo aparece nas colinas da Malásia.
VERSO 33: Outros dizem que uma vez que tanto Vasudeva quanto Devakī oraram por Vós, nascestes como seu filho. Sem dúvida, sois não-nascido, mas nasceis para o bem-estar deles e para matar aqueles que são invejosos dos semideuses.
VERSO 34: Outros dizem que o mundo, estando sobrecarregado como um barco no mar, está muito aflito, e que Brahmā, que é Vosso filho, orou a Vós, e assim aparecestes para diminuir as dificuldades.
VERSO 35: E outros dizem ainda que Vós aparecestes para renovar o serviço devocional de ouvir, lembrar, adorar e assim por diante, para que as almas condicionadas que sofrem de dores materiais aproveitem-se disso e obtenham a liberação.
VERSO 36: Ó Kṛṣṇa, aqueles que continuamente ouvem, cantam e repetem Vossas atividades transcendentais, ou sentem prazer em que outros o façam, certamente veem Vossos pés de lótus, que por si só podem cessar a repetição de nascimentos e mortes.
VERSO 37: Ó meu Senhor, Vós executastes pessoalmente todos os deveres. Acaso estais nos deixando hoje, embora sejamos completamente dependentes de Vossa misericórdia e embora não tenhamos ninguém que nos proteja, agora que todos os reis se mostram nossos inimigos?
VERSO 38: Assim como o nome e a fama de um corpo particular se acabam com o desaparecimento do espírito vivo, de modo semelhante, se Vós não zelais por nós, toda a nossa fama e todas as nossas atividades, juntamente com os Pāṇḍavas e os Yadus, terminarão de uma vez.
VERSO 39: Ó Gadādhara [Kṛṣṇa], nosso reino agora está sendo marcado pelas impressões de Vossos pés, daí ele parecer belo. Porém, quando Vós partirdes, ele já não será assim.
VERSO 40: Todas essas cidades e vilas estão florescendo sob todos os aspectos porque as ervas e os cereais existem em abundância, as árvores estão cheias de frutas, os rios estão fluindo, as colinas estão repletas de minerais, e os oceanos, plenos de riquezas. E isso tudo se deve ao Vosso olhar sobre eles.
VERSO 41: Ó Senhor do universo, ó alma do universo, ó personalidade da forma do universo! Por favor, então, cortai meus laços de afeição por meus parentes, os Pāṇḍavas e os Vṛṣṇis.
VERSO 42: Ó Senhor de Madhu, assim como o Ganges flui perenemente rumo ao mar sem nenhum obstáculo, deixai que minha atração se dirija constantemente a Vós, sem divergir para ninguém mais.
VERSO 43: Ó Kṛṣṇa, ó amigo de Arjuna, ó líder entre os descendentes de Vṛṣṇi, sois o aniquilador daqueles partidos políticos que são elementos perturbadores nesta Terra. Vossas proezas nunca se deterioram. Sois o proprietário da morada transcendental, e desceis para aliviar as aflições das vacas, dos brāhmaṇas e dos devotos. Possuís todos os poderes místicos, e sois o preceptor de todo o universo. Sois o Deus todo-poderoso, e eu Vos ofereço minhas respeitosas reverências.
VERSO 44: Sūta Gosvāmī disse: O Senhor, tendo ouvido as preces de Kuntīdevī, compostas em palavras seletas para Sua glorificação, sorriu com ternura. Esse sorriso era tão encantador como Seu poder místico.
VERSO 45: Aceitando assim as orações de Śrīmatī Kuntīdevī, o Senhor, em seguida, informou às outras senhoras acerca de Sua partida, entrando no palácio de Hastināpura. Contudo, enquanto Se preparava para sair, foi parado pelo rei Yudhiṣṭhira, que implorou a Ele com amor.
VERSO 46: O rei Yudhiṣṭhira, que estava muito pesaroso, não se deixou convencer, apesar das instruções dos grandes sábios encabeçados por Vyāsa, e do próprio Senhor Kṛṣṇa, o executor de feitos sobre-humanos, e apesar de toda a evidência histórica.
VERSO 47: O rei Yudhiṣṭhira, filho de Dharma, compungido com a morte de seus amigos, estava pesaroso assim como um materialista comum. ó sábios, iludido assim pela afeição, ele começou a falar.
VERSO 48: O rei Yudhiṣṭhira disse: Ó meu destino! Sou o homem mais pecaminoso! Eis que meu coração está cheio de ignorância! Este corpo, que em última análise se destina aos outros, matou muitas e muitas falanges de homens.
VERSO 49: Eu matei muitas crianças, brāhmaṇas, benquerentes, amigos, pais, preceptores e irmãos. Mesmo que eu viva por milhões de anos, não me livrarei do inferno que me espera por todos esses pecados.
VERSO 50: Não há pecado para um rei que mata pela causa justa ao estar ocupado em manter seus cidadãos. Porém, essa injunção não se aplica a mim.
VERSO 51: Matei muitos companheiros das mulheres e, desse modo, suscitei inimizades a tal ponto que jamais poderei desfazê-las através de trabalhos de bem-estar material.
VERSO 52: Assim como não é possível filtrar a água lamacenta através da lama, nem purificar com vinho um pote sujo de vinho, não é possível neutralizar o pecado da matança de homens sacrificando animais.