CAPÍTULO OITENTA E CINCO
O Senhor Kṛṣṇa Instrui Vasudeva e Recupera os Filhos de Devakī
Este capítulo relata como o Senhor Kṛṣṇa transmitiu conhecimento divino a Seu pai e, juntamente com o Senhor Balarāma, recuperou os falecidos filhos de Sua mãe.
Tendo ouvido os sábios visitantes glorificarem Kṛṣṇa, Vasudeva deixou de considerar Kṛṣṇa e Balarāma como seus filhos e começou a louvar Sua onipotência, onipresença e onisciência como a Suprema Personalidade de Deus. Depois de glorificar seus filhos, Vasudeva caiu aos pés de lótus do Senhor Kṛṣṇa e suplicou-lhe que afastasse a concepção de que o Senhor era seu filho. Em vez disso, o Senhor Kṛṣṇa restabeleceu esse conceito instruindo Vasudeva sobre a ciência de Deus, e, ao ouvir essas instruções, Vasudeva ficou tranquilo e livre de dúvida.
Então, mãe Devakī louvou Kṛṣṇa e Balarāma, lembrando-Lhes como Eles haviam recuperado o filho falecido de Seu mestre espiritual. Ela disse: “Por favor, satisfazei meu desejo da mesma maneira. Por favor, trazei de volta meus filhos que foram mortos por Kaṁsa para que eu possa vê-los mais uma vez.” Solicitados desse modo por Sua mãe, os dois Senhores foram ao planeta subterrâneo Sutala, onde Se aproximaram de Bali Mahārāja. O rei Bali saudou-Os com todo o respeito, oferecendo-Lhes assentos de honra, adorando-Os e recitando orações. Kṛṣṇa e Balarāma, então, pediram a Bali que devolvesse os filhos falecidos de Devakī. Os Senhores receberam de Bali os meninos e devolveram-nos a Devakī, que sentiu tamanha sobrecarga de afeição por eles que leite começou a escorrer espontaneamente de seus seios. Tomada de felicidade, Devakī amamentou seus filhos, os quais, ao beberem os restos de leite que o próprio Senhor Kṛṣṇa certa vez bebera, readquiriram suas formas originais de semideuses e voltaram para o céu.
VERSO 1: Śrī Bādarāyaṇi disse: Certo dia, os dois filhos de Vasudeva – Saṅkarṣaṇa e Acyuta – vieram prestar-lhe Seus respeitos prostrando-Se aos pés dele. Vasudeva saudou-Os com grande afeição e dirigiu-Lhes a palavra.
VERSO 2: Tendo ouvido as palavras dos grandes sábios relativas ao poder de seus dois filhos e tendo visto Suas valorosas façanhas, Vasudeva se convenceu da divindade dEles. Então, chamando-Os pelo nome, dirigiu-se a Eles com as seguintes palavras.
VERSO 3: [Vasudeva disse:] Ó Kṛṣṇa, ó Kṛṣṇa, melhor dos yogīs, ó eterno Saṅkarṣaṇa! Sei que sois pessoalmente a fonte da criação universal e também os componentes da criação.
VERSO 4: Sois a Suprema Personalidade de Deus, que Vos manifestais como o Senhor da natureza e do criador da natureza [Mahā-Viṣṇu]. Tudo o que vem a existir, como e quando quer que seja, é criado dentro de Vós, por Vós, de Vós, para Vós e em relação a Vós.
VERSO 5: Ó Senhor transcendental, criastes todo este variado universo a partir de Vós mesmo e, então, entrastes dentro dele em Vossa forma pessoal como a Superalma. Dessa maneira, ó não-nascida Alma Suprema, como a força vital e consciência de todos, mantendes a criação.
VERSO 6: Quaisquer potências que o ar vital e outros elementos da criação universal exibam são todas, em verdade, energias pessoais do Senhor Supremo, pois tanto a vida quanto a matéria são subordinadas a Ele e dependentes dEle, e também diferentes uma da outra. Desse modo, tudo o que é ativo no mundo material é posto em movimento pelo Senhor Supremo.
VERSO 7: O resplendor da Lua, o brilho do fogo, a radiância do Sol, a cintilação das estrelas, o clarão do relâmpago, a estabilidade das montanhas e o aroma e poder sustentador da terra – tudo isso, em verdade, sois Vós.
VERSO 8: Meu Senhor, sois a água, e também seu sabor e suas capacidades de saciar a sede e sustentar a vida. Exibis Vossas potências através das manifestações do ar como calor corpóreo, vitalidade, poder mental, força física, esforço e movimento.
VERSO 9: Sois as direções e sua capacidade de acomodação, o éter onipenetrante e o som elementar que reside dentro dele. Sois a primordial forma imanifesta do som; a primeira sílaba, om; e a fala audível, por meio da qual o som, em forma de palavras, adquire referências particulares.
