CAPÍTULO QUATORZE
A Vida Familiar Ideal
Este capítulo descreve os deveres que o chefe de família desempenha de acordo com o tempo, o lugar e o executor. Quando Yudhiṣṭhira Mahārāja passou a inquirir sobre os deveres ocupacionais dos chefes de família, Nārada Muni aconselhou que o primeiro dever do gṛhastha é depender plenamente de Vāsudeva, Kṛṣṇa, e tentar satisfazê-lo em todos os sentidos, executando seu serviço devocional prescrito. Esse serviço devocional dependerá das instruções das autoridades e da associação dos devotos que estão realmente ocupados em serviço devocional. O serviço devocional começa com śravaṇa, ou a arte de ouvir. Devem-se ouvir as palavras que emanam das bocas das almas realizadas. Dessa maneira, o gṛhastha pouco a pouco extinguirá a atração que sente por sua esposa e filhos.
Quanto à manutenção de sua família, o gṛhastha, embora tenha de se empenhar para conseguir o que necessita, deve ser muito consciencioso, evitando submeter-se a esforço demasiado apenas para acumular dinheiro e desnecessariamente aumentar seus confortos materiais. Embora externamente deva ser muito ativo para ganhar sua subsistência, o gṛhastha, internamente, deve situar-se como uma pessoa plenamente realizada, sem apego aos bens materiais. No convívio com os membros familiares ou amigos, ele age simplesmente para cumprir seus deveres, e não para perder muito tempo com isso. As instruções dos membros familiares e da sociedade devem ser aceitas superficialmente, mas, em essência, o gṛhastha se fixa em deveres ocupacionais recomendados pelo mestre espiritual e pelos śāstras. Especificamente, o gṛhastha deve ganhar dinheiro se ocupando em atividades agrícolas. Como se afirma na Bhagavad-gītā (18.44), kṛṣi-go-rakṣya-vāṇijyam – agricultura, proteção às vacas e comércio – são atividades designadas aos gṛhasthas. Se por acaso ou pela graça do Senhor o gṛhastha for favorecido com dinheiro, ele deve apropriadamente ocupá-lo no movimento da consciência de Kṛṣṇa. Ninguém deve ficar ansioso por ganhar dinheiro para o simples prazer dos sentidos. O gṛhastha sempre deve lembrar-se de que quem se esforça por acumular mais dinheiro do que o necessário corre o risco de ser considerado um ladrão e ser punido pelas leis da natureza.
O gṛhastha deve ser muito afetuoso com os animais inferiores, os pássaros e as abelhas, tratando-os exatamente como seus próprios filhos. Ele não deve ficar matando pássaros ou outros animais apenas para obter gozo dos sentidos. Deve prover das necessidades vitais mesmo os cachorros e as criaturas mais inferiores e não deve explorar os outros em troca de gozo dos próprios sentidos. De fato, segundo as instruções do Śrīmad-Bhāgavatam, todo gṛhastha é um grande comunista que provê todos com os meios de subsistência. Tudo o que o gṛhastha possui, deve distribuir entre todas as entidades vivas, sem discriminação. O melhor neste processo é a distribuição de prasāda.
O gṛhastha não deve ser muito apegado à sua esposa; deve ocupar sua esposa em servir aos convidados com toda a atenção. Todo o dinheiro que lhe vem pela graça de Deus, o gṛhastha deve aplicá-lo em cinco atividades, a saber, adorar a Suprema Personalidade de Deus, receber vaiṣṇavas e pessoas santas, distribuir prasāda ao público em geral e todas as entidades vivas, oferecer prasāda aos seus antepassados, bem como oferecer prasāda para si mesmo. Os gṛhasthas devem sempre estar dispostos a adorar todos conforme o processo acima especificado. O gṛhastha não deve comer nada que não seja oferecido à Suprema Personalidade de Deus. Como se afirma na Bhagavad-gītā (3.13), yajña-śiṣṭāśinaḥ santo mucyante sarva-kilbiṣaiḥ: “Os devotos do Senhor estão livres de toda espécie de pecados porque comem alimento primeiramente oferecido em sacrifício.” O gṛhastha também precisa visitar os lugares sagrados de peregrinação mencionados nos Purāṇas. Dessa maneira, deve ocupar-se plenamente em adorar a Suprema Personalidade de Deus, beneficiando sua família, sociedade, país e a humanidade em geral.
VERSO 1: Mahārāja Yudhiṣṭhira perguntou a Nārada Muni: Ó meu senhor, ó grande sábio, por favor, explica-nos como é que nós, que permanecemos no lar e não conhecemos a meta da vida, também podemos facilmente alcançar a liberação, de acordo com as instruções contidas nos Vedas.