VERSO 10: Sois o poder que os sentidos têm de revelar seus objetos, os semideuses regentes dos sentidos e a sanção dada por estes semideuses para a atividade sensória. Sois a capacidade da inteligência para tomar decisões e a habilidade que o ser vivo tem de lembrar as coisas com exatidão.
VERSO 11: Sois o falso ego no modo da ignorância, que é a fonte dos elementos físicos; o falso ego no modo da paixão, que é a fonte dos sentidos corpóreos; o falso ego no modo da bondade, que é a fonte dos semideuses; e a energia material total imanifesta, que está por trás de tudo.
VERSO 12: Sois a única entidade indestrutível dentre todas as coisas destrutíveis deste mundo, assim como a substância subjacente que se vê permanecer inalterada enquanto as coisas feitas dela sofrem transformações.
VERSO 13: Os modos da natureza material – a saber, a bondade, paixão e ignorância –, juntamente com todas as suas funções, tornam-se diretamente manifestos dentro de Vós, a Suprema Verdade Absoluta, por arranjo de Vossa yogamāyā.
VERSO 14: Assim, estas entidades criadas, transformações da natureza material, não existem, exceto quando a natureza material manifesta-as dentro de Vós, momento em que também Vos manifestais dentro delas. Contudo, exceto por esses períodos de criação, Vós permaneceis só, como a realidade transcendental.
VERSO 15: São imensamente ignorantes aqueles que, enquanto aprisionados no fluxo incessante das qualidades materiais deste mundo, deixam de conhecer-Vos, a Alma Suprema de tudo o que existe, como seu destino sublime e derradeiro. Por causa de sua ignorância, o enredamento do trabalho material força tais almas a vagarem no ciclo de nascimentos e mortes.
VERSO 16: Por boa fortuna, uma alma pode obter uma saudável vida humana – uma oportunidade raramente alcançada. Contudo, se apesar disso ela se confundir sobre o que é melhor para si, ó Senhor, Vossa māyā ilusória a fará desperdiçar toda a sua vida.
VERSO 17: Mantendes todo este mundo atado pelas cordas da afeição, motivo pelo qual, quando alguém pondera sobre seu corpo material, ele pensa: “Isto sou eu”, e quando pondera sobre seus filhos e outros parentes, ele pensa: “Eles são meus.”
VERSO 18: Não sois nossos filhos, mas os próprios Senhores tanto da natureza material quanto de seu criador [Mahā-Viṣṇu]. Como Vós mesmos nos dissestes, descestes para livrar a Terra dos governantes que são um fardo pesado sobre ela.
VERSO 19: Portanto, ó amigo dos aflitos, agora aproximo-me de Vossos pés de lótus em busca de refúgio – os mesmos pés de lótus que dissipam todo o medo da existência mundana para os que se renderam a eles. Basta! Basta de desejar o gozo dos sentidos, que me leva a identificar-me com este corpo mortal e a pensar em Vós, o Supremo, como meu filho.
VERSO 20: De fato, enquanto ainda estáveis na maternidade, dissestes-nos que Vós, o Senhor não nascido, já nascêreis várias vezes como nosso filho em eras anteriores. Depois de manifestar cada um desses corpos transcendentais para proteger Vossos próprios princípios da religião, então os tornastes imanifestos, assim aparecendo e desaparecendo como uma nuvem. Ó glorificadíssimo Senhor onipenetrante, quem pode compreender a mística potência ilusória de Vossas expansões opulentas?
VERSO 21: Śukadeva Gosvāmī disse: Tendo ouvido as palavras de Seu pai, o Senhor Supremo, o líder dos Sātvatas, respondeu com uma voz suave enquanto curvava a cabeça em sinal de humildade e sorria.
VERSO 22: O Senhor Supremo disse: Meu querido pai, considero apropriadas tuas afirmações, pois explicaste as várias categorias da existência com referência a Nós, teus filhos.
VERSO 23: Não apenas Eu, mas também tu, bem como Meu respeitado irmão e estes residentes de Dvārakā, devemos todos ser considerados sob esta mesma luz filosófica, ó melhor dos Yadus. De fato, devemos incluir tudo o que existe, tanto móvel quanto inerte.
VERSO 24: O espírito supremo, Paramātmā, é de fato um. Ele é autoluminoso e eterno, transcendental e desprovido de qualidades materiais. Contudo, por meio da ação dos próprios modos que Ele criou, a Verdade Suprema única manifesta-Se como muitos entre as expansões daqueles modos.