VERSO 2: Nārada Muni respondeu: Meu querido rei, todo aquele que permanece no lar como pai de família tem que trabalhar para subsistir e, em vez de tentar desfrutar dos resultados do seu trabalho, deve oferecer esses resultados a Kṛṣṇa, Vāsudeva. Através da associação com grandes devotos do Senhor, ele aprende perfeitamente como satisfazer Vāsudeva nesta vida.
VERSOS 3-4: O gṛhastha deve associar-se frequentemente com pessoas santas e, com muito respeito, deve ouvir o néctar das atividades do Senhor Supremo e de Suas encarnações conforme essas atividades são descritas no Śrīmad-Bhāgavatam e em outros Purāṇas. Assim, tal qual um homem despertando de um sonho, pouco a pouco ele deve desapegar-se da afeição à sua esposa e filhos.
VERSO 5: Enquanto trabalha para ganhar os meios de subsistência necessários para a sua manutenção, quem é realmente erudito deve viver na sociedade humana desapegado dos afazeres familiares, embora, externamente, pareça muito apegado.
VERSO 6: Na sociedade humana, o homem inteligente deve tornar muito simples o seu programa de atividades pessoais. Se seus amigos, filhos, pais e irmãos ou alguma outra pessoa derem alguma sugestão, ele deve apresentar sua aprovação externa, dizendo: “Sim, está certo”, mas, internamente, deve estar determinado a não criar uma vida complicada, na qual o objetivo último não seja alcançado.
VERSO 7: Os produtos naturais criados pela Suprema Personalidade de Deus devem ser utilizados para a manutenção de todas as entidades vivas. As necessidades da vida são de três espécies: aquelas produzidas por intercessão do céu [através da chuva], da terra [através das minas, mares ou campos] e da atmosfera [aquilo que se obtém espontânea e inesperadamente].
VERSO 8: Cada um pode reivindicar a posse de tanta riqueza quanto lhe for necessário para se manter vivo, mas quem deseja exceder isso deve ser considerado ladrão e merece ser punido pelas leis da natureza.
VERSO 9: Devem-se tratar os animais, tais como veados, camelos, asnos, macacos, ratos, serpentes, pássaros e moscas, exatamente como os próprios filhos. Quão pouca é a diferença que realmente existe entre as crianças e esses animais inocentes!
VERSO 10: Mesmo que, em vez de brahmacārī, sannyāsī ou vānaprastha, alguém seja pai de família, ele não deve esforçar-se muito arduamente por obter religiosidade, desenvolvimento econômico ou gozo dos sentidos. Mesmo na vida de casado, a pessoa deve ficar satisfeita em se manter viva apenas com aquilo que, pela graça do Senhor, conseguir com um pequeno esforço, de acordo com o tempo e o lugar. Ninguém deve ocupar-se em ugra-karma.
VERSO 11: Os cachorros, as pessoas caídas e os intocáveis, incluindo os caṇḍālas [comedores de cachorros], todos devem receber aquilo que lhes é essencial e que lhes é fornecido através da contribuição apresentada pelos pais de família. No lar, até mesmo a esposa, à qual o esposo está tão fortemente apegado, deve ser designada para receber os convidados e as pessoas em geral.
VERSO 12: Há quem considere tão seriamente sua esposa como propriedade sua que, algumas vezes, por causa dela, comete suicídio ou mata os outros, incluindo até mesmo seus pais, seu mestre espiritual ou seu professor. Portanto, se alguém consegue abandonar o seu apego a semelhante esposa, conquista a Suprema Personalidade de Deus, que jamais é conquistado por alguém.
VERSO 13: Através da deliberação adequada, deve-se abandonar a atração pelo corpo da esposa porque esse corpo se transformará, por fim, em pequenos insetos, excremento ou cinzas. Qual o valor desse corpo insignificante? Quão maior é o Ser Supremo, que é onipenetrante como o céu!
VERSO 14: Toda pessoa inteligente deve ficar satisfeita em comer prasāda [o alimento oferecido ao Senhor] ou em executar as cinco diferentes classes de yajña [pañca-sūnā]. Através dessas atividades, pode-se abandonar o apego ao corpo e o dito senso de propriedade em relação ao corpo. Quando alguém é capaz de fazer isso, ele se fixa solidamente na posição de mahātmā.
VERSO 15: Todos os dias, deve-se adorar o Ser Supremo que está situado no coração de todos e, com base nisso, devem-se adorar separadamente os semideuses, as pessoas santas, os seres humanos e as entidades vivas comuns, os antepassados e o próprio eu. Dessa maneira, é possível adorar o Ser Supremo presente no âmago do coração de todos.
VERSO 16: Quando alguém possui riqueza e conhecimento em abundância e sob seu pleno controle e por meio dos quais pode executar yajña e satisfazer a Suprema Personalidade de Deus, ele deve, então, realizar sacrifícios, apresentando oblações no fogo de acordo com as orientações contidas nos śāstras. É dessa maneira que se deve adorar a Suprema Personalidade de Deus.
VERSO 17: A Suprema Personalidade de Deus, Śrī Kṛṣṇa, é o desfrutador das oferendas sacrificatórias. Todavia, embora Sua Onipotência aceite as oblações apresentadas no fogo, meu querido rei, Ele fica ainda mais satisfeito quando uma refeição primorosa, feita de cereais e ghī, é oferecida a Ele através da boca de brāhmaṇas qualificados.
VERSO 18: Portanto, meu querido rei, em primeiro lugar, oferece prasāda aos brāhmaṇas e semideuses e, após alimentá-los suntuosamente, podes distribuir prasāda a todas as outras entidades vivas conforme tuas possibilidades. Dessa maneira, serás capaz de adorar todas as entidades vivas – ou, em outras palavras, a entidade viva suprema que está presente em todas as entidades vivas.
VERSO 19: Um brāhmaṇa suficientemente rico deve apresentar oblações aos antepassados durante a quinzena da lua nova na última parte do mês de bhādra. Igualmente, deve apresentar oblações aos parentes dos antepassados durante as cerimônias mahālayā no mês de āśvina.
VERSOS 20-23: Deve-se executar a cerimônia śrāddha em Makara-saṅkrānti [o dia em que o Sol começa a mover-se em direção ao Norte] ou em Karkaṭa-saṅkrānti [o dia em que o Sol começa a mover-se em direção ao Sul]. Deve-se executar também essa cerimônia no dia de Meṣa-saṅkrānti e no dia de Tulā-saṅkrānti, no yoga chamado Vyatīpāta, naquele dia em que três tithis lunares conjugam-se, durante um eclipse da Lua ou do Sol, no décimo segundo dia lunar, e no Śravaṇa-nakṣatra. Deve-se executar essa cerimônia no dia de Akṣaya-tṛtīyā, durante o nono dia da quinzena da lua cheia do mês de Kārtika, nos quatro aṣṭakās na estação do inverno e na estação fria, no sétimo dia da quinzena da lua cheia do mês de māgha, durante a conjunção de Maghā-nakṣatra com o dia da lua cheia, e nos dias em que a lua está completamente cheia, ou então, não estando a lua completamente cheia, escolhem-se os dias que estão conjugados com os nakṣatras dos quais surgem os nomes de certos meses. Deve-se executar também a cerimônia śrāddha no décimo segundo dia lunar quando está em conjunção com algum dos nakṣatras chamados Anurādhā, Śravaṇa, Uttara-phalgunī, Uttarāṣāḍhā ou Uttara-bhādrapadā. E se deve executar essa cerimônia quando o décimo primeiro dia lunar estiver em conjunção com Uttara-phalgunī, Uttarāṣāḍhā ou Uttara-bhādrapadā. Finalmente, deve-se executar essa cerimônia nos dias que estão conjugados com a estrela do nascimento da própria pessoa [janma-nakṣatra] ou com Śravaṇa-nakṣatra.
VERSO 24: Todas essas épocas sazonais são consideradas extremamente auspiciosas para a humanidade. Nessas ocasiões, devem-se realizar todas as atividades auspiciosas, pois, através dessas atividades, o ser humano alcança sucesso em sua curta duração de vida.
VERSO 25: Durante esses períodos de mudanças estacionais, se alguém se banha no Ganges, no Yamunā ou em outro lugar sagrado, se ele canta, oferece sacrifícios de fogo ou executa votos, ou se adora o Senhor Supremo, os brāhmaṇas, os antepassados, os semideuses e as entidades vivas em geral, tudo o que der em caridade produzirá um resultado benéfico e permanente.
VERSO 26: Ó rei Yudhiṣṭhira, na data prescrita para a realização de cerimônias ritualísticas reformatórias em prol da própria pessoa, de sua esposa ou de seus filhos, ou durante as cerimônias fúnebres e as cerimônias de cada aniversário de morte, ela deve realizar as cerimônias auspiciosas mencionadas acima para prosperar nas atividades fruitivas.
VERSOS 27-28: Nārada Muni continuou: Agora, descreverei os lugares onde as atividades religiosas podem ser bem executadas. Todo lugar onde um vaiṣṇava esteja presente é um excelente lugar para todas as atividades auspiciosas. A Suprema Personalidade de Deus é o sustentáculo de toda essa manifestação cósmica, povoada de todas as suas entidades vivas móveis e inertes, e o templo no qual a Deidade do Senhor está instalada é um lugar sacratíssimo. Ademais, os lugares onde, por meio de austeridades, educação e misericórdia, os brāhmaṇas eruditos seguem os princípios védicos também são muito auspiciosos e sagrados.