VERSO 25: Os elementos éter, ar, fogo, água e terra tornam-se visíveis, invisíveis, diminutos ou vastos à medida que se manifestam em vários objetos. De modo semelhante, o Paramātmā, embora um, parece multiplicar-Se.
VERSO 26: Śukadeva Gosvāmī disse: Ó rei, ouvindo estas instruções que o Senhor Supremo lhe transmitiu, Vasudeva livrou-se de todas as concepções de dualidade. Com o coração satisfeito, ele ficou em silêncio.
VERSOS 27-28: Naquele momento, ó melhor dos Kurus, Devakī, que é adorada em todo o universo, aproveitou a oportunidade para dirigir-se a seus dois filhos, Kṛṣṇa e Balarāma. Outrora, ela ouvira com assombro que Eles haviam ressuscitado o filho de Seu mestre espiritual. Agora, pensando em seus próprios filhos que tinham sido assassinados por Kaṁsa, ela sentiu grande pesar e, então, com os olhos cheios de lágrimas, fez a seguinte súplica a Kṛṣṇa e Balarāma.
VERSO 29: Śrī Devakī disse: Ó Rāma, ó Rāma, imensurável Alma Suprema! Ó Kṛṣṇa, Senhor de todos os mestres do yoga! Sei que sois os governantes supremos de todos os criadores universais, as primordiais Personalidades de Deus.
VERSO 30: Nascendo de mim, descestes agora a este mundo para matar aqueles reis cujas boas qualidades foram destruídas pela era atual e que por isso desafiam a autoridade das escrituras reveladas e são um fardo para a Terra.
VERSO 31: Ó Alma de tudo o que existe, a criação, manutenção e destruição do universo são todas efetuadas por uma fração de uma expansão de uma expansão de Vossa expansão. Hoje, vim me refugiar em Vós, o Senhor Supremo.
VERSOS 32-33: Dizem que quando Vosso mestre espiritual Vos ordenou que recuperásseis seu filho morto há muito tempo, Vós o trouxestes de volta da morada dos antepassados como gesto de retribuição pela misericórdia de Vosso guru. Por favor, satisfazei meu desejo da mesma maneira, ó mestres supremos de todos os mestres de yoga. Por favor, trazei de volta meus filhos que foram mortos pelo rei de Bhoja, para que eu possa vê-los mais uma vez.
VERSO 34: O sábio Śukadeva disse: Assim solicitados por Sua mãe, ó Bhārata, Balarāma e Kṛṣṇa empregaram Sua mística potência yogamāyā e entraram na região de Sutala.
VERSO 35: Quando o rei dos Daityas, Bali Mahārāja, notou a chegada dos dois Senhores, seu coração transbordou de alegria, pois sabia que Eles eram a Alma Suprema e Deidade adorável do universo inteiro, e especialmente dele mesmo. Ele se levantou de imediato e, então, prostrou-se para oferecer respeitos, juntamente com todo o seu séquito.
VERSO 36: Bali teve prazer em oferecer assentos elevados aos Senhores. Depois que estes Se sentaram, ele banhou os pés das duas Supremas Personalidades. Então, pegou aquela água, que purifica o mundo todo, inclusive o senhor Brahmā, e derramou-a sobre si e seus seguidores.
VERSO 37: Ele Os adorou com todas as riquezas à sua disposição – roupas valiosas, ornamentos, pasta de sândalo aromático, noz de bétel, lamparinas, alimento suntuoso etc. Então, ofereceu-Lhes toda a riqueza de sua família, e também a si próprio.
VERSO 38: Segurando repetidas vezes os pés de lótus dos Senhores, Bali, o conquistador do exército de Indra, falou palavras provenientes do fundo de seu coração, que se derretia devido a seu intenso amor. Ó rei, com os olhos cheios de lágrimas de êxtase e os pelos do corpo arrepiados, ele começou a balbuciar as seguintes orações.
VERSO 39: O rei Bali disse: Reverências ao ilimitado Senhor, Ananta, o maior de todos os seres. E reverências ao Senhor Kṛṣṇa, o criador do universo, que aparece como o Absoluto impessoal e a Superalma a fim de disseminar os princípios de sāṅkhya e yoga.
VERSO 40: Ver a Vós, Senhores, é uma rara conquista para a maioria dos seres vivos. Mas até mesmo pessoas como nós, situadas nos modos da paixão e ignorância, podemos facilmente ver-Vos quando Vos revelais por Vossa própria vontade.