VERSO 29: Realmente auspiciosos são os lugares onde há um templo de Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, onde Ele recebe a devida adoração, e também os lugares para onde fluem os célebres rios sagrados mencionados nos Purāṇas, os textos védicos suplementares. Toda atividade espiritual neles executada decerto produz muito efeito.
VERSOS 30-33: Lagos sagrados, como o Puṣkara, e lugares onde pessoas santas vivem, tais como Kurukṣetra, Gayā, Prayāga, Pulahāśrama, Naimiṣāraṇya, as margens do rio Phālgu, Setubandha, Prabhāsa, Dvārakā, Vārāṇasī, Mathurā, Pampā, Bindu-sarovara, Badarikāśrama [Nārāyanāśrama], os lugares onde o rio Nandā flui, os lugares onde o Senhor Rāmacandra e mãe Sītā se refugiaram, tais como Citrakūṭa, e também as regiões montanhosas conhecidas como Mahendra e Malaya – todos eles devem ser considerados muito piedosos e sagrados. Igualmente, os lugares situados fora da Índia, onde há centros do movimento da consciência de Kṛṣṇa e onde as Deidades de Rādhā-Kṛṣṇa são adoradas, devem ser todos visitados e adorados por aqueles que querem obter avanço espiritual. Aquele que intenciona avançar na vida espiritual pode visitar todos esses lugares e neles realizar cerimônias ritualísticas para obter resultados mil vezes superiores aos resultados das mesmas atividades realizadas em qualquer outro lugar.
VERSO 34: Ó rei da Terra, segundo o veredito dos sábios competentes e estudiosos, somente Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade de Deus, em quem repousa tudo o que neste universo é móvel e inerte e de quem tudo emana, é a melhor pessoa a quem se deve dar tudo.
VERSO 35: Ó rei Yudhiṣṭhira, os semideuses, muitos grandes sábios e santos, incluindo os quatro filhos do senhor Brahmā, e eu próprio estávamos presentes em tua cerimônia sacrificatória Rājasūya, mas, quando se colocou em debate qual é a pessoa mais adorável, todos opinaram a favor do Senhor Kṛṣṇa, a Pessoa Suprema.
VERSO 36: O universo inteiro, o qual está repleto de entidades vivas, é como uma árvore cuja raiz é a Suprema Personalidade de Deus, Acyuta [Kṛṣṇa]. Portanto, pelo simples fato de adorar o Senhor Kṛṣṇa, a pessoa pode adorar todas as entidades vivas.
VERSO 37: A Suprema Personalidade de Deus criou muitos lugares residenciais, tais como os corpos dos seres humanos, dos animais, dos pássaros, dos santos e dos semideuses. O Senhor, como Paramātmā, reside com o ser vivo em cada uma dessas inúmeras formas corpóreas. Logo, Ele é conhecido como puruṣāvatāra.
VERSO 38: Ó rei Yudhiṣṭhira, situada em todos os corpos, a Superalma confere inteligência à alma individual de acordo com sua capacidade de compreensão. Portanto, a Superalma é o principal fator dentro do corpo. Na mesma proporção que o indivíduo desenvolve conhecimento, austeridade, penitência e assim por diante, a Superalma manifesta-Se à alma individual.
VERSO 39: Meu querido rei, quando os grandes sábios e pessoas santas viram que, no começo de Tretā-yuga, os relacionamentos se maculavam com desrespeito mútuo, introduziu-se no templo a adoração à Deidade, realizada com toda a parafernália.
VERSO 40: Às vezes, o devoto neófito oferece ao Senhor toda a parafernália de adoração, e de fato adora o Senhor como Deidade, mas, como inveja os devotos autorizados do Senhor Viṣṇu, o Senhor jamais fica satisfeito com seu serviço devocional.
VERSO 41: Meu querido rei, dentro deste mundo material, entre todas as pessoas, o brāhmaṇa qualificado deve ser aceito como o melhor porque semelhante brāhmaṇa, praticando austeridade, estudando os Vedas e obtendo satisfação, torna-se uma autêntica manifestação do corpo da Suprema Personalidade de Deus.
VERSO 42: Meu querido rei Yudhiṣṭhira, os brāhmaṇas, especialmente aqueles ocupados em pregar as glórias do Senhor em todo o mundo, são reconhecidos e adorados pela Suprema Personalidade de Deus, que é o coração e a alma de toda a criação. Através da sua pregação, os brāhmaṇas, com a poeira dos seus pés de lótus, santificam os três mundos e, em razão disso, são adorados até mesmo por Kṛṣṇa.