VERSOS 41-43: Muitos que haviam estado constantemente absortos em inimizade a Vós terminaram atraídos por Vós, que sois a direta encarnação da bondade transcendental e cuja divina forma contém em si as escrituras reveladas. Entre esses inimigos reformados, constam Daityas, Dānavas, Gandharvas, Siddhas, Vidyādharas, Cāraṇas, Yakṣas, Rākṣasas, Piśācas, Bhūtas, Pramathas e Nāyakas, e também nós mesmo e muitos outros como nós. Alguns de nós sentiram-se atraídos por Vós devido ao ódio excepcional, ao passo que outros foram atraídos devido a seu humor de devoção baseado em luxúria. Mas os semideuses e outros seres arrogantes por causa da bondade material não sentem semelhante atração por Vós.
VERSO 44: Ó Senhor de todos os yogīs perfeitos, se nem mesmo os maiores místicos sabem o que é ou como age Vosso poder espiritual de ilusão, o que dizer de nós?
VERSO 45: Por favor, sede misericordiosos comigo para que eu possa sair do poço escuro da vida familiar – meu falso lar – e encontrar o verdadeiro abrigo de Vossos pés de lótus, que os sábios abnegados sempre buscam. Então, quer sozinho, quer em companhia de grandes santos, que são os amigos de todos, poderei divagar à vontade, encontrando, aos pés das árvores, que são caridosas ao mundo inteiro, o que é necessário para viver.
VERSO 46: Ó Senhor de todas as criaturas subordinadas, por favor, dizei-nos o que fazer e, então, livrai-nos de todo pecado. Quem cumpre fielmente Vosso comando, ó mestre, não é mais obrigado a seguir os ritos védicos ordinários.
VERSO 47: O Senhor Supremo disse: Durante a era do primeiro Manu, o sábio Marīci teve seis filhos com sua esposa Ūrnā. Eles eram todos sublimes semideuses, mas certa vez riram do senhor Brahmā quando o viram preparando-se para ter relação sexual com sua própria filha.
VERSOS 48-49: Por causa daquele ato impróprio, eles entraram imediatamente em uma forma de vida demoníaca e, desta maneira, nasceram como filhos de Hiraṇyakaśipu. A deusa Yogamāyā, então, tirou-os de Hiraṇyakaśipu, e eles nasceram de novo do ventre de Devakī. Depois disso, ó rei, Kaṁsa os assassinou. Devakī ainda se lamenta por eles, pensando neles como seus filhos. Esses mesmos filhos de Marīci agora vivem aqui contigo.
VERSO 50: Desejamos levá-los deste lugar para dissipar a tristeza da mãe deles. Então, aliviados de sua maldição e livres de todo o sofrimento, eles regressarão a seu lar no céu.
VERSO 51: Por Minha graça, estas seis pessoas – Smara, Udgītha, Pariṣvaṅga, Pataṅga, Kṣudrabhṛt e Ghṛṇī – retornarão à morada dos santos puros.
VERSO 52: [Śukadeva Gosvāmī continuou:] Após dizer estas palavras, o Senhor Kṛṣṇa e o Senhor Balarāma, tendo recebido de Bali Mahārāja a devida adoração, regressaram juntamente com os seis filhos a Dvārakā, onde os apresentaram à Sua mãe.
VERSO 53: Ao rever seus filhos desaparecidos, a deusa Devakī sentiu tanta afeição por eles que leite escorreu de seus seios. Ela os abraçou e os colocou em seu colo, cheirando-lhes a cabeça muitas vezes.
VERSO 54: Amorosamente, ela deixou que seus filhos mamassem em seu seio, que se encharcou de leite ao simples contato com eles. A mesma energia ilusória do Senhor Viṣṇu que origina a criação do universo fez com que ela se extasiasse.
VERSOS 55-56: Ao beberem seu leite nectáreo, que era o remanescente do que o próprio Kṛṣṇa bebera antes, os seis filhos tocaram o corpo transcendental do Senhor, Nārāyaṇa, e este contato despertou neles suas identidades originais. Eles se prostraram diante de Govinda, Devakī, seu pai e Balarāma, e então, enquanto todos assistiam, partiram para a morada dos semideuses.
VERSO 57: Vendo seus filhos retornarem do reino da morte e, então, tornarem a partir, a santa Devakī foi tomada de espanto, ó rei. Ela concluiu que tudo isso não passava de mera ilusão criada por Kṛṣṇa.
VERSO 58: Śrī Kṛṣṇa, a Alma Suprema, o Senhor de coragem ilimitada, executou incontáveis passatempos tão surpreendentes como este, ó descendente de Bharata.
VERSO 59: Śrī Sūta Gosvāmī disse: Este passatempo encenado pelo Senhor Murāri, cuja fama é eterna, destrói os pecados do universo e serve como ornamento transcendental para as orelhas de Seus devotos. Qualquer um que, com atenção, ouvir ou narrar este passatempo, conforme recontou o venerável filho de Vyāsa, será capaz de fixar a mente na meditação no Senhor Supremo e atingir o auspiciosíssimo reino de Deus